Espuma dos dias – Sobre o futuro do Sistema Monetário Internacional: uma verdadeira incógnita — Texto 12. Podem os impérios russo e chinês fragilizar a ordem monetária e financeira internacional?  Por Jean Claude Werrebrouck

 

Nota de editor:

Com a atual guerra na Ucrânia e, em particular, com as sanções económicas e financeiras sobre a Rússia os comentaristas e analistas têm-se debruçado sobre as eventuais consequências de tais medidas sobre o estatuto do dólar enquanto moeda de reserva mundial e de moeda preferencial nas trocas internacionais. A propósito deste tema organizámos uma série de 13 textos, “Sobre o futuro do Sistema Monetário Internacional: uma verdadeira incógnita”.Publicamos hoje o décimo segundo texto – “Podem os impérios russo e chinês fragilizar a ordem monetária e financeira internacional?”de Jean Claude Werrebrouck.

Como resulta da leitura dos textos desta série, o futuro do sistema monetário e financeiro internacional é um tema sobre o qual ninguém é capaz de dizer de seguro seja o que for. O resultado final da atual guerra na Ucrânia, que não se sabe quando terminará, nem como terminará, certamente influenciará a evolução do sistema monetário internacional e o papel do dólar no sistema, mas tão importante quanto a guerra em curso e a forma como terminará é igualmente saber qualquer será o comportamento dos beligerantes de peso, os EUA e a URSS no pós guerra. Os exemplos históricos assustam.

Neste contexto, perspetivar o futuro face ao enorme nevoeiro que se tem pela nossa frente é difícil. Disto mesmo damos conta pelos textos que publicamos onde se torna visível que o processo é influenciado por múltiplos fatores, nomeadamente decisões impossíveis de prever, o que tornam as previsões naquilo que verdadeiramente são: previsões.


Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

10 m de leitura

Texto 12. Podem os impérios russo e chinês fragilizar a ordem monetária e financeira internacional?

 Por Jean Claude Werrebrouck

Publicado por em 5 de Maio de 2022 (original aqui)

 

Até agora, os países da União Europeia pagavam pelas suas compras de combustíveis fósseis em euros ou dólares. Os exportadores correspondentes, principalmente agentes dos Estados do Golfo e da Rússia, podiam converter o volume de negócios em moedas locais, mas uma grande parte permanecia sob a forma de obrigações públicas nos países da UE e especialmente nos EUA. O mesmo se aplicava a todas as compras que o Ocidente fazia ao resto do mundo, especialmente à poderosa China. A aceitação das moedas ocidentais pelas grandes zonas excedentárias (China, Rússia, Emiratos) foi assim muito favorável à taxa de câmbio destas moedas e em particular desta moeda chave que é o dólar.

 

O cenário de uma estratégia de “desdolarização” montada pela Rússia e pela China

Deste ponto de vista, a decisão da Rússia sobre a obrigação de pagar pelo gás em rublos constitui uma ameaça real de uma possível mudança radical na ordem monetária internacional. Se imaginarmos um cenário geral de “desdolarização” que seria imaginado por uma aliança imperial entre a Rússia e a China, os países ocidentais teriam de financiar os seus défices comerciais comprando moedas (rublos e yuan) ou mesmo ouro. Os países com maiores défices são os EUA (cerca de 900 mil milhões de dólares), o Reino Unido (210 mil milhões de dólares) e a França (110 mil milhões de dólares). Para além da hipótese de uma compra direta de ouro, isto significaria um aumento da oferta de moedas ocidentais (principalmente dólares, libras, e euros) na ordem de vários milhares de milhões de dólares por dia, e um aumento da procura de Rublos e Yuans pelo mesmo montante no mercado monetário mundial. O resultado seria um aumento ainda maior do preço destas duas moedas, dado que os excedentes russo e chinês são elevados (80 mil milhões de dólares para a Rússia e 478 mil milhões para a China). Se estes dois países vendessem em moedas nacionais e comprassem em dólares, os países ocidentais poderiam convidá-los a comprar as suas importações do Ocidente em moedas nacionais, o que lhes permitiria encontrar mais destas moedas no mercado cambial e assim limitar a subida das cotações cambiais. Mas também para pôr fim à chamada força das moedas chave, e assim testemunhar o enfraquecimento duradouro do papel do dólar.

Qualquer que seja a solução escolhida, na medida em que os três grandes países ocidentais em consideração têm um défice considerável, é evidente que as forças de reequilíbrio seriam enormes. Devido às elasticidades de preços da oferta e da procura internacionais, os EUA, a Grã-Bretanha e a França experimentariam um fluxo decrescente de importações e um fluxo crescente de exportações.

 

Que conclusões podem ser tiradas deste cenário?

Sem forças contrárias ou de compensação:

– Os custos de importação ocidentais tornar-se-ão de forma sustentada mais elevados e os termos de troca para os dois impérios emergentes melhorarão. Os termos de troca para os países ocidentais irão deteriorar-se.

– As vantagens da globalização impulsionada pelo Ocidente irão desaparecer e as cadeias de valor tornar-se-ão mais pequenas.

– Os défices públicos dos grandes países deficitários deixarão de ser cobertos pela compra de títulos públicos pelos dois impérios em construção. O custo mais elevado da dívida pública resultará numa redução directa do Estado social (França) ou numa pressão sobre as despesas soberanas, particularmente as despesas militares (EUA). Globalmente, o Ocidente já não pode viver para além das suas possibilidades.

– A pressão para a auto-centragem das economias aumenta (Alemanha e China em particular). A função “fábrica mundial” está a desvanecer-se para estes dois últimos países.

– A incerteza sobre a função “reserva de valor” da moeda aumenta: que moeda chave pode substituir a segurança e a liquidez extrema oferecida pelo dólar? Quais serão as consequências para o enorme castelo de cartas financeiro global cujo indispensável lubrificante/cimento é a trilogia fluidez/segurança/profundidade do mercado garantida pelo dólar? Pensemos, por exemplo, no aumento vertiginoso do custo da cobertura do risco cambial que resultaria de um tal cenário.

– Se os dois impérios em vias de formação propusessem, como a Rússia acaba de fazer, uma compra de ouro contra moedas nacionais (Rublo e Yuan), a queda da taxa de câmbio das moedas ocidentais não seria limitada pelo pagamento de parte do défice em ouro. Com efeito, à medida que a procura mundial de ouro aumenta, o seu preço aumentará e a contraparte em moedas ocidentais diminuirá. Este fenómeno, que já começou com compras massivas de metal pelos bancos centrais, resultante da aplicação das novas regras “Basileia 3”, só poderia desenvolver-se favorecendo assim os impérios em busca de poder. É melhor ter ativos de ouro de valor crescente no balanço destes impérios do que títulos dos governos ocidentais de valor duvidoso.

 

Qual a eventualidade de ocorrer um tal cenário?

Os dois impérios que procuram definir-se como tal têm fraquezas:

– Uma fragilidade comum é a de uma extrema fragilidade demográfica que prejudica gravemente os projetos imperiais. Em particular, a China pagará muito caro e durante muito tempo pela sua política de um filho, o que levou a um desequilíbrio extremo na sua relação sexual em favor dos nascimentos masculinos.

– Uma fragilidade resultante de situações económicas, culturais e sociais muito diferentes, que impossibilita a construção de uma estratégia de colaboração sustentável. A Rússia é uma estrutura em declínio que procura perpetuar um poder em vias de desaparecimento, procurando desestabilizar a ordem internacional. Como tal, a tentação imperial consiste em aplicar uma estratégia de simples sabotagem. Em contraste, a China é um império reemergente cuja estratégia de poder e conquista se baseia na ordem internacional tal como ainda existe. Para a China é menos uma questão de sabotagem do que de substituição do Ocidente. As Novas Rotas da Seda são o sinal mais óbvio deste desejo. E esta incompatibilidade estratégica resulta de uma visão diferente da história e da sua interpretação. Os dois impérios não vivem o seu passado da mesma maneira: a Rússia aproveita-se dele para cuspir veneno, enquanto a China depende dele para ultrapassar o desempenho ocidental.

– Uma fragilidade resultante de um duvidoso efeito de arrastamento: que vantagens podem os outros estados ganhar com uma evaporação do dólar, sabendo que para muitos deles a realidade histórica pode acomodar-se com a ordem ocidental (Índia, Brasil, África do Sul, etc.), enquanto para outros a realidade vivida é essencialmente uma simples renda captada sobre a ordem existente (estados do Golfo, estados petrolíferos, etc.)?

O papel político de um Ocidente que procuraria proteger-se coletivamente é, portanto, limitar as más relações com cada um dos dois impérios, e alargar as incompatibilidades estratégicas entre eles. Os diplomatas seriam convidados para o trabalho correspondente. A especificidade histórica e cultural da França é um bem essencial neste jogo que, infelizmente, nunca é assim visto.

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O autor: Jean Claude Werrebrouck é economista, antigo professor na Universidade de Lille 2. Inicialmente especializado em questões de desenvolvimento e economia do petróleo, ele destacou-se no problema da natureza da renda petrolífera. Como Diretor do IUT foi integrado na equipa fundadora dos Institutos Universitários Profissionalizados (IUP).

 

 

2 Comments

  1. Num texto tão pequeno, usa 12 vezes a palavra “império” para se referir a Rússia e China, e ZERO vezes para falar do efectivamente imperialista Ocidente.

    Os tradicionais elogios dos economistas mainstream/NeoLiberais ao dólar.

    E ainda a completa desonestidade intelectual de dizer que o ataque é feito por Rússia e China, e que o Ocidente colectivo só está a “defender-se”.

    Ah, e a ignorância (ou será a xenofobia sempre de mãos dadas com os “valores ocidentais”), de dizer que as diferenças culturais impedem entendimentos entre os países não-Ocidentais, como se BRICS, SCO, ASEAN, EUEA, UA, etc, não fossem já realidades onde existe cada vez maior cooperação e cada vez um anti-imperialismo contra os NeoColonialistas cristão, brancos, do G7 e amigos.

    Portanto, concluo assim que isto não é um texto de opinião, é um texto de propaganda, mascarado de “análise” monetária…

    Porque é que o incluíram nesta série de textos, quando neste em particular não acrescenta nada, é algo que não compreendo. E já é o segundo texto deste género nesta série.

    1. O autor é um dos melhores especialistas europeus em questões monetárias, em finança internacional e por isso o publicámos. Podemos discordar dele, e no artigo em questão, há várias posições de que discordamos, mas isso não tira mérito ao artigo. Fazer o contrário, seria cair na lógica do pensamento único, mesmo que com isso se queira ser alternativo. E isso, lamentamos, mas não fazemos.

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