Ainda a propósito da atual cacofonia em torno da guerra na Ucrânia — Texto 1. Será o BCE capaz de combater a “grande fragmentação” da zona euro?” Por Jean Claude Werrebrouck

 

Nota introdutória

Por Júlio Marques Mota

Coimbra, em 15 de Julho de 2022

 

Há dias publicámos, na série “Da histeria na diabolização à necessidade em silenciar as vozes discordantes -Reflexões sobre a atual cacofonia em torno da guerra na Ucrânia”, um texto medonho, intitulado “Violências cometidas pelos grupos ultranacionalistas ucranianos contra pessoas suspeitas de separatismo“, um texto sobre o clima que se vivia em 2014-2018 nas regiões agora “conquistadas” pelos russos (ver A Viagem dos Argonautas aqui).

Trata-se de um texto de um instituto público francês (datado de Novembro de 2018) pelo que algumas perguntas devem ser levantadas:

  1. Como é possível que este tipo de texto não seja colocado e discutido na imprensa europeia?

Não se pode dizer que os governos não sabiam do que se passava, uma vez que se trata de um relatório emitido por uma entidade oficial francesa.

  1. Uma outra questão nos surge daqui: como é possível que a Ucrânia tenha sido aceite como país candidato para a adesão à União Europeia, isto é, a União Europeia e todos os seus dirigentes consideraram que a Ucrânia politicamente está conforme com as regras europeias. Como é que isso é possível à luz deste relatório?
  2. Em nome de quê é que se faz a diabolização de um só lado, a diabolização de Putin, e não dos dois lados?

Aqui a resposta parece ser imediata: diabolizar Putin significa inocentar-se perante tudo o que de grave pode acontecer: a culpa é dos russos. E assim os nossos políticos pensam sair da situação de crise complexa onde nos enfiaram (haverá ainda saída?) mas para isso precisam exatamente de diabolizar ao limite Putin e branquear o resto. Repare-se, um primeiro-ministro demissionário na Estónia, temos um primeiro-ministro inglês demissionário, e que apresentou como grande feito no seu cargo de primeiro-ministro ter sido a Inglaterra o país que mais armas forneceu à Ucrânia. Quem paga? Isso ele não disse mas era bom que dissesse. Na Itália, Mario Draghi acaba de cair. Em França, Macron perdeu a maioria absoluta e estamos para ver a rentrée política em França. Uma França dividida que os Coletes Amarelos irão pôr em evidência. Que fará então Jean-Luc Mélenchon?

  1. Mas apetece perguntar: E quanto a Joe Biden? Quanto a Joe Biden citemos um jornal que lhe é fiel, The New Republic, onde se afirma:

“A ausência de Biden é particularmente surpreendente por ser tão invulgar. Pelo menos desde Franklin Roosevelt, todos os presidentes, de uma forma ou de outra, dirigiram a discussão nacional ou, no mínimo, tiveram nela uma voz forte e impossível de não ouvir “, escreveu Robert Kuttner em The American Prospect durante o fim-de-semana. “Quase temos de voltar àqueles nobres presidenciais de meados do século XIX – Franklin Pierce? Millard Fillmore?- para encontrar um presidente que figure tão pouco no discurso nacional, ou que assim tenha cedido a liderança a membros proeminentes do Congresso”.

Biden parece estar encurralado num círculo vicioso. Com o seu índice de popularidade a descer, ele e os seus conselheiros parecem estar agarrados à ansiedade de que fazer qualquer coisa só irá piorar as coisas. E assim ele diz pouco e não faz nada, esperando que os eleitores culpem os republicanos pelo que está a afligir o país – ou pelo menos reconheçam a ameaça existencial que representam para a democracia americana – e votem nos democratas em Novembro. É evidente que não está a funcionar: Na mais recente sondagem do New York Times/Siena College, divulgada na segunda-feira, quase dois terços dos eleitores democratas dizem “que prefeririam um novo porta-estandarte na campanha presidencial de 2024. (…)

Mas neste momento, tudo o que os democratas querem fazer será sujeito a revisão judicial. Por vezes é preciso escolher as lutas; neste caso, teria sinalizado um compromisso inabalável de lutar pelos direitos reprodutivos. Em vez disso, Biden sinalizou essencialmente que a luta não pode ser ordenada até os eleitores irem às urnas em Novembro. Os eleitores, claro, compreendem a realidade das maiorias congressionais. Neste momento, no entanto, estão a receber poucos motivos para serem otimistas. Grande parte da atual queda de Biden nas sondagens pode ser explicada pela diminuição do apoio entre os democratas: Ações mais agressivas – declarações ainda mais agressivas – podem ajudar a conter a maré, proporcionando um abanão de entusiasmo. “ Fim de citação

Isto significa que internamente Biden está completamente imobilizado em termos de política interna e com muito medo das eleições intercalares de Novembro. Há muita gente a ter medo e não é por acaso que Robert Reich edita hoje imagens do filme Casablanca, filme realizado em 1942! (ver aqui)

Bloqueado internamente, Biden parece estar a servir-se da política externa para reunir os americanos à sua volta, apelando ao sentido nacional e declarando guerra contra a Rússia, contra a China, diabolizando a situação e por essa via procurando apoios nacionais, numa base puramente emocional. Desse ponto de vista diabolizar Putin é uma necessidade enquanto representante do Diabo, do mal. O paralelo com Clinton e Monica Levinsky é imediato. Quando a polémica do que se passou na sala oval da Casa Branca no tempo de Clinton rebentava, caíam bombas algures (v.g. na ex-Jugoslávia). O inimigo estava longe, era preciso união contra ele.

  1. Em nome de quê é que se está a correr o risco de uma guerra nuclear, ou seja, em defesa de que princípios?
  2. Em nome de quê é que nenhum líder político europeu fala em negociações de paz? Nem fala nos acordos de Minsky por respeitar?
  3. Em nome de que é que se põe em risco a própria União Europeia? Esta pergunta pode parecer estranha, mas não é por acaso que se começa a falar em fragmentação da zona euro, a relembrar a crise da dívida pública da zona Euro de 2009 e que ainda está por resolver.

E a explicação desta fragmentação é simples: por razões estruturais do modelo de desenvolvimento europeu (há algum modelo?) e por razões ligadas à guerra, a inflação está a disparar. O remédio é sempre o mesmo: os pobres que paguem a fatura. E como? Pela via das taxas de juro, os impactos sobre o consumo são fortes e este contrai-se, o emprego contrai-se, a dívida pública aumenta, os impostos aumentam, e os impostos aumentam para pagar o serviço da dívida.

Mas aqui há um outro mecanismo, os impostos aumentam também para pagar o relançamento da máquina de guerra da NATO de que nos falava António Costa com os euros bem gastos e com um multiplicador igual a 3! Tudo isto são mecanismos que nos levarão à recessão com inflação- o retorno aos anos 80 e à estagflação. Adicione-se ainda, tal como em 2010 um outro mecanismo: a existência dos países seguros face à dívida e dos países inseguros quanto à liquidação da sua dívida pública e privada. A partir daqui temos a possibilidade de ataques especulativos à dívida pública de cada país e estamos assim lançados em mais uma época perdida. Como se a de 2010-2020 não tivesse bastado.

E podíamos continuar…. Em nome de quê tudo isto é a pergunta que podem fazer depois de ler o texto 3 e em nome de quê   é que se está disposto a tornar a Europa completamente disfuncional. Ninguém na União Europeia, a começar por António Costa, quis ver as consequências do que significava mais armas, mais guerra, mais destruição, mais mortes? Os líderes europeus tomaram as suas opções, não foram nunca as da paz, e esqueceram-se de um ensinamento que nos vem desde Hegel: não há ações que sejam independentes das suas consequências.  E as consequências começam a ser dramaticamente visíveis.

Sobre estas consequências apresentaremos, hoje e nos próximos dois dias, dois textos de Jean-Claude Werrebrouck e um de Enrico Grazzini, dois grandes especialistas europeus sobre questões da moeda única. Pensem bem no que estes autores nos dizem.

 


 

Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

5 m de leitura

Texto 1. Será o BCE capaz de combater a “grande fragmentação” da zona euro?

 Por Jean Claude Werrebrouck

Publicado por   em 18 de junho de 2022 (original aqui)

 

Os líderes do Banco Central Europeu reuniram-se na quarta-feira 15 de Junho numa emergência para encontrar uma resposta aos spreads das taxas de juro da dívida pública dos países da zona euro. Recordamos que há pouco mais de uma década, foram estes spreads que colocaram a moeda única em perigo real.

A decisão adotada a 15 de Junho é, em princípio, interessante: as dívidas públicas que atingem o vencimento numa base diária – dívidas que aparecem no ativo do balanço do BCE – serão reinvestidas na compra de obrigações cuja taxa de emissão é considerada demasiado elevada. Trata-se, portanto, de manter a ficção de uma taxa única para toda a zona e assim evitar desvios especulativos que poderiam conduzir a um incumprimento por parte dos países mais em dificuldades (Itália, Grécia, Espanha, França).

Este trabalho de homogeneização foi essencial durante a década de 2010 e prosseguiu com instrumentos de redação variável, mas que conduziram em todas as circunstâncias à compra em massa  da dívida pública e, portanto, a um aumento colossal do balanço do banco central. Deve também lembrar-se que estas compras da política de flexibilização quantitativa (QE, quantitative easing) tiveram de obedecer a uma certa proporcionalidade para não serem culpados de iniquidade: a Grécia não pode beneficiar mais da generosidade do banco central do que a Alemanha. Isto significa que o QE deve ser proporcional à dimensão do país, tal como medida pelo PIB. Assim, se um país de tamanho 10 recebe 1 euro da QE, um país de tamanho 100 deve receber 10. Se agora o país de tamanho 10 tem um estado muito endividado com um grande défice, enquanto o país de tamanho 100 tem um orçamento relativamente equilibrado, isto significa que a regra da equidade, ou seja, da proporcionalidade, significará que o segundo país receberá muita generosidade monetária quando realmente não está a precisar dela. Globalmente, o país de tamanho 10 com um elevado peso da dívida receberá relativamente pouco, enquanto o país de tamanho 100 com um orçamento equilibrado receberá muito.

Isto explica a anomalia nas estatísticas do BCE relativamente às proporções da dívida pública detida pelo BCE. Ficamos a saber que a Alemanha tem 43,6 pontos da sua dívida pública detidos pelo BCE, enquanto a Itália tem apenas 27,3 pontos da sua dívida pública detidos pelo BCE. A Itália está altamente endividada (150 pontos do PIB), enquanto que a Alemanha está menos endividada (66 pontos do PIB). E assim – sabendo que o PIB italiano é metade do PIB alemão – o resultado é que, para baixar as taxas italianas, o BCE tem de comprar dívida italiana em quantidade suficiente para o mercado e comprar demasiada dívida alemã…o que torna as taxas em todo o Reno anormalmente baixas. Mais precisamente o rácio do PIB é de 1 para 2, o BCE comprará o dobro da dívida alemã do que a dívida italiana. A conclusão é que não é fácil limitar os spreads das taxas, bloqueando assim a fragmentação.

As circunstâncias atuais recordam o risco de fragmentação numa altura em que, por razões de inflação, é necessário parar com a política de QE. O BCE propõe-se, portanto, “utilizar as sobras”: os recursos disponibilizados por chegarem à maturidade velhos títulos do antigo QE que passarão a ser mobilizados e transformados em novas compras de dívida, cujas taxas estão a aumentar. Uma vez que a matéria-prima é essencialmente euros do norte, as antigas dívidas do norte terão de ser transformadas em novas dívidas do sul. A menos que as regras de equidade e proporcionalidade deixem de ser respeitadas, esta não é uma nova arma na luta contra a fragmentação, especialmente porque esta matéria-prima provém de uma mina que não é muito produtiva: apenas 17 mil milhões de euros por mês estão disponíveis para vencimentos. É verdade que a comunicação do BCE afirma que o Conselho do BCE irá trabalhar na construção de um “novo instrumento anti-fragmentação”. Este é apenas um exercício de comunicação, uma vez que é difícil ver como é que tais assimetrias dentro da zona euro podem ser eliminadas sem uma mudança completa na arquitetura europeia.

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O autor: Jean Claude Werrebrouck é economista, antigo professor na Universidade de Lille 2. Inicialmente especializado em questões de desenvolvimento e economia do petróleo, ele destacou-se no problema da natureza da renda petrolífera. Como Diretor do IUT foi integrado na equipa fundadora dos Institutos Universitários Profissionalizados (IUP).

 

 

 

 

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