Seleção de António Gomes Marques e tradução de Francisco Tavares
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Porque é que a Rússia ainda vai ganhar, apesar dos ganhos da Ucrânia
Publicado por em 12 de Setembro de 2022 (original aqui)
A Rússia já não está a combater um exército ucraniano equipado pela NATO, mas sim um exército da NATO tripulado por ucranianos. No entanto, a Rússia ainda detém a vantagem, apesar do seu revés de Kharkiv.
O exército ucraniano iniciou uma grande ofensiva contra as forças russas destacadas na região a norte da cidade meridional de Kherson no dia 1 de Setembro. Dez dias mais tarde, os ucranianos tinham alargado o âmbito e a escala das suas operações ofensivas para incluir a região em torno da cidade de Kharkov, a norte.
Enquanto que a ofensiva de Kherson foi rechaçada pelos russos, com as forças ucranianas a sofrerem pesadas perdas tanto em homens como em material, a ofensiva de Kharkov revelou-se um grande sucesso, com milhares de quilómetros quadrados de território anteriormente ocupado por tropas russas colocadas de volta sob controlo governamental ucraniano.
Em vez de lançar a sua própria contra-ofensiva contra os ucranianos que operam na região de Kharkov, o Ministério da Defesa russo (MOD) fez um anúncio que muitas pessoas consideraram chocante: “Para alcançar os objectivos declarados de uma operação militar especial para libertar o Donbass”, os russos anunciaram via Telegram, “foi decidido reagrupar as tropas russas…para aumentar os esforços na direcção de Donetsk”.
Minimizando a noção de retirada, o MOD russo declarou que “para o efeito, no prazo de três dias, foi levada a cabo uma operação para reduzir e organizar a transferência de tropas [russas] para o território da República Popular de Donetsk”.
“No decurso desta operação”, disse o relatório, “foram realizadas várias operações de distracão e medidas de demonstração, indicando as acções reais das tropas” que, declararam os russos, resultaram na “destruição de mais de dois mil combatentes ucranianos e estrangeiros, bem como de mais de cem unidades de veículos blindados e de artilharia”.
Para citar o imortal Yogi Berra, foi “déjà vu tudo de novo”.
Fases da Guerra

A 25 de Março, o chefe da Direcção Operacional Principal do Estado-Maior General das Forças Armadas da Federação Russa, Coronel General Sergei Rudskoy, deu uma conferência na qual anunciou o fim do que chamou a Fase Um da “Operação Militar Especial” (SMO) da Rússia na Ucrânia.
Os objectivos da operação, que tinha começado em 24 de Fevereiro quando as tropas russas atravessaram a fronteira com a Ucrânia, eram causar “tais danos às infra-estruturas militares, equipamento, pessoal das Forças Armadas da Ucrânia” para as imobilizar e impedir qualquer reforço significativo das forças ucranianas destacadas na região de Donbass.
Rudskoy anunciou então que as tropas russas iriam retirar-se e reagrupar-se, para que pudessem “concentrar-se no principal – a libertação completa do Donbass”.
Assim, iniciou-se a Fase Dois.
A 30 de Maio publiquei um artigo no Consortium News onde discuti a necessidade de uma Terceira Fase. Notei que
“Tanto a Fase Um como a Fase Dois da operação da Rússia foram especificamente adaptadas aos requisitos militares necessários para eliminar a ameaça colocada a Lugansk e Donetsk pela acumulação de poder militar ucraniano no leste da Ucrânia. … Em breve, a Rússia anunciará que derrotou as forças militares ucranianas dispostas no Leste e, ao fazê-lo, acabará com a noção da ameaça iminente que deu à Rússia a justificação legal para empreender a sua operação”.
Tal resultado, escrevi, “deixaria a Rússia com uma série de objectivos políticos não cumpridos, nomeadamente a desnazificação, a desmilitarização, a neutralidade permanente da Ucrânia, e a concordância da NATO com um novo quadro de segurança europeu de acordo com as linhas traçadas pela Rússia nas suas propostas de tratado de Dezembro de 2021. Se a Rússia pusesse termo à sua operação militar neste momento”, declarei, “estaria a ceder a vitória política à Ucrânia, que ‘ganha’ por não perder“.
Esta linha de pensamento baseava-se na minha convicção de que “embora se pudesse ter argumentado anteriormente que uma ameaça iminente continuaria a existir enquanto as forças ucranianas possuíssem poder de combate suficiente para retomar a região de Donbass, tal argumento não pode ser avançado hoje“.
Em suma, acreditava que o impulso para a Rússia se expandir para uma terceira fase só surgiria depois de ter completado a sua missão de libertar o Donbass na segunda fase. “A Ucrânia“, disse eu, “mesmo com a infusão maciça de assistência militar da NATO, nunca mais estaria em posição de ameaçar uma conquista russa da região de Donbass“.
Eu estava errado.
Anne Applebaum, uma redatora neoconservadora do The Atlantic, entrevistou recentemente o Tenente-General Yevhen Moisiuk, o comandante adjunto em chefe das forças armadas ucranianas, sobre o sucesso da operação ofensiva ucraniana. “O que realmente nos surpreende”, disse Moisiuk, “é que as tropas russas não estão a ripostar”.
Applebaum deu a sua própria volta à palavra do general. “Se se lhes oferece a opção de lutar ou fugir”, escreveu ela sobre os soldados russos, “muitos deles parecem estar a fugir o mais rápido que podem”.
Segundo Applebaum, o sucesso ucraniano no campo de batalha criou uma nova realidade, onde os ucranianos, conclui ela, “poderiam ganhar esta guerra” e, ao fazê-lo, trazer “o fim do regime de Putin”.
Eu não estava assim tão errado.
Doutrina soviética e doutrina da NATO

A guerra é um negócio complicado. Applebaum parece ignorar isto. Tanto as forças armadas ucranianas como as russas são grandes organizações profissionais apoiadas por instituições concebidas para produzir guerreiros qualificados. Ambas as forças militares são bem lideradas, bem equipadas, e bem preparadas para empreender as missões que lhes foram atribuídas. Encontram-se entre as maiores organizações militares da Europa.
As forças armadas russas, além disso, são constituídas por oficiais do mais alto calibre, que foram submetidos a um treino extensivo nas artes militares. São especialistas em estratégia, operações e tácticas. Eles conhecem o seu negócio.
Por seu lado, os militares ucranianos sofreram uma transformação radical nos anos desde 2014, onde a doutrina da era soviética foi substituída por uma doutrina híbrida que incorpora a doutrina e metodologias da NATO.
Esta transformação foi acelerada dramaticamente desde a invasão russa, com os militares ucranianos a transitarem praticamente do velho equipamento pesado da era soviética para um arsenal que espelha mais de perto a organização e o equipamento das nações da NATO, que estão a fornecer milhares de milhões de dólares de equipamento e treino.
Os ucranianos são, tal como os seus homólogos russos, profissionais militares adeptos da necessidade de se adaptarem às realidades do campo de batalha. A experiência ucraniana, contudo, complica-se ao tentar fundir duas abordagens doutrinárias díspares à guerra (era soviética e NATO moderna) em condições de combate. Esta complexidade cria oportunidades para erros, e os erros no campo de batalha resultam frequentemente em baixas – baixas significativas.
A Rússia levou a cabo três estilos diferentes de guerra nos seis meses que se seguiram à sua entrada na Ucrânia. O primeiro foi uma guerra de manobras, concebida para confiscar tanto território quanto possível para moldar militar e politicamente o campo de batalha.
A operação foi conduzida com aproximadamente 200.000 soldados russos e aliados, que enfrentaram um exército ucraniano activo de cerca de 260.000 soldados apoiados por até 600.000 reservistas. A relação padrão 3:1 entre atacante e defensor não se aplicou – os russos procuraram usar a velocidade, a surpresa e a audácia para minimizar a vantagem numérica da Ucrânia, e no processo esperavam um rápido colapso político na Ucrânia que impedisse qualquer grande combate entre as forças armadas russas e ucranianas.
Este plano foi bem sucedido em algumas áreas (no sul, por exemplo, em torno de Kherson), e fixou as tropas ucranianas e provocou o desvio de reforços para longe das zonas críticas de operação. Mas falhou estrategicamente – os ucranianos não colapsaram, antes se solidificaram – assegurando uma longa e dura luta pela frente.
A segunda fase da operação russa fez com que os russos se reagrupassem para se concentrarem na libertação de Donbass. Aqui, a Rússia adaptou a sua metodologia operacional, utilizando a sua superioridade em poder de fogo para conduzir um avanço lento e deliberado contra as forças ucranianas escavadas em extensas redes defensivas e, ao fazê-lo, conseguindo rácios de baixas inauditas que tiveram dez ou mais ucranianos mortos ou feridos por cada baixa russa.
Enquanto a Rússia avançava lentamente contra as forças ucranianas entrincheiradas, os EUA e a NATO forneceram à Ucrânia milhares de milhões de dólares de equipamento militar, incluindo o equivalente a várias divisões blindadas (tanques, veículos blindados de combate, artilharia e veículos de apoio), juntamente com um extenso treino operacional sobre este equipamento em instalações militares fora da Ucrânia.
Em resumo, enquanto a Rússia estava ocupada a destruir os militares ucranianos no campo de batalha, a Ucrânia estava ocupada a reconstituir esse exército, substituindo as unidades destruídas por forças novas, extremamente bem equipadas, bem treinadas e bem lideradas.
A segunda fase do conflito viu a Rússia destruir o antigo exército ucraniano. No seu lugar, a Rússia enfrentou unidades territoriais e nacionais mobilizadas, apoiadas por forças reconstituídas formadas pela NATO. Mas a maior parte das forças treinadas pela NATO foram mantidas em reserva.
A Terceira Fase – NATO vs. Rússia

Estas são as forças que têm estado empenhadas nos combates actuais. A Rússia encontra-se numa verdadeira guerra por procuração com a NATO, enfrentando uma força militar ao estilo da NATO que está a ser logisticamente sustentada pela NATO, treinada pela NATO, fornecida com informações da NATO, e trabalhando em harmonia com os planificadores militares da NATO.
O que isto significa é que a actual contra-ofensiva ucraniana não deve ser vista como uma extensão da segunda fase da batalha, mas sim como o início de uma nova terceira fase que não é um conflito ucrano-russo, mas sim um conflito NATO-Rússia.
O plano de batalha ucraniano leva o carimbo “Made in Bruxelas” por todo o lado. A composição da força foi determinada pela NATO, assim como o calendário dos ataques e a direcção dos mesmos. Os serviços secretos da NATO localizaram cuidadosamente as fissuras nas defesas russas e identificaram os nós críticos de comando e controlo, logística e concentração de reservas que foram alvo da artilharia ucraniana, que opera com base num plano de controlo de fogo criado pela NATO.
Em resumo, o exército ucraniano que a Rússia enfrentou em Kherson e nos arredores de Kharkov era diferente de qualquer oponente ucraniano que tivesse enfrentado anteriormente. A Rússia já não estava a combater um exército ucraniano equipado pela NATO, mas sim um exército da NATO tripulado por ucranianos.
A Ucrânia continua a receber milhares de milhões de dólares de assistência militar, e tem actualmente dezenas de milhares de tropas em formação extensiva em nações da NATO.
Haverá uma quarta fase, e uma quinta fase … tantas fases quantas forem necessárias antes de a Ucrânia ou esgotar a sua vontade de lutar e morrer, ou a NATO esgotar a sua capacidade de continuar a fornecer a abastecer as forças armadas ucranianas, ou a Rússia esgotar a sua vontade de combater um conflito inconclusivo na Ucrânia. Em Maio, chamei à decisão dos EUA de fornecer biliões de dólares de assistência militar à Ucrânia “uma mudança de jogo”.
Falha Massiva na Inteligência

Aquilo a que estamos a assistir hoje na Ucrânia é como este dinheiro mudou o jogo. O resultado é mais forças ucranianas e russas mortas, mais civis mortos, e mais equipamento destruído.
No entanto, para que a Rússia prevaleça, terá de identificar as suas muitas falhas que conduzirm à bem sucedida ofensiva ucraniana e adaptar-se em conformidade. Antes de mais, a ofensiva ucraniana em torno de Kharkov representa uma das mais graves falhas de inteligência por parte de uma força militar profissional desde o fracasso israelita em prever o ataque egípcio ao Canal de Suez que deu início à Guerra do Yom Kippur de 1973.
Os ucranianos tinham vindo a sinalizar a sua intenção de conduzir uma ofensiva na região de Kherson há já muitas semanas. Parece que quando a Ucrânia iniciou os seus ataques ao longo da linha de Kherson, a Rússia assumiu que esta era a tão esperada ofensiva, e enviou rapidamente reservas e reforços para esta frente.
Os ucranianos foram repelidos com pesadas perdas, mas não antes de a Rússia ter comprometido as suas reservas. Quando o exército ucraniano atacou na região de Kharkov alguns dias mais tarde, a Rússia foi apanhada de surpresa.
E depois há a medida em que a NATO se tinha integrado em todos os aspectos das operações militares ucranianas.
Como poderia isto acontecer? Uma falha de inteligência desta magnitude sugere deficiências tanto na capacidade da Rússia de recolher dados de inteligência, como uma incapacidade de produzir avaliações oportunas e precisas para a liderança russa. Isto exigirá uma revisão de cima abaixo para ser adequadamente abordado. Em suma, as cabeças vão rolar – e em breve. Esta guerra não parará tão cedo, e a Ucrânia continua a preparar-se para futuras acções ofensivas.
Porque é que a Rússia ainda vai ganhar
No final, continuo a acreditar que o jogo final permanece o mesmo – a Rússia vencerá. Mas o custo do prolongamento desta guerra tornou-se muito mais elevado para todas as partes envolvidas.
A contra-ofensiva ucraniana bem sucedida precisa de ser colocada numa perspectiva adequada. As baixas que a Ucrânia sofreu, e continua a sofrer, para alcançar esta vitória são insustentáveis. A Ucrânia esgotou as suas reservas estratégicas, e estas terão de ser reconstituídas para que a Ucrânia possa ter quaisquer aspirações de continuar um avanço neste sentido. Isto levará meses.
A Rússia, entretanto, nada mais perdeu do que algum espaço indefensável. As baixas russas foram mínimas, e as perdas de equipamento foram prontamente substituídas.
A Rússia reforçou efectivamente a sua postura militar ao criar fortes linhas defensivas no norte, capazes de resistir a qualquer ataque ucraniano, ao mesmo tempo que aumentou o poder de combate disponível para completar a tarefa de libertar o resto da República Popular de Donetsk sob controlo ucraniano.
A Rússia tem muito mais profundidade estratégica do que a Ucrânia. A Rússia está a começar a atingir alvos críticos de infra-estruturas, tais como centrais eléctricas, que não só paralisarão a economia ucraniana, mas também a sua capacidade de mover rapidamente grandes quantidades de tropas através de comboios.
A Rússia aprenderá com as lições que a derrota de Kharkov lhe ensinou e continuará os seus objectivos da sua missão.
A conclusão – a ofensiva de Kharkov foi a melhor coisa que pôde acontecer à Ucrânia, enquanto que a Rússia está longe de ter atingido o fundo do poço. A Rússia tem de fazer mudanças para resolver os problemas identificados através da derrota de Kharkov. Ganhar uma batalha é uma coisa; ganhar uma guerra é outra.
Para a Ucrânia, as enormes perdas sofridas pelas suas próprias forças, combinadas com os danos limitados infligidos à Rússia, significa que a ofensiva de Kharkov é, na melhor das hipóteses, uma vitória pírrica, uma vitória que não muda a realidade fundamental de que a Rússia está a ganhar, e irá ganhar, o conflito na Ucrânia.
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O autor: Scott Ritter é um antigo oficial de inteligência do Corpo de Fuzileiros Navais dos EUA que prestou serviço na antiga União Soviética implementando tratados de controlo de armas, no Golfo Pérsico durante a Operação Tempestade no Deserto e no Iraque supervisionando o desarmamento das ADM. O seu livro mais recente é Disarmament in the Time of Perestroika, publicado pela Clarity Press.
Este texto foi-me enviado por um amigo e, por razões evidentes, relacionadas com o conhecimento que não tenho de campos de guerra, não me atrevo a discutir com Scott Ritter, experiente que será na matéria.
Continuo a pensar que esta guerra poderia ter sido evitada se Mikhail Gorbatchev tivesse sido devidamente apoiado pelo Ocidente, nomeadamente e sobretudo pela União Europeia, em vez de tentarem destruir a Rússia e vexado o então Presidente da ex-União Soviética e, consequentemente a Rússia, o que continuou a ser feito no tempo de Boris Iéltsin. Mais uma vez, a União Europeia seguiu caninamente os interesses dos USA.
Agora, ganhe quem ganhar esta guerra -entre os USA, a Grã-Bretanha, com o apoio dos países da OTAN e outros como a Suécia e a Finlândia, por um lado e a Rússia pelo outro, onde os ucranianos são carne para canhão-, os países da União Europeia e da restante Europa já perderam e duvido que consigam voltar a ser o que foram em termos culturais, sociais, económicos (claro, Portugal esteve sempre na cauda e não tardará a ocupar o último lugar).
António Gomes Marques