O Reino Unido no centro do furacão criado pelo neoliberalismo: I – Notas de leitura sobre a queda de Liz Truss — Texto 11. A Declaração de Outono – um exercício de absurdidade e de danos públicos.  Por Bill Mitchell

Nota de editor

Inicialmente concebidos num contexto de uma série de maior dimensão e complexidade analítica – Neoliberalismo, Pensões por capitalização e Instabilidade Social e Política –, optou-se por publicar de imediato os textos respeitantes ao troço “O Reino Unido no centro do furacão criado pelo neoliberalismo”, uma vez que, conforme diz o autor da série, Júlio Marques Mota, “… o que neles se escreve não é diferente do que poderá ser escrito sobre qualquer outro país europeu neste momento”, podendo mesmo fornecer “… uma ótima grelha de leitura sobre a realidade atual e atrevo-me mesmo a dizer sobre o futuro próximo que aí vem” (ver aquiHoje faço 80 anos… tempos difíceis, o vinho que não bebi e que nunca procurei beber”).

Este é o décimo primeiro dos doze textos que compõem a parte I da série “O Reino Unido no centro do furacão criado pelo neoliberalismo”.

FT


Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

13 min de leitura

Texto 11. A Declaração de Outono – um exercício de absurdidade e de danos públicos (*)

(*) Esta é uma reedição do texto já publicado aqui na Viagem dos Argonautas em 28/12/2022

 Por Bill Mitchell

Publicado por bilbo.economicoutlook em 21 de Novembro de 2022 (original aqui)

 

Em primeiro lugar, o Banco de Inglaterra parece ter abandonado a credibilidade. Para não serem ultrapassados, os decisores em política orçamental do governo juntaram-se agora ao absurdo do pensamento político dominante, reimpondo a austeridade ao mesmo tempo que a economia se encaminha para a recessão. Milton Friedman e o seu gangue costumavam afirmar que o problema da política orçamental era ser praticada de uma forma “pró-cíclica”, com o que queriam dizer que, devido aos desfasamentos de tempo envolvidos na implementação, quando um estímulo para lidar com uma recessão estava em vigor e com impacto, a economia privada já estava em recuperação – de modo que a política orçamental estava a trabalhar para empurrar o ciclo na mesma direção. Afirmaram que isso era inerente à utilização da política orçamental, o que a tornava inadequada para ser utilizada como medida contra-estabilizadora (contra-cíclica). O facto de essa afirmação (que é contestável) ter ganho o debate nos anos 70 é a razão pela qual todos os disparates sobre a independência do banco central entraram em cena e pela qual os neoKeynesianos afirmam que a política monetária deve ser o instrumento escolhido para estabilizar as flutuações das despesas. Agora, os Conservadores britânicos estão a utilizar deliberadamente a política orçamental de uma forma pró-cíclica – empurrando as forças já recessivas para o pântano. Uma ação totalmente desnecessária e claramente perigosa. É quase incrível que se safem com isto e o Partido Trabalhista oferece-se essencialmente apenas para afinar um pouco mais os “cordas do violino” do governo.

Este título foi publicado no jornal Melbourne Age em 18 de Novembro, depois do anúncio do Chanceler:

A Economia em queda livre: subida dos impostos para salvar a economia que se afunda.

 

Este título diz-nos a que ponto se tornou absurdo o debate público.

A língua inglesa perde significado quando se lê afirmações como esta.

 

A Declaração de Outono

Na semana passada, o novo Chanceler britânico (estou a perder a conta ultimamente) apresentou a Autumn Statement 2022 (publicada a 17 de Novembro de 2022) – que esboça a estratégia orçamental que substituiu a estratégia orçamental anterior que substituía a anterior.

O melhor de tudo foi que a edição impressa foi “impressa em papel contendo no mínimo 40% de fibras recicladas”.

E mesmo esse rácio bastante baixo deve dizer-lhe o quanto o resto foi mau.

Não vou analisar a Declaração de Outono em pormenor.

É um exemplo espalhafatoso de dogma e um catálogo de mentiras, como por exemplo:

  1. “Uma medida chave da sustentabilidade orçamental é a trajetória da dívida pública como percentagem do PIB”.
  2. “Assegurar que a dívida em percentagem do PIB caia ao longo do tempo permite ao governo financiar serviços públicos de alta qualidade, preservando simultaneamente a sua capacidade de apoiar as famílias e as empresas face aos choques económicos”.
  3. “A redução da dívida em percentagem do PIB também ajudará a reduzir as despesas com juros da dívida, que de outra forma poderiam ser gastos em serviços públicos”.

e muito mais.

Há muita referência à “sustentabilidade orçamental” mas nenhuma articulação clara sobre o que ela é, a não ser a redução dos rácios da dívida pública através da austeridade.

Mas lembre-se, a dívida pública pendente é apenas os défices orçamentais do passado que não foram totalmente eliminados com impostos.

E manifestam-se pela retenção dos ativos financeiros líquidos (acumulados) pelo sector não governamental, em consequência desses défices.

O governo britânico está a propor em termos da sua despesa total gerida:

  1. Cortar a despesa pública corrente em 1,4% em termos nominais entre 2022-23 e 2024-25, o que se traduz, de acordo com as previsões de inflação atuais, num corte real de mais de 10% na despesa.
  2. Reduzir significativamente a despesa líquida de capital de 3,5% do PIB em 2021-22 para 2,2% em 2027-28.
  3. Reduzir o défice orçamental corrente do governo de 4,6% em 2022-23 para 0,3% do PIB em 2025-26.

Assim, embora o calendário dos cortes de despesas e das subidas de impostos pareça ser decididamente “político” (com a aproximação de uma eleição), o facto é que a Declaração de Outono é um documento de austeridade.

Voltemos a isto.

George Osborne descobriu em 2012, após ter tentado este tipo de estratégia a partir de Maio de 2010, que a mesma era insustentável, dados os danos que infligia à economia.

Suspeito que o mesmo resultado irá ocorrer novamente.

A questão é que se a economia está a entrar em recessão, então a austeridade é contraproducente – este é um exemplo de política pró-cíclica mal concebida.

Mas o verdadeiro golpe baixo para mim, foi que a purga em curso no seio do Partido Trabalhista Britânico de qualquer coisa que possa ser considerada “progressista ” permitiu que a liderança deste partido pareça quase tão má como a dos Conservadores.

O artigo da BBC (19 de Novembro de 2022) – Keir Starmer [atual líder do partido Trabalhista] aceita cálculos de buraco negro de 55 mil milhões de libras – diz-nos até que ponto o lado não conservador da política se fundiu com o lado conservador à medida que o lado conservador se fragmenta numa corrida para a louca extrema-direita.

É realmente uma declaração de política global moderna que dá às vozes progressistas pouca esperança de que as lições orçamentais da Grande Recessão Financeira que rebentou em 2008, da pandemia e mais coisas tenham sido aprendidas por qualquer outra pessoa que não aqueles que sabiam das coisas antes desses acontecimentos.

Li muito da história britânica e juro que poderíamos cortar e colar datas e Starmer parecer-se-ia com Callaghan [líder trabalhista que foi primeiro-ministro de 1976 a 1979] e [Rachel] Reeves [Chanceler sombra do partido Trabalhista] com Healey [Chanceler trabalhista de 1974 a 1979] mas sem a pompa.

 

A resposta do OBR [Office of Budget Responsibility]

Voltando um pouco atrás, o Gabinete Britânico de Responsabilidade Orçamental é um daqueles organismos que a era neoliberal gerou, onde a organização fica cheia de macroeconomistas neokeynesianos que não estão qualificados para lidar com o mundo real e pensam que os modelos DSGE [Dynamic stochastic general equilibrium – Equilíbrio geral dinâmico estocástico] são a realidade e fazem previsões aterradoras de fenómenos astronómicos (buracos negros) que os governos utilizam para despolitizar o debate público, de modo a poderem infligir austeridade (geralmente) aos cidadãos, assegurando ao mesmo tempo que os processos de distribuição continuam a favorecer os mais ricos.

Estas organizações tresandam a autoridade – doutorados por todo o lado – que o público não pode contestar porque a linguagem utilizada é opaca e soa como muito técnica.

A realidade é que estas organizações apenas inventam coisas.

Têm algum modelo informático que é apenas uma representação do princípio GIGO [N.T. Garbage in, garbage out – entrada de lixo, produz saída de lixo] e cospe números pré-programados para fornecer o resultado ideológico que os economistas responsáveis desejam – sempre a fingir ser científico e significativo.

A última charada é o chamado “buraco negro” de 55 mil milhões de libras ou lacuna orçamental que tem dominado o enquadramento da Declaração de Outono e a resposta das Oposições.

No seu recente lançamento –  Economic and fiscal outlook – November 2022 – Perspetivas económicas e fiscais, Novembro de 2022 – o melhor que se podia encontrar era que a edição impressa estava “impressa em papel contendo no mínimo 40% de fibras recicladas “.

Nesse documento, obtemos uma pletora de análises que diz:

1. A inflação atual é transitória e cairá “acentuadamente ao longo do próximo ano e é arrastada para baixo de zero em meados da década, devido à queda dos preços da energia e dos alimentos antes de voltar ao seu objetivo de 2% em 2027”.

Observamos que embora os Monetaristas afirmem que se trata de um êxito das subidas das taxas de juro do Banco de Inglaterra, os impulsionadores desse episódio inflacionista não são sensíveis às variações das taxas de juro e têm uma vida própria – o que fará, de qualquer modo, que a inflação baixe.

Fique de olho no Japão, se não acredita em mim.

2. “A consequente recuperação dos rendimentos reais, do consumo e do investimento vê o PIB regressar ao crescimento em 2024 e a produção recuperar o seu nível pré-pandémico no quarto trimestre do mesmo ano”.

Portanto, não há uma recessão sustentada nas suas perspetivas.

3. Se acredita nessa análise, então todo o alarido sobre a Grã-Bretanha que enfrenta uma crise de emergência deve ser simplesmente esquecido.

Mas o OBR afirma que “as perspetivas orçamentais a médio prazo pioraram materialmente desde a nossa previsão de Março devido a uma economia mais fraca, taxas de juro mais elevadas, e inflação mais elevada”.

 

Os pontos 1 e 2 são sobre uma recuperação a médio prazo, mas o ponto 3 sugere que à medida que a economia recupera para uma baixa inflação, as finanças públicas correm perigo.

O que se segue é a habitual diatribe sobre o aumento da dívida, o crescimento das receitas a diminuir, o aumento das despesas e todo o resto que faz troça das regras orçamentais em vigor.

Um escárnio do escárnio, no entanto.

 

O que apresentámos é um conjunto de propostas que não são contestadas em substância, mas às quais juntaram grandes números para fazer parecer que algo de mau está a acontecer.

Se examinarmos a base do argumento, então realmente não há nada de terrível.

O aumento da dívida é apenas uma consequência da prática institucional desnecessária de emitir dívida para fazer face ao aumento das despesas líquidas.

Significa apenas que o governo está a proporcionar uma opção de carteira adicional ao sector não-governamental na sua busca de gestão da riqueza.

Um ativo sem risco a acrescentar à sua carteira de ativos de risco.

Avaliar isto com uma regra orçamental que “visa equilibrar o orçamento atual e conseguir que a dívida subjacente caia em 2025-26” deveria apenas levar o investigador inteligente a questionar os objetivos, em vez de os utilizar como uma espécie de legitimidade invariável com a qual julgamos os resultados.

Uma tal regra orçamental, como a maioria das que estão em vigor, é, na melhor das hipóteses, destrutiva e demonstra uma incapacidade manifesta de compreender o objetivo da política orçamental, que não é o de alcançar algum tipo de “número”, mas o de fornecer apoio às despesas para ajudar o sector não governamental a alcançar os seus resultados esperados em matéria de despesa e de poupança, assegurando ao mesmo tempo que a economia está a funcionar com pleno emprego – entre outras coisas.

É altamente improvável que o equilíbrio orçamental real que coincidirá com o objetivo funcional da utilização da política seja um ‘equilíbrio’.

É muito provável que um défice orçamental contínuo de magnitudes variáveis seja o resultado mais apropriado para a maioria das nações – a Grã-Bretanha definitivamente.

O OBR estima que o défice externo “aumentará acentuadamente de 2,0 por cento do PIB em 2021 para 5,8 por cento em 2022”. Quer aumente ou não até esse nível, permanecerá certamente em défice.

O que significa que qualquer tentativa de levar a posição orçamental de volta ao “equilíbrio” seria possível, antes da recessão minar a procura, se o sector privado interno assumisse posições de dívida ainda maiores.

Esse sector já está sobre endividado e é necessário um apoio orçamental contínuo ao crescimento do rendimento para proporcionar às famílias e empresas a capacidade de reduzir essas perigosas posições de endividamento.

A questão é que calcular “hiatos orçamentais ” contra um ponto de equilíbrio de referência que não se sabe sequer o que é, será pura e simplesmente um exercício idiota.

4. A curto prazo, o OBR afirma que a economia britânica “entra numa recessão por um período de duração superior a um ano a partir do terceiro trimestre de 2022, com uma queda de 2,1 por cento na produção neste intervalo de tempo “.

Assim, qualquer resposta política razoável, dado que se espera que a inflação caia drasticamente em breve, seria fornecer algum apoio orçamental extra à economia para evitar uma recessão dessa magnitude.

O OBR reconhece que “sem o apoio orçamental às famílias e empresas fornecido pelo EPG [Energy Price Guarantee] e outras medidas anunciadas desde Março, estimamos que a recessão seria 1,1 pontos percentuais mais profunda, com uma queda do PIB de 3,2 por cento, e a queda do hiato do produto 0,5 pontos percentuais mais profunda”.

A questão é, se o apoio orçamental milita contra um hiato ainda mais profundo, então porquê permitir a criação desse hiato?

5. Aqui o OBR passa para o domínio da ficção – a proposta padrão segundo a qual quando os resultados orçamentais (e por implicação errónea), a solvência governamental, são “mais vulneráveis a choques futuros ou oscilações no sentimento do mercado”, mais os défices permanecem mais longamente.

Esta é a narrativa que foi refinada na Grã-Bretanha, ao ponto de todos os lados da política acreditarem que é verdade.

Não é verdade.

Os resultados orçamentais não são vulneráveis ou o contrário – eles são o que são.

O que é vulnerável a choques externos é o estado da economia – emprego, etc. – e são essas vulnerabilidades que devem reger as decisões orçamentais.

Não há absolutamente nenhuma razão para o governo britânico permitir que a economia entre em recessão.

Se as previsões do OBR forem precisas, então essa recessão será uma escolha política e não algo que é inevitável.

E os políticos deverão então ser julgados severamente por permitirem (segundo as previsões do OBR) que o desemprego aumente 200.000 nos próximos 12 meses e mais 300.000 no ano seguinte.

Como referi acima, a liderança da Oposição aceitou a alegação do OBR de que existe um “buraco negro” na posição orçamental – o que significa apenas o resultado orçamental estimado em relação a um equilíbrio ilegítimo de referência – e as alegações de que irão “reparar os danos”.

Nesse momento, os olhos ficam vidrados e tem-se pena dos britânicos se for essa a sua escolha – ou os Tories ou a ressurreição blairista de Stramer.

A Esquerda na Grã-Bretanha parece obcecada com o cálculo do “buraco negro”, em vez de rejeitar todo o conceito, como o deveria fazer.

Se são £35 mil milhões ou £60 mil milhões é irrelevante para o que quer que seja relevante.

A liderança trabalhista quase ratificou o conceito ilegítimo, afirmando que utilizará o estimado “buraco negro” “como base para as suas políticas em qualquer manifesto futuro e que aceitou que a dívida nacional teria de começar a cair como proporção da produção económica dentro de “um período de tempo”.

Por isso, querem regressar à posição de austeridade-leve em que o governo se empenha deliberadamente em destruir a riqueza privada.

E a única forma de o fazerem é minando os atuais serviços públicos e/ou cortando os rendimentos disponíveis das famílias.

Starmer disse aos meios de comunicação social que o Partido Trabalhista “quer ser o ‘partido das finanças sólidas'”.

A BBC informa que o Partido Trabalhista embarcará num “trabalho de reparação orçamental de 55 mil milhões de libras”, se for eleito.

Que Deus nos ajude!

O privilégio dos ‘números orçamentais ‘ sobre as coisas reais que interessam é um elemento central do  neoliberalismo.

Privilegiar os ‘números orçamentais ‘ em detrimento das coisas reais que importam é um elemento central do neoliberalismo

O Partido Trabalhista deixa de ser um partido dos trabalhadores se comprar essa narrativa.

O outro aspeto interessante do relatório do OBR é que na realidade não detalha de forma alguma como é que a posição orçamental pode constituir uma ameaça sobre a qual os ‘mercados’ irão agir.

Tudo isto ´não passa de um aceno de cabeça, uma piscadela de olho.

O tipo de receio que tem sido transmitido aos britânicos é de que, se eles saírem da linha, alguns atores globais amorfos mandarão a libra para o quinto dos infernos.

A realidade é que a libra britânica não entrará em colapso de nenhuma forma fundamental.

As moedas estão sempre a subir e a descer, e a maioria de nós alegremente desconhecemos essas mudanças.

 

Conclusão

Escrevendo da terra do sol nascente, onde o governo acaba de anunciar mais estímulos orçamentais, o Banco do Japão recusa-se a aumentar as taxas de juro e continua a sua política de controlo da curva de rendimentos, e a inflação é relativamente baixa, leva-me a concluir: pobre Grã-Bretanha!

 


O autor: Bill Mitchell [1952 – ] doutorado em Economia, é professor de economia na Universidade de Newcastle, Nova Gales do Sul, Austrália e um notável defensor da teoria monetária moderna. É também Professor Doutor em Economia Política Global, Faculdade de Ciências Sociais, Universidade de Helsínquia, Finlândia. Autor entre outras obras de: Macroeconomics (Macmillan, Março de 2019), co-escrito com L. Randall Wray e Martin Watts; Reclaiming the State: A Progressive Vision of Sovereignty for a Post-Neoliberal World (Setembro de 2017), co-escrito com Thomas Fazi; Eurozone Dystopia: Groupthink and Denial on a Grand Scale (Maio 2015); Full Employment Abandoned: Shifting Sands and Policy Failures (2008), co-escrito com Joan Muysken.

 

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