A Crise Global Continua — Texto 6. A Zona Euro- Sob pressão (de novo).  Por Victor Hill

 

Nota prévia:

Victor Hill é um homem conservador inglês, politicamente bem à direita, o que não tem impedido que publiquemos amiúde os seus interessantes textos, como é o caso do que hoje editamos.

Contudo, não podemos deixar de sublinhar que o presente texto não só reflete numerosas das ideias montadas pelo dito Ocidente contra a Rússia, mas em diversas delas fá-lo subliminarmente, invertendo mesmo os factos que têm ocorrido.

Vejamos alguns exemplos, sem preocupação de aprofundamento:

Fala da determinação de Putin de minar a ascendência do Ocidente democrático na atual ordem mundial, passando olimpicamente por cima da declarada intenção dos EUA de minar o peso da Rússia. Mas se consultarmos um relatório de 2019 da Rand Corporation, intitulado “Extend Russia” com uma nota resumo “Overextending and unbalancing Russia” (Exceder e desequilibrar a Rússia, ver aqui e aqui), dizem os estado-unidenses: “Esta nota resume um relatório que analisa de forma abrangente as opções não violentas e que impõem custos, que os Estados Unidos e os seus aliados poderiam prosseguir em todas as áreas económicas, políticas e militares, para aumentar e desequilibrar a economia e as forças armadas da Rússia e a posição política do regime a nível interno e externo. Algumas das opções examinadas são claramente mais promissoras do que outras, mas qualquer uma teria de ser avaliada em termos da estratégia global dos EUA para lidar com a Rússia, o que nem o relatório nem este resumo tentaram fazer”. O relatório diz: ““Este relatório procura definir áreas onde os Estados Unidos podem competir em seu próprio benefício. Com base em dados quantitativos e qualitativos de fontes ocidentais e russas, este relatório examina as vulnerabilidades e ansiedades económicas, políticas e militares da Rússia. Analisa depois potenciais opções políticas para as explorar – ideologicamente, economicamente, geopoliticamente e militarmente (incluindo opções aéreas e espaciais, marítimas, terrestres e multidomínios)”. Aliás, o título é muito curioso “Extend Russia”, com um subtítulo já mais parecido com o gato escondido com o rabo de fora: “Competing from Advantageous Ground”. Mas quem é a Rand Corporation? Organização sem fins lucrativos, é um think tank norte-americano, financiado maioritariamente nem mais nem menos do que pelo Departamento de Defesa, pelo Departamento de Segurança Nacional e outros departamentos dos Estados Unidos. Afinal, quem quer minar quem?

Hill prossegue e afirma que os países que apoiam a Rússia, como a Coreia do Norte, Bielorússia, Eritreia e Síria dão a confiança de que Putin necessita para cortar o gaz à dita Europa. Risível! Não inocentemente naturalmente, omite que países como a China, a Índia, a África do Sul expressamente não acompanham o dito Ocidente nas sanções impostas à Rússia.

Diz Hill que um dos objetivos de guerra da Rússia e de Putin era e é fomentar a inflação na Europa. Mas não diz que essa inflação provém das sanções aplicadas à Rússia e da especulação que os sagrados mercados livres fazem em torno das mesmas. E também nada diz sobre que essa inflação tinha começado a disparar em Agosto de 2021, muito antes da famigerada “invasão”. E cita declarações de Putin que afirmam o óbvio: o regime de sanções contra a Rússia é uma “espada de dois gumes” que levará a um declínio sistémico da economia europeia nos anos vindouros. Ou seja, o ocidente (nomeadamente a UE) impõem gravíssimas sanções à Rússia e o Putin é que fomenta a inflação!!!

A guerra económica da Rússia contra a Europa está em curso, mas a UE é que corta os fluxos, como o diz o próprio Hill: “… desde o Outono passado, quando Moscovo começou a manipular os fluxos de gás para o Ocidente. O ponto de inflexão mais recente foi quando a UE decidiu parar todos os fluxos de petróleo bruto russo por via marítima até ao final do ano”.

E prossegue Victor Hill: “A guerra da Rússia na Ucrânia pode revelar-se prolongada e pode tornar-se ainda mais amarga. Nenhum dos lados está a oferecer a perspetiva de qualquer tipo de acordo. Se Volodymyr Zelensky concedesse território à Rússia, todos sabem que isso seria apenas um hiato no conflito. O objetivo declarado da Rússia é limpar a Ucrânia do mapa.”

Nem uma palavra sobre as negociações de Março, que basicamente preparavam um acordo, mas que, de repente, Zelenski deixou cair. Porque terá sido? Um parágrafo montado ao contrário: Objetivo declarado onde?? Conceder território nem pensar, afinal há que enfraquecer a Rússia. Raciocínio subsequente lógico: a guerra é para prolongar.

Outro fantástico parágrafo de Hill: “O que Putin quer é aumentar o limiar da dor na esperança e na expectativa de que a solidariedade europeia vacile, e que alguns Estados afrouxem o regime de sanções contra a Rússia”. A UE impõe as sanções “certamente para não provocarem dor”, e os russos é que querem aumentar a dor na UE.

Sobre a Alemanha diz Victor Hill que ela “… foi o modelo económico da Europa”, mas nada diz sobre os graves danos que esse modelo provocou na zona euro: Alemanha cheia de excedentes e o Sul de défices e desemprego, e dívida e recessão. Modelo, para quem? Diz ainda que “… o sucesso da manufatura alemã tem sido fundado na abundância de energia barata”, omitindo uma parte fundamental da realidade: a famigerada “contenção” salarial e que teve um papel fundamental nos excedentes da conta corrente, na conhecida política de beggar-thy-neighbour.

Ainda sobre a Alemanha Hill diz, e bem a nosso ver: “A coligação de “semáforos” vermelho-âmbar-verdes da Alemanha, conseguida com muita dificuldade em Dezembro passado, pode ainda implodir. Não conseguiu articular uma visão de para onde quer que o país vá e parece reagir apenas a impulsos vindos de acontecimentos externos”. E esta mesma coligação põe agora Lisboa a gritar a nova moda: um gasoduto de Lisboa a Helsínquia. De uma penada! Dificuldades? Custo benefício? Opinião de países como França, Holanda, Noruega, Suécia…..nada se sabe.

Depois Hill fala do regresso do “planeamento estatal” francês…., uma coisa horripilante. Que belos têm sido os resultados do “planeamento” dos livres mercados. Temos estado tão bem com a auto-regulação dos mercados, não é? E para entrar subliminarmente na mente do leitor: “a França é a nação que mais tributa e mais gasta, mas que trabalha menos (…)” [sublinhado nosso]. Conviria, ao menos, dizer em que assenta este raciocínio (quando as comparações começam, deixa de ser líquido que a França seja quem menos trabalha…).

“Macron tornou ligeiramente mais fácil contratar e despedir pessoal em França do que antes; mas o mercado de trabalho francês ainda é muito mais rígido do que o mercado de trabalho do Reino Unido ou dos Estados nórdicos. Ele descentralizou a negociação salarial num país com uma mão-de-obra altamente sindicalizada. Aboliu os impostos sobre a riqueza, um imposto tão do agrado dos socialistas franceses. Mas o plano de reduzir em 100.000 os funcionários públicos foi arquivado” [sublinhado nosso]. Um parágrafo exemplar, em todo o seu esplendor, do pensamento Tory: desregular, diminuir impostos sobre os mais ricos, despedir. Será por isso que os britânicos estão tão alegres e felizes, sem greves nem protestos? E tão preocupados com a Ucrânia já que na sua ilha vai tudo bem?

E de forma indireta, Hill traz para cima da mesa os famigerados critérios da austeridade, os 60% e os 3%. Mas o RU não saiu da UE também por causa disso? Não parece.

E Hill, para terminar lá traz de novo o mantra: o que pensam os sagrados mercados de tudo isto? Ahhh…os mercados…. E quem são os mercados, essas entidades que parece que pairam sobre as nossas cabeças….tipo extra-terrestres?

E quais são os enormes erros estratégicos em matéria de energia da UE e do RU? Hill não o diz mas parece poder adivinhar-se: tratar a Rússia como parceiro europeu e fiável, esse foi o enorme erro. Melhor teria sido os “velhos” amigos americanos, com o seu petróleo e gaz mais caros. Um negócio entre amigos é outra coisa.

Mas já agora recordemos:

Os 15 maiores produtores de petróleo são (Wikipedia): 1. EUA 13.55%; 2. Rússia 11.67%; 3. Arábia Saudita (OPEP) 10.23%; 4. Canadá 4.96%; 5. Iraque (OPEP) 4.59%; 6. China 3.97%; 7. Irão (OPEP) 3.90%; 8. Brasil 3.02%; 9. Emirados Árabes Unidos (OPEP)3.01%; 10. Kuwait (OPEP) 2.78%; 11. México 2.29%; 12. Noruega 2.02%; 13. Venezuela (OPEP) 2.02%; 14. Angola (OPEP) 1.68% 2017; 15. Cazaquistão 1.64%

E os 10 países com maiores reservas de gás (Wikimedia Commons): 1. Rússia 21,4%; 2. Irão 15,9%; 3. Catar 12%; 4. Turquemenistão 11,7%; 5. Estados Unidos 4,1%; 6. Arábia Saudita 3,9%; 7. Emirados Árabes 2,9%; 8. Venezuela 2,7%; 9. Nigéria 2,5%; 10. Argélia 2,2%

E agora, por estes dias, está lançado o mantra (até quando durará?): hidrogénio, hidrogénio, hidrogénio…… Península Ibérica, Península Ibérica. Mas será o hidrogénio verde ou o azul? E a UE já estudou o assunto? Custo benefício, consequências em cada país, compromissos de cada país, value-for-money… etc. todas essas “pequenas” coisas” que não aparecem nas parangonas da propaganda dos media.

Dirão os leitores: para quê então a publicação deste texto?

Por um lado mostra uma análise de direita, bem feita, sobre a situação em que se encontra a Europa; mas, sobretudo, mostra o autêntico buraco em que a Europa se enfiou: desorientação e declínio da chamada locomotiva da zona euro, a Alemanha; o almejado objetivo francês de um exército europeu está morto; inflação endémica, taxas de juro a crescer e crescimento estagnado da zona euro, com o modelo exportador alemão-francês em queda, e uma recessão no horizonte; os desequilíbrios fundamentais da união monetária de novo em jogo; e um inverno que se anuncia doloroso com a falta de alternativa credível ao fornecimento energético da Rússia.

Francisco Tavares


Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

8 m de leitura

Texto 6. A Zona Euro- Sob pressão (de novo)

 Por Victor Hill

Publicado por  em 29 Julho 2022 (original aqui)

 

O céu a escurecer

Em Abril, o FMI pensava que a zona euro iria crescer 2,8 por cento este ano e 2,3 por cento no próximo – abaixo das suas estimativas anteriores. A Comissão Europeia declarou então que a economia da UE era “particularmente vulnerável” ao aumento dos preços da energia – mesmo antes da Rússia ter efetivamente reduzido o fluxo de gás no gasoduto Nord Stream 1 em 80 por cento esta semana.

Espera-se que a inflação na zona euro como um todo seja de 7,6% este ano, antes de cair para uma previsão de 4% no próximo ano – mas estas estimativas foram anunciadas antes dos últimos desenvolvimentos na guerra energética da Rússia com o Ocidente. As previsões do FMI vistas agora parecem otimistas. O Índice de Gestores de Compras (PMI) da zona euro caiu para 49,4 este mês, contra 52 em Junho. Qualquer pontuação do PMI inferior a 50 sugere que a atividade do sector privado está a contrair-se. O FMI referindo-se apenas à indústria transformadora dá uma notação de queda para 46,1 pontos. O Banco Central Europeu (BCE) aumentou as taxas em 50 pontos de base na semana passada, lançando mais pessimismo.

Na terça-feira (26 de Julho), 26 Estados da UE concordaram voluntariamente em reduzir o seu consumo de gás em 15 por cento até ao próximo mês de Março. A presidente da Comissão Europeia Ursula von der Leyen anunciou o acordo em frente a uma gigantesca bandeira que dizia – em inglês – “Poupe gás para um Inverno seguro”. A Hungria, que goza de relações acolhedoras com a Rússia, mostrou-se reticente. Assim, a perspetiva de um racionamento de energia em larga escala em toda a Europa neste Inverno parece uma situação provável.

Ainda recentemente, em 30 de Maio, a Europa recebia da Rússia cerca de 227 milhões de metros cúbicos de gás por dia, de acordo com o Instituto de Estudos Energéticos de Oxford. Em 18 de Julho, esse valor tinha caído para 82 milhões. Agora, os abastecimentos estão a funcionar possivelmente a um nível tão baixo quanto 60 milhões.

A Rússia e o Irão – um país com o qual a Rússia parece ter formado uma aliança de facto – juntos representam cerca de um terço da produção total de gás natural. Vladimir Putin esteve em Teerão ainda na semana passada, cumprimentando e sorrindo com os ayatollahs. Ambos os países estão sujeitos a sanções ocidentais e determinados a minar a ascendência do Ocidente democrático na atual ordem mundial. Outros países que apoiam a Rússia na sua guerra contra a Ucrânia incluem a Coreia do Norte, a Bielorrússia, a Eritreia e a Síria. Esta aliança dá a Putin mais confiança de que ele pode fazer ajoelhar a Europa, cortando-lhe o gás. Além disso, ele poderia facilitar a ambição há muito defendida pelo Irão de se tornar uma potência nuclear.

Mesmo que muitos europeus – especialmente os alemães – preferissem manter-se neutros na guerra da Rússia contra a Ucrânia, Putin pretende prejudicar não só o Ocidente em geral, mas a UE em particular. Num discurso proferido no Fórum Económico Internacional, realizado em São Petersburgo no final de Junho, Putin disse que o regime de sanções contra a Rússia era uma “espada de dois gumes” que levaria a um declínio sistémico da economia europeia nos anos vindouros. Em termos simples, um dos objetivos de guerra da Rússia era e é fomentar a inflação na Europa. Nas suas próprias palavras:

Isto irá agravar os problemas profundamente enraizados das sociedades europeias. Haverá um maior crescimento da desigualdade que dividirá ainda mais as suas sociedades. Um tal desligamento da realidade conduzirá inevitavelmente a um aumento do populismo e de movimentos extremistas e radicais“.

A guerra económica da Rússia contra a Europa está em curso desde o Outono passado, quando Moscovo começou a manipular os fluxos de gás para o Ocidente. O ponto de inflexão mais recente foi quando a UE decidiu parar todos os fluxos de petróleo bruto russo por via marítima até ao final do ano. A Goldman Sachs estima que a economia da UE se contrairia em 2,7% no próximo ano se os russos cortassem completamente as torneiras de gás, mas ainda mais em Itália e na Alemanha.

Apesar do regime de sanções, a Rússia está inundada de receitas de combustíveis fósseis, dado o pico no preço do petróleo e do gás. Os russos estão a vender menos mas a cobrar mais. Como resultado, o rublo, que afundou no primeiro mês da guerra, está a ressurgir. É verdade que a Rússia não cumpriu tecnicamente as suas obrigações de serviço da dívida – mas não por insolvência. Pelo contrário, tem sido incapaz de cumprir os pagamentos de juros porque grande parte do seu sistema bancário está congelado.

A guerra da Rússia na Ucrânia pode revelar-se prolongada e pode tornar-se ainda mais amarga. Nenhum dos lados está a oferecer a perspetiva de qualquer tipo de acordo. Se Volodymyr Zelensky concedesse território à Rússia, todos sabem que isso seria apenas um hiato no conflito. O objetivo declarado da Rússia é limpar a Ucrânia do mapa – e os ucranianos lutarão até ao fim.

A guerra pode ainda escalar para algo existencialmente perigoso. A incipiente contraofensiva ucraniana para retomar Kherson poderia forçar a mão de Putin. O que Putin quer é aumentar o limiar da dor na esperança e na expectativa de que a solidariedade europeia vacile, e que alguns Estados afrouxem o regime de sanções contra a Rússia. Ele calcula que o primeiro Estado da UE a desmoronar-se será o mais rico – a Alemanha.

 

Alemanha: confusão e declínio

Os Alemães têm uma reputação de eficiência sem falhas. Combinam uma brilhante capacidade de engenharia com um design excecional. Têm uma cultura extraordinária enraizada numa língua fascinantemente rica. A Alemanha foi o modelo económico da Europa – em tempos. Mas já não o é agora

Algo extraordinariamente significativo aconteceu no fim-de-semana passado. O ex-patrão reformador do gigante Volkswagen fabricante de automóveis, Herbert Diess, foi afastado. Ele era o homem que iria fazer entrar a abalada indústria automóvel alemã para a quarta década do século XXI, defendendo a eletrificação, o desenho assistido por IA e – oh sim – os despedimentos. Diess conheceu uma situação de dificuldade neste gigante industrial quando as famílias Porsche e Piëch, mais o estado da Baixa Saxónia, que ainda são acionistas significativos, perderam a confiança no seu zelo reformador. Tinha-se tornado um radical num ecossistema económico que favorece o tradicionalismo e o gradualismo – ainda que essas tendências tenham afundado a Alemanha num buraco cada vez mais profundo.

Diess identificou a Tesla, bem como potências em ascensão tais como a BYD da China, como os principais concorrentes da VW em vez da Renault, Ford e Toyota. Segundo consta, Elon Musk uma vez ofereceu-lhe um emprego de topo. É verdade, os mercados não ficaram impressionados com os seus esforços: O preço das ações da VW caiu cerca de 28 por cento até à data – mas isso pode refletir o ceticismo dos investidores em relação ao sector automóvel em geral.

A Alemanha é o último país a concluir acordos comerciais por fax. A maioria das grandes empresas alemãs são geridas por gestores de topo conservadores e avessos ao risco. O sector alemão da tecnologia digital é pequeno comparado com o da França, onde Emmanuel Macron incentivou a criação de novas empresas, ou com o Reino Unido. Os alemães favorecem pares de mãos seguras em detrimento das mãos ágeis. Mas o sucesso da manufatura alemã tem sido fundado na abundância de energia barata. Com os preços da energia a subir em flecha e as exportações a decrescer, o país registou o seu primeiro défice comercial durante 30 anos no mês passado.

A elite política alemã não quer que a Ucrânia se torne um membro da UE, muito menos um membro da NATO, e assim ancorada no Ocidente. Se alguma vez a Ucrânia viesse a aderir à UE, seria o seu quinto maior membro por população – e um dos mais pobres. A Ucrânia seria responsável por cerca de nove por cento da população combinada da UE. Isso colocaria uma enorme pressão sobre as finanças da UE. Países como Portugal e a República Checa teriam de se tornar contribuintes líquidos para os cofres da UE. A Ucrânia mais a vizinha Polónia, cujas línguas são semelhantes, teriam uma população maior do que a Alemanha (apesar de cinco milhões de ucranianos terem fugido e possivelmente 60.000 estarem agora mortos). Em conjunto, eles poderiam ultrapassar em votação a França-Alemanha.

Os alemães também estão interessados em evitar provocar a ira russa: para além de alguns obuses, Berlim apenas forneceu a Kiev capacetes. A Alemanha continua a bloquear a libertação da ajuda financeira da UE à Ucrânia porque se opõe ao princípio da “emissão conjunta de dívida”. Embora a Ucrânia tenha sido oficialmente convidada a tornar-se um membro candidato ao bloco no mês passado, os alemães assinalaram que a adesão da Ucrânia exigiria alterações ao tratado, com a abolição dos vetos nacionais.

Entretanto, o muito falado aumento por Olaf Scholtz das despesas da defesa, em termos das quais a capacidade militar da Alemanha poderia ter ultrapassado a da França, tem encontrado muitas dificuldades. As forças armadas da Alemanha deverão ser ainda mais reduzidas no próximo ano.

A Alemanha tem reservas significativas de gás que são armazenadas em enormes congeladores subterrâneos. Mas a menos que a utilização seja drasticamente reduzida no futuro imediato, espera-se que mesmo estas sejam esgotadas até Janeiro. A fatura média de combustível doméstico na Alemanha já deverá aumentar em 2.000 euros por ano e existem planos em curso para providenciar alojamento de emergência nas câmaras municipais para aqueles que não conseguem aquecer as suas casas. Alguns proprietários já estão a baixar o termostato em blocos de apartamentos, e algumas autoridades locais estão a desligar as luzes da rua. As centrais elétricas alimentadas a carvão desativadas devem ser reutilizadas. Lá se vão as credenciais verdes da Alemanha – o seu objetivo de chegar ao carbono zero líquido até 2045 parece agora risível.

Até a imprensa normalmente dócil da Alemanha começou a questionar como é que a elite política do país poderia ter trazido para o país um tal estado de insegurança energética. A outrora santificada Angela Merkel é agora vista como a principal culpada. Ela presidiu ao encerramento das centrais nucleares e construiu os oleodutos Nord Stream, que obrigaram a Alemanha a cumprir as suas obrigações para com a Rússia. A coligação de “semáforos” vermelho-âmbar-verdes da Alemanha, conseguida com muita dificuldade em Dezembro passado, pode ainda implodir. Não conseguiu articular uma visão de para onde quer que o país vá e parece reagir apenas a impulsos vindos de acontecimentos externos.

 

Itália: em busca de um governo

Na sequência da demissão de Mario Draghi como primeiro-ministro a 21 de Julho, após 17 meses no cargo, ele permanece como líder interino (tal como Boris Johnson no Reino Unido) até às eleições gerais – que poderão vir logo em Setembro. Draghi demitiu-se quase 10 anos depois em que como presidente do BCE, se comprometeu a fazer “o que for preciso” para salvar o euro. Tal como Johnson, ele é um primeiro-ministro sem capacidade de resposta à crise do seu país e que nada pode fazer para evitar a crise iminente. O partido populista Irmãos de Itália está em vias de ganhar as eleições.

Quando Draghi foi instalado como primeiro-ministro italiano em Fevereiro do ano passado, foi visto como o brilhante tecnocrata que finalmente colocaria a economia numa situação de equilíbrio. A beneficente UE forneceu à Itália 220 mil milhões de euros do seu Fundo de Recuperação de Covid – mais do que a qualquer outro membro da UE. Mas todos os seus planos de iniciativas de despesa e de reforma estrutural foram arrasados pela explosão dos preços do petróleo e do gás. A Itália é quase tão dependente do gás russo como a Alemanha. A inflação é galopante, o crescimento tem tomado um rumo de queda livre e os rendimentos das obrigações do governo italiano estão novamente a subir em relação aos seus equivalentes alemães.

O aumento das taxas de juro na zona euro, tal como determinado pelo BCE, implicará que o custo do serviço da dívida da Itália aumentará. A Itália tem hoje um rácio da dívida em relação ao PIB superior ao que tinha durante a crise da dívida soberana europeia de 2011-12: 150 por cento agora, em comparação com os 125 por cento de então.

Existe alguma possibilidade de a Itália poder reforçar o fornecimento de gás através da compra à Argélia, mas isso poderá levar tempo.

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França: o retorno do planeamento estatal

A reação de Macron à crise energética europeia foi tentar impor controlos de preços e renacionalizar a empresa francesa de energia monolítica, a EDF. Antes das eleições presidenciais de Abril, Macron limitou o preço da eletricidade e do gás, forçando assim as grandes empresas energéticas – EDF e Gaz de France – a fornecer energia com perdas. Depois anunciou que o Estado francês compraria de volta os 16% da EDF em mãos privadas a um custo de até 10 mil milhões de euros – o que fez com que as ações da empresa aumentassem.

Macron chegou ao poder em 2017 como reformador que iria restaurar a disciplina orçamental num país que tem vindo a violar o Pacto de Estabilidade e Crescimento da UE durante 11 anos. A sua proposta de aumentar a idade de passagem à reforma dos funcionários públicos franceses de 62 para 65 anos ainda está longe de ser concretizada – e provavelmente terá de ser abandonada agora que não detém uma maioria na Assembleia Nacional. Notoriamente, a França é a nação que mais tributa e mais gasta, mas que trabalha menos. As despesas governamentais ascenderam a 57 por cento do PIB no ano passado.

Macron tornou ligeiramente mais fácil contratar e despedir pessoal em França do que antes; mas o mercado de trabalho francês ainda é muito mais rígido do que o mercado de trabalho do Reino Unido ou dos Estados nórdicos. Ele descentralizou a negociação salarial num país com uma mão-de-obra altamente sindicalizada. Aboliu os impostos sobre a riqueza, um imposto tão do agrado dos socialistas franceses. Mas o plano de reduzir em 100.000 os funcionários públicos foi arquivado.

Talvez surpreendentemente, a França tinha um rácio de dívida em relação ao PIB inferior ao da Alemanha até à crise financeira de 2008. Em 2007, era de 64 por cento (o da Alemanha era de 65). Este ano, o rácio de endividamento da França em relação ao PIB atingirá 113 por cento, enquanto o da Alemanha atingirá 71 por cento, de acordo com dados do FMI. O défice fiscal da França (receitas fiscais menos despesas totais do Estado) ainda será superior a três por cento do PIB em 2024, mesmo que o da Alemanha seja zero. Isto torna a França ainda mais vulnerável ao aumento das taxas de juro na zona euro.

Ontem, o rendimento dos títulos alemães de dívida pública a 10 anos, os Bunds, foi de 0,96 por cento enquanto o rendimento do instrumento francês de maturidade equivalente foi de 1,538 por cento – um spread de quase 58 pontos de base. Isto é cerca do dobro do que era no início do ano. Isto deve-se em parte ao facto de o BCE ter assinalado o fim das compras de títulos do governo no início deste ano. Uma zona euro com taxas de juro crescentes e sem mais flexibilização quantitativa irá provavelmente exacerbar essa tendência.

A rede elétrica francesa já está sob tensão porque vários reatores nucleares estão fora de serviço enquanto aguardam trabalhos essenciais de manutenção. Como resultado, ao contrário do que seria de esperar, o interconector França-Inglaterra tem conduzido a eletricidade do Reino Unido para França ultimamente. Na tarde de quinta-feira, cerca de seis por cento da produção total de eletricidade do Reino Unido estava a ser enviada para França, de acordo com o National Grid Status Monitor. Lá se vão as ameaças de Macron de cortar o cabo durante as negociações do Brexit.

Os hábitos são difíceis de quebrar. Em França, a ideologia predominante do estatismo – a noção que o Estado sabe melhor – está profundamente enraizada. Podemos esperar mais do mesmo.

 

Europa: o futuro em questão

Viver na UE é, em grande parte, uma experiência extremamente agradável. Na maioria dos estados membros as pessoas gozam de um elevado nível de vida, comem bem e geralmente vivem bem. Mas o bloco está agora confrontado com grandes desafios. A migração em massa é agora agravada por uma inflação endémica e um baixo crescimento. O modelo de exportação mercantilista franco-alemão está defunto numa era de energia mais cara.

Mais grave ainda, os desequilíbrios fundamentais que assolam a união monetária estão agora de novo em jogo. Como já referi aqui anteriormente, a união monetária implicou uma união monetária sem uma união orçamental correspondente. Os franceses há muito que aspiram a um ministério europeu das finanças que, pelo menos, coordenasse os regimes fiscais de todos os estados membros da zona euro, se não mesmo estabelecesse diretamente alguns impostos à escala europeia. Mas os alemães resistiram a isto – e ainda o fazem – porque sabem que a Alemanha acabará por ser o último “Banco da Mãe e do Pai” para todo o continente. A zona euro ainda não teve o seu momento ‘Hamilton‘ em que os estados-membros cedem a responsabilidade orçamental a uma autoridade federal. Como escrevi aqui antes, uma união monetária entre economias desiguais iria sempre beneficiar os países ricos e empobrecer os mais pobres e deficitários.

Há um paralelo na política de segurança. Macron – o homem que disse há dois anos que a NATO está “cerebralmente morta” – quer que a Europa tenha uma “identidade de defesa”. Mas desde que a Suécia e a Finlândia aderiram à NATO, a Irlanda e a Áustria continuam a ser os únicos Estados “neutros” da UE. Os planos franceses para um exército europeu parecem agora irrealistas.

 

O que pensam os mercados sobre esta situação

Os mercados europeus de ações enfrentam agora o seu pior ano desde a crise financeira. A Goldman Sachs espera que o índice pan-europeu Stoxx-600 termine o ano 20 por cento abaixo de onde começou. Já está cerca de 12 por cento abaixo.

Pessoalmente, penso que isso é otimista. A inflação ainda está a acelerar, e as taxas de juro estão apenas a começar a entrar em território positivo. A Itália e outros países são politicamente instáveis. O meu melhor palpite é que Putin, depois de ter provocado Scholz até conseguir distrai-lo, desligará o gás inteiramente no momento em que o Inverno se instalar. Haverá recriminação. Os EUA estão agora em recessão. É provável que a Europa venha a seguir em breve. Mas pelo menos os EUA gozam de um elevado grau de segurança energética.

Este próximo Inverno também será doloroso no Reino Unido. Tanto a Europa como o Reino Unido cometeram enormes erros estratégicos nas suas políticas energéticas, que são agora evidentes, agravados pela ilusão de carbono líquido zero. As elites políticas de ambos os lados do Canal da Mancha não estão à altura dos desafios que enfrentam.

O historiador, Robert Tombs, compara a UE ao falecido império austro-húngaro – “dividido, fraco, e não reformável”. Suspeito que Putin concordaria com esta definição.

 

Companhias citadas neste artigo que merecem análise:

  • Volkswagen AG (ETR:VOW)
  • EDF (EPA:EDF)

 


O autor: Victor Hill é economista financeiro, consultor, formador e escritor, com vasta experiência em banca comercial e de investimento e gestão de fundos. A sua carreira inclui passagens pelo JP Morgan, Argyll Investment Management e Banco Mundial IFC.

 

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