Espuma dos dias — A Etiópia expõe a hipocrisia ocidental sobre a Ucrânia. Por Finian Cunningham

Seleção e tradução de Francisco Tavares

5 m de leitura

 

A Etiópia expõe a hipocrisia ocidental sobre a Ucrânia

 Por Finian Cunningham

Publicado por  em 19 de Outubro de 2022 (original aqui)

 

© Foto: REUTERS/Tiksa Negeri

 

A Etiópia é uma pedra de toque para expor as lágrimas de crocodilo e a duplicidade dos Estados Unidos e da Europa sobre a sua maquinação na Ucrânia contra a Rússia.

A guerra dura há dois anos na Etiópia reacendeu-se na sua região sitiada do norte de Tigré, onde milhões de pessoas foram deslocadas e estão a sofrer de fome. Os Estados Unidos, a União Europeia e outros governos ocidentais não estão a fazer nada para evitar a guerra no Corno de África.

A magnitude do sofrimento e das violações na Etiópia ensombra totalmente o que está a acontecer na Ucrânia, onde os EUA e os seus parceiros da NATO estão a injectar milhares de milhões de dólares em ajuda financeira e em armas militares. A indiferença dos governos ocidentais e dos meios de comunicação social em relação ao horror da Etiópia traz à luz a hipocrisia e as motivações políticas cínicas para a sua suposta “preocupação” com a Ucrânia.

A preocupação com a Ucrânia é um jogo geopolítico cínico que tem a ver com o confronto e a subjugação da Rússia. Sabemos isto porque milhões de pessoas que sofrem na Etiópia dificilmente registam um sinal de atenção, para não falar de condenação, entre os governos e meios de comunicação ocidentais.

De facto, a falta de preocupação ocidental com a Etiópia não se deve apenas a uma indiferença apática. Pode-se dizer que os Estados Unidos e os seus fiéis aliados europeus partilham a responsabilidade pelo desastre humanitário na segunda nação mais populosa de África.

O Banco Mundial libertou milhões de dólares para o governo etíope de Abiy Ahmed apesar da ofensiva em curso do seu exército contra a região de Tigré e apesar da sua política de cerco a toda a população de cerca de seis milhões de pessoas, impedindo qualquer forma de acesso humanitário. O apoio financeiro do Ocidente sustenta o governo de Abiy em Adis Abeba.

Washington e a União Europeia pouco ou nada dizem em termos de protesto contra a agressão genocida perpetrada pelo governo central da Etiópia contra o Tigré.

Não só isso, mas o Primeiro-Ministro Abiy Ahmed é também ajudado e incitado pelo ditador da Eritreia Isaias Afwerki a atacar a região do Tigré. A guerra tem vindo a incendiar-se nas últimas semanas com as forças de defesa nacional etíopes aliadas com os militares da Eritreia para lançar ataques aéreos e terrestres contra cidades e aldeias.

Esta é uma repetição da fase inicial da guerra que irrompeu em Novembro de 2020, quando as forças eritreias se juntaram ao exército de Abiy para cometer crimes de guerra horríveis em Tigré. Abiy e Afwerki negaram categoricamente as violações para logo mais tarde serem reconhecidos como cúmplices.

Os Estados Unidos e a Europa falam sobre o carácter sagrado das fronteiras e a soberania a propósito da invasão russa da Ucrânia. (Sem mencionar, claro, que as acções da Rússia foram provocadas pelo armamento da NATO de um regime anti-russo em Kiev desde 2014). No entanto, os governos ocidentais nada têm a dizer quando se trata da Eritreia conivente com a Etiópia para violar o Tigré e massacrar civis naquele país.

O povo de Tigré, já reduzido à fome por dois anos de cerco, está a ser massacrado nas suas casas pelas forças governamentais centrais etíopes juntamente com os seus cúmplices eritreus. Infligem-se decapitações e violações. A cidade de Shire no norte foi capturada esta semana após dias de ataques aéreos a habitações de barracas que deixaram várias crianças mortas. Estão a ser cometidos crimes indescritíveis e, no entanto, os governos e os meios de comunicação ocidentais estão a fechar os olhos a este horror.

Isto porque convém a Washington ver a Etiópia ser reduzida a um Estado falhado.

Abiy Ahmed chegou ao poder em 2018 e foi imediatamente saudado como um “reformador democrático” pelos meios de comunicação ocidentais. Recebeu o Prémio Nobel da Paz em 2019 por ter supostamente acabado com as animosidades históricas entre a Etiópia e a Eritreia. Foi uma operação de relações públicas cuidadosamente coreografada.

A ascensão de Abiy ao poder foi cultivada pelos governos ocidentais. Este antigo oficial dos serviços secretos militares que foi destacado durante anos nos EUA foi preparado pela CIA. A sua missão era destruir a independência política e económica da Etiópia a partir do interior.

Meses após ganhar o Prémio Nobel, o “reformador” lançou uma guerra contra a região do Tigré precisamente porque continuou a ser um reducto político contra a tomada do poder por Abiy. Antes do início da guerra em Novembro de 2020, a região norte foi sujeita a um cerco de meses durante o qual a electricidade, as telecomunicações e outros serviços foram cortados. O autor deste texto viveu em Tigré durante a preparação da guerra e pode atestar os acontecimentos de fundo.

Abiy fez afirmações e os meios de comunicação social ocidentais relataram sem fundamento que os rebeldes de Tigré iniciaram a guerra atacando as forças governamentais. A realidade é que a guerra foi o resultado calculado de provocações por Abiy para justificar uma agressão genocida.

Alguns comentadores ocidentais fizeram a falsa alegação de que a administração Biden utilizou o Tigré como representante para minar o governo central em Adis Abeba. Este raciocínio deu lugar à grotesca posição assumida por alguns no Ocidente de apoiar o regime Abiy com base na noção deformada de solidariedade com a independência africana contra a ingerência imperialista americana.

Um tal ponto de vista desde a poltrona é como colocar em primeiro lugar o telhado. A administração Biden e os seus aliados europeus não têm feito nada para ajudar o povo Tigré. No ano passado, quando os rebeldes do Tigré conseguiram infligir graves derrotas às forças de Abiy e aos seus cúmplices eritreus, foi Washington que então exortou os combatentes do Tigré a entrarem em conversações de paz.

A administração Biden interveio assim para salvar o regime de Abiy de um quase colapso. Como se verificou, as conversações de paz propostas não produziram nenhum alívio para o Tigré, nenhum levantamento do cerco, permitindo tão só que o governo central e os seus aliados eritreus se reagrupassem e redobrassem a agressão como estão actualmente a fazer.

Os americanos orquestraram um impasse que prolonga a miséria em Tigré. Porquê? Porque, em última análise, a guerra enfraqueceu gravemente a Etiópia e a transformou num Estado falhado.

Antes de Abiy chegar ao poder em 2018, o país tinha a economia mais forte de África e era em grande parte parceiro da China para o desenvolvimento estratégico. A Etiópia era vista como a porta de entrada para a China lançar os seus ambiciosos planos de investimento e comércio para toda a África.

Em apenas quatro anos, no entanto, a Etiópia foi posta de joelhos devido à guerra civil e à fome. Abiy Ahmed, o laureado com o Prémio Nobel, supervisionou esse catastrófico desaparecimento. E os Estados Unidos encobriram os seus crimes até ao fim, porque a ruptura da Etiópia era o que Washington queria. Os governos europeus, sem carácter, alinharam com aquilo que os americanos ordenaram.

A Etiópia é uma pedra de toque para expor as lágrimas de crocodilo e a duplicidade de americanos e europeus sobre a sua maquinação na Ucrânia contra a Rússia.

Há aqui um forte eco da história. Na década de 1930 com a invasão de Mussolini, a Etiópia, ou Abissínia como era então conhecida, trouxe à luz a crescente política fascista das potências ocidentais e o cinismo falido da Liga das Nações, a precursora das Nações Unidas. Cerca de nove décadas depois, há lições semelhantes.

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O autor: Finian Cunningham Antigo editor e escritor para as principais organizações noticiosas. Tem escrito extensivamente sobre assuntos internacionais, com artigos publicados em várias línguas. É licenciado em Química Agrícola e trabalhou como editor científico para a Royal Society of Chemistry, Cambridge, Inglaterra, antes de seguir uma carreira no jornalismo. É também músico e compositor. Durante quase 20 anos, trabalhou como editor e escritor nas principais organizações de comunicação social, incluindo The Mirror, Irish Times e Independent. Vencedor do Prémio Serena Shim para a Integridade Incomprometida no Jornalismo (2019).

 

 

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