O Reino Unido no centro do furacão criado pelo neoliberalismo: I – Notas de leitura sobre a queda de Liz Truss — Texto 12. Como os fundos de pensões britânicos, incluindo o fundo de pensões do Banco de Inglaterra, vieram a assumir riscos que poderiam fazer explodir o mundo financeiro.  Por Marjorie Encelot

Nota de editor

Inicialmente concebidos num contexto de uma série de maior dimensão e complexidade analítica – Neoliberalismo, Pensões por capitalização e Instabilidade Social e Política –, optou-se por publicar de imediato os textos respeitantes ao troço “O Reino Unido no centro do furacão criado pelo neoliberalismo”, uma vez que, conforme diz o autor da série, Júlio Marques Mota, “… o que neles se escreve não é diferente do que poderá ser escrito sobre qualquer outro país europeu neste momento”, podendo mesmo fornecer “… uma ótima grelha de leitura sobre a realidade atual e atrevo-me mesmo a dizer sobre o futuro próximo que aí vem” (ver aquiHoje faço 80 anos… tempos difíceis, o vinho que não bebi e que nunca procurei beber”).

Este é o décimo segundo e último dos doze textos que compõem a parte I da série “O Reino Unido no centro do furacão criado pelo neoliberalismo”.

FT


Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

12 min de leitura

Texto 12. Como os fundos de pensões britânicos, incluindo o fundo de pensões do Banco de Inglaterra, vieram a assumir riscos que poderiam fazer explodir o mundo financeiro

 Por Marjorie Encelot

Publicado por  em 3 de Outubro de 2022 (original aqui)

 

No Reino Unido, na semana passada, o Banco de Inglaterra teve de intervir numa emergência para evitar um estrangulamento das condições de crédito à economia real. Os profissionais da finança acreditam que isso impediu outro Lehman Brothers. Como é que os fundos de pensões britânicos, que supostamente deveriam ter uma gestão de dinheiro cautelosa, acabaram por utilizar estratégias de derivados e de alavancagem? Explicação.

 

Crédito foto: Shutterstocks

 

A intervenção de emergência do Banco de Inglaterra, na quarta-feira [28 de Setembro], para restabelecer a calma no mercado da dívida do Reino Unido pode ter salvo o mundo financeiro de outro episódio de contágio do Lehman Brothers. A queda das obrigações do governo britânico “[já] foi sentida em todo o mercado dos títulos de Tesouro dos EUA“, diz Bob Miller, chefe dos mercados de obrigações dos EUA na BlackRock. “É sempre a mesma coisa nos mercados financeiros“, disseram quase todos os profissionais financeiros que entrevistámos. De repente, uma espécie de ratoeira infernal é criada por um acontecimento imprevisto, uma convulsão cataclísmica que transforma jogadores até aí solventes em maus pagadores e convulsão essa que, por efeito do entrelaçamento de operadores financeiros, por suspeição quanto ao nível de exposição do vizinho, corre o risco de provocar o colapso de todo o sistema, provocando em última análise o racionamento do crédito (“credit crunch”), primeiro entre os próprios bancos, depois para empresas e famílias. Desta vez, os fundos de pensões britânicos, que são responsáveis pela gestão das pensões dos súbditos de Sua Majestade, são os vetores de transmissão. No entanto, estão entre os atores financeiros mais supervisionados no mundo, numa das jurisdições mais regulamentadas. Mas quando, para fazer o seu trabalho, pedem ajuda aos bancos e às empresas de investimento, produz-se o efeito dominó.

Na semana passada, devido a preocupações sobre a solvência da Grã-Bretanha, na sequência da apresentação da “Trussonomics”, movimentos de preços muito violentos nos títulos de dívida pública britânicos (obrigações soberanas, consideradas sem risco, conhecidas como “gilts”) desencadearam chamadas de margem em cascata nos fundos de pensões, o que alimentou o pânico, degradando ainda mais as cotações dos títulos ao valor de mercado do dia [Mark-to-Market], ou seja, o valor de mercado das carteiras de títulos.

Isto acabou por levar a mais chamadas de margem e a vendas em pânico, criando “um ciclo de morte autorreforçada“, nas palavras de Louis GaveKal, co-fundador da GaveKal Research. Um cenário “thriller” tão conhecido que Hollywood fez um filme a partir dele: “Margin Call”, com os atores Kevin Spacey e Jeremy Irons, recontando a noite antes do colapso de 2008. Seguindo um guião muito semelhante, o colapso do fundo de especulação LTCM já tinha estado perto de fazer saltar pelos ares os bancos nos anos 90. O escândalo Archegos [1], mais recentemente, terminou melhor, exceto para o Credit Suisse, que pagou o preço mais elevado dos 10 mil milhões de dólares em perdas infligidas aos grandes bancos por este fundo de escritório familiar (que geriu a fortuna do empresário Bill Hwang). Estávamos em 2021, e os bancos centrais das maiores economias ainda não tinham endurecido a sua política monetária. Hoje, mais de dez anos após a crise do subprime, este “ciclo da morte” surge num momento de grande fragilidade, com o mundo já a sofrer, segundo Louis Gave, de uma nova crise de liquidez, à medida que a Reserva Federal dos EUA aumenta as suas taxas de juro de referência a uma velocidade vertiginosa para combater a inflação e com os preços da energia a disparar.

“Os desenvolvimentos no Reino Unido colocaram muitos outros mercados sob pressão”, observa Mark Dowding, Chefe de Investimento da BlueBay Asset Management. À primeira vista, isto pode parecer contraintuitivo. No entanto, já vimos no passado, lembremo-nos do fundo de cobertura LTCM, que quando algo explode num canto dos mercados financeiros, o impacto pode ser sentido em todo o lado. Esta semana, as ações registaram os seus níveis mais baixos do ano, e os spreads de crédito atingiram novos máximos num conjunto de segmentos de mercado. Os mercados tornaram-se muito ilíquidos num ambiente de volatilidade, e a gestão dos riscos foi posta em dificuldade.”

 

Economia de Vigarice (economia voodoo)

Sem a intervenção do Banco de Inglaterra (BoE), teria havido uma nova crise sistémica? Os círculos financeiros interrogam-se sobre isso. Os receios são legítimos. Em primeiro lugar, porque os fundos britânicos têm outros investimentos que não títulos da dívida pública (gilts), e são também muito diversificados em títulos americanos. E depois há também a questão de saber até que ponto os fundos de pensões americanos têm utilizado swaps de taxas de juro como os seus homólogos britânicos. “Os mercados comportaram-se [na semana passada] como se as chamadas de margem estivessem a ser feitas em todo o lado”, diz Louis Gave. “Podemos nunca saber ao certo se escapámos a outra crise global, mas o medo tinha chegado a Londres, eu experimentei-o”, diz um banqueiro londrino. “A intervenção do Banco de Inglaterra trouxe alguma ordem, e a libra recuperou do seu nível mais baixo desde 1791, mas será que isso significa que estamos fora de perigo? Os mercados foram avisados que o BoE pode intervir, comprando dívida, fora da política de taxas de juro de 0%. As próximas semanas poderão ser ainda mais turbulentas”. Ed Conway, jornalista de negócios da Sky News do Reino Unido, relatou na quarta-feira: “Se não tivessem intervindo, teria havido enormes insolvências de fundos de pensões já esta tarde”. “Não sei quão perto estávamos de um colapso financeiro“, disse Erik Nielsen, economista-chefe da UniCredit, “mas penso que se esteve muito perto disso porque o Banco de Inglaterra deitou às urtigas a sua comunicação“, depois de ter anunciado uma semana antes, a 22 de Setembro, que começaria a desalavancar o seu balanço a partir de segunda-feira. O mandato do Banco de Inglaterra é duplo, o que explica a sua atual esquizofrenia: deve não só assegurar a estabilidade dos preços mas também a estabilidade financeira.

????NEW????On the @bankofengland intervention:Am told the BoE were responding to a “run dynamic” on pension funds – a wholesale equivalent of the run which destroyed Northern Rock.Had they not intervened, there would have been mass insolvencies of pension funds by THIS AFTERNOON.— Ed Conway (@EdConwaySky) September 28, 2022

 

Assim que o anúncio da sua intervenção foi feito na quarta-feira 28 de Setembro, pouco antes do meio-dia, o Banco de Inglaterra começou imediatamente a comprar obrigações no mercado. Este salvamento de emergência foi recomendado pelo Comité de Política Financeira, que temia um “risco significativo” para a estabilidade financeira do país se o disfuncionamento do mercado continuasse. O Banco de Inglaterra temia um “aperto injustificado das condições de financiamento e uma redução do fluxo de crédito para a economia real“. É o BoE que é responsável pela condução da política monetária no Reino Unido, decidindo se a saúde da economia requer ou não restrições de crédito para acalmar o sobreaquecimento. Desde o final do ano passado, tem estado comprometido com uma política destinada a abrandar a atividade. Devido à inflação, a “A Velha senhora de Threadneedle Street” foi o primeiro grande banco central do planeta a aumentar as suas taxas de juro de referência, a afastar-se da política de taxas de juro de 0%, a tornar o dinheiro mais caro, numa tentativa de quebrar a subida dos preços através da contenção da procura. Desde então, no mercado da dívida, os rendimentos das obrigações britânicas têm vindo a aumentar constantemente, subindo muito mais rapidamente do que, por exemplo, na zona Euro.

O aumento dos rendimentos ficou fora de controlo na sexta-feira 23 de Setembro, “após anúncios orçamentais que vão contra a atual luta contra a inflação“, sanciona Antoine Lesné, Chefe de Investigação e Estratégia SPDR ETF Europa na State Street. “Mais estímulo = mais dívida e inflação… mais inflação = aumentos de taxas mais rápidos e maiores do BoE… e rendimentos mais elevados da dívida = custos mais elevados do serviço da dívida para o governo britânico“, resumem Barnaby Martin e Loannis Angelakis, analistas de crédito do Bank of America Securities. “O renascimento da economia de trickle-down atordoou os mercados, disse Jim Reid, um estratega do Deutsche Bank, no início da segunda-feira. Vai contra a ortodoxia económica atual e o espírito geral da época. Há um problema de credibilidade”. Pelo menos as razões para o despedimento de Tom Scholar, secretário permanente do Tesouro, tornaram-se claras.

Ao ressuscitar a “economia voodoo”, Liz Truss, apenas duas semanas após a sua nomeação para Downing Street, acendeu o barril de pólvora. Numa tentativa de aumentar o crescimento potencial do país, o novo governo britânico, também representado pelo seu ministro das Finanças Kwasi Kwarteng, anunciou uma expansão orçamental de cerca de 6,5% do PIB financiado pela dívida. No entanto, se o Reino Unido se libertou da pressão de Bruxelas, após a votação a favor de Brexit, ainda precisa da confiança dos mercados. A Grã-Bretanha contava com os investidores estrangeiros para financiar o seu enorme défice da conta corrente. Em vez disso, estes fugiram quando lhes foi apresentada uma fatura de pelo menos 100 mil milhões de libras esterlinas para pagar tanto os subsídios energéticos como uma baixa de impostos para, beneficiar essencialmente, os mais ricos (um projeto que acabou de ser abandonado): venderam a dívida do país, o que fez afundar a libra e o mercado obrigacionista (os preços dos títulos caíram e os rendimentos subiram).

O rendimento dos títulos de dívida pública a 30 anos aumentou para mais de 5%, ultrapassando o da Itália com a mesma maturidade, um país, já frágil, onde o pós-fascismo acaba de chegar ao poder. Rapidamente, o aumento das taxas tornou-se dramático à medida que os fundos de pensões britânicos, a fim de satisfazer os pedidos de margem, começaram a vender os seus títulos de dívida numa pressão crescente. Para Jim Reid do Deutsche Bank, ficou claro na terça-feira que “a rota nos mercados a longo prazo foi exacerbada por chamadas de margem sobre os LDI [Liability Driven Investments ou estratégias de investimento centradas sobre os passivos] que os fundos de pensões têm utilizado extensivamente nos últimos anos”.

Evolução dos títulos da dívida pública a 30 anos ao longo dos últimos dez dias. Na quarta-feira, na pior das sessões, os rendimentos foram negociados com um rendimento acima dos 5%, as taxas mais elevadas em 20 anos, antes de fecharem mais de 100 pontos base mais baixos a 3,957%. A intervenção de emergência do BoE desencadeou a maior queda de sempre nos rendimentos a longo prazo do Reino Unido, apenas um dia após a sua maior subida de sempre. O ano 2021 tinha terminado com uma taxa de pouco menos de 1,15% para as obrigações do Tesouro britânico a 30 anos. (Bloomberg)

 

70% do PIB do Reino Unido

Os fundos de pensões, que são essenciais em países como a Inglaterra, onde as pensões por repartição são marginais, estes fundos são organizações de investimento que gerem as contribuições dos empregados a fim de lhes pagar uma pensão sob a forma de capital ou uma anuidade quando se reformam. Em 2020, segundo os dados da OCDE, os ativos investidos pelos fundos de pensões ultrapassaram os 3.500 mil milhões de dólares. Nem todos estes fundos, contudo, utilizam estratégias de LDI (baseadas em derivados, tais como swaps de taxas de juro ou aplicações no mercado Repo, com potenciais efeitos de alavancagem) que este ano, segundo o Bank of America Securities, tiveram um valor nocional de £1.600 mil milhões (x3 em dez anos), o equivalente a 70% do PIB do Reino Unido. Outros números, não muito diferentes, mencionam 1.500 milhares de milhões ou “mais de 1.000 milhares de milhões” – impossível ter uma ideia precisa uma vez que o mercado é muito opaco -, mas estas posições estão concentradas entre os maiores atores do negócio. Toby Nangle, o chefe do Columbia Threadneedle’s – um fundo que admitiu ter pedido ajuda ao BoE – recordou na quarta-feira no Financial Times que o regulador britânico dos fundos de pensões tinha indicado, em 2019, que 62% dos maiores fundos do país utilizavam swaps.

O Columbia Threadneedle’s, tal como BlackRock, Legal & General, Insight Investment ou Schroders, seguem estratégias de cobertura de LDI, que visam protegê-los contra uma queda demasiado acentuada nos rendimentos dos títulos da dívida pública, ainda que, ironicamente, tenham sido estas proteções contra uma baixa que quase os esfolaram vivos quando as taxas subiram. Estas estratégias “estão antes reservadas aos chamados fundos de prestações definidas“, diz Antoine Lesné. Isto é lógico uma vez que, ao contrário dos fundos de contribuição definida, os fundos de prestação definida têm uma obrigação de resultados financeiros. Por muito más que sejam as condições de mercado, são contratualmente obrigados a pagar aos reformados um montante pré-definido todos os anos, muitas vezes uma percentagem do salário final que ganharam.

Os fundos de pensões têm ativos (obrigações, ações, imóveis, etc.), mas também passivos, uma obrigação de pagar a reforma de um assalariado até 30 ou 40 anos. “Eles têm uma espécie de dívida que tem um valor económico que depende das taxas de juro“, explica Jérôme Legras, director de pesquisa da Axiom Investimentos Alternativos. Têm de se assegurar de que dispõem de fundos suficientes para cumprir os seus compromissos futuros. O ativo e o passivo devem equilibrar-se mutuamente. Mas o futuro é arriscado de muitas maneiras, no sentido de que é incerto (os salários podem aumentar, a esperança de vida pode aumentar, a inflação pode corroer o valor do dinheiro…). Uma vez que os horizontes temporais não são os mesmos, é necessário um cálculo de atualização: este permite-nos apreender o futuro, dá-nos um valor atual aos compromissos futuros, responde à seguinte pergunta: “Quanto é que preciso hoje para pagar as pensões de amanhã?”.

No cálculo de atualização, os riscos estão no denominador, representados pelas taxas de juro. E, de acordo com este sistema de cálculo, se as taxas de juro baixarem, o valor atual das responsabilidades futuras aumenta. Por outro lado, se as taxas de juro subirem, o valor atual das pensões a serem pagas no futuro diminui. Normalmente, um aumento dos rendimentos das obrigações é positivo para os fundos de pensões: as obrigações pagam mais e as responsabilidades caem mais rapidamente do que os ativos. Normalmente seria assim… As várias políticas de flexibilização quantitativa seguidas pelos principais bancos centrais mundiais desde a grande crise financeira de 2008, e depois a Covid, alteraram a situação. Como resultado, devido às taxas de juro de 0%, os fundos de pensões de prestações definidas tiveram de recorrer a uma nova estratégia mais arriscada, baseada na mecânica LDI. Nada de subversivo a priori, uma vez que o próprio fundo de pensões do Banco de Inglaterra está equipado com esta estratégia (no final de Fevereiro, segundo o último relatório oficial do BoE, 82% da carteira de 5 mil milhões de libras esterlinas foram investidos em  “Legal & General LDI Portfolio”, que está posicionada em títulos da dívida pública, títulos que estão indexadas à inflação, bem como outros títulos indexados, derivados e numerário)

 

“Anomalia estatística”

O maior risco para os fundos de pensões é o risco da taxa de juro, que é o que terão de gerir durante 40 anos“, explica Jérôme Legras. Por conseguinte, terão de cobrir este risco, proteger-se contra ele, comprando títulos no mercado que neutralizem este mesmo risco. Enquanto uma companhia aérea, exposta ao risco de um aumento do preço da kerósene, comprará derivados cujo valor aumenta à medida que o preço do petróleo aumenta, um fundo de pensões investirá em produtos de taxa de juro. Quais? Precisam de encontrar títulos que tenham uma vida útil tão longa quanto os passivos que eles, os fundos, têm. “Não há muitos, há as obrigações a longo prazo, e é só isso. Mas o que tem estado a acontecer há anos? As taxas eram muito baixas, daí a necessidade de estratégias de diversificação para activos de maior rendimento (obrigações de empresas, acções, matérias-primas, bens imobiliários…). E para não perder de vista o risco principal, fizemos swaps, trocámos taxas variáveis por taxas fixas. Mas quando as taxas se movimentam demasiado, temos de fornecer garantias [a contraparte, frequentemente um banco, que concordou em pagar uma taxa fixa em troca de uma taxa variável, quer garantir que o fundo tem dinheiro suficiente para honrar a parte do seu contrato], por isso procuramos os activos mais líquidos, aqueles que podem ser vendidos rapidamente, e, portanto, obrigações soberanas“. Estas garantias, conhecidas como chamadas de margem, devem ser pagas dentro de um dia, o mais tardar no dia seguinte. Para fazer face a isto, os fundos de pensões tiveram de vender à pressa as obrigações gilt a 30 ou 40 anos. “Os swaps estavam longe do dinheiro, pelo que os investidores foram forçados a vender activos líquidos para satisfazer as chamadas de margem. Muitos não tinham a liquidez necessária“, explica o Deutsche Bank.

«Fora da moeda», significa, para simplificar, estar longe dos termos do contrato. Digamos que um fundo de pensões contraiu um swap de cinco anos com um banco que, em troca de receber uma taxa variável (muitas vezes a Libor a três meses), concordou em pagar uma taxa fixa, decidida antecipadamente. A Libor é a taxa média a que um banco sólido empresta, por um período determinado (de 1 a 12 meses), a outro banco com a mesma qualidade de crédito. Esta taxa varia diariamente e depende, tal como as taxas de rendibilidade das obrigações, da evolução da perceção do risco. Quando os riscos aumentam (como quando o governo britânico quer gastar mais através do défice), as taxas também aumentam. O fundo que contraiu um swap deve, portanto, pagar mais ao banco o qual, à medida que as taxas variáveis aumentam, receia que o fundo não respeite os seus pagamentos e pede-lhe, como garantia, dinheiro ou garantia equivalente a dinheiro imediatamente disponível (por exemplo, títulos muito líquidos, tais como obrigações do Estado). Ora, devido à multiplicação das operações de títulos da dívida pública no mercado REPO, os fundos não detêm forçosamente estas obrigações soberanas, uma vez que estas são objeto de acordos de recompra. Estes títulos de dívida pública do mercado REPO são operações de venda temporária com o compromisso de recomprar posições a um preço previamente definido (a estratégia compensa se os preços subirem e, inversamente, torna-se extremamente onerosa se os preços baixarem, a fortiori, atingindo os valores mais baixos de 20 anos). Suponhamos que um fundo que recorre a uma estratégia de LDI se concede uma alavancagem de 2, ou seja, se permite endividar-se para aumentar as suas posições. Por 100 libras de títulos que detém , ele vai poder pedir 200 libras emprestadas a um banco, dinheiro que lhe servirá para comprar outros títulos (que serão novamente colocados em acordo de recompra) ou para investir em títulos de rendimento mais elevado.

O mundo descobriu que os fundos de pensões britânicos possuíam apenas uma pequena proporção dos títulos do Estado a longo prazo nos seus balanços porque“, diz Louis Gave, “em vez de comprarem títulos quando os rendimentos eram pouco atrativos, compraram swaps a bancos de investimento. Infelizmente, quando as taxas de juro a longo prazo saltaram, o valor destes swaps caiu, forçando os fundos de pensões britânicos a fornecerem garantias adicionais em numerário”. Estes riscos são conhecidos, pelo menos por uma certa franja de profissionais – não por todos eles, longe disso, porque, para serem completamente transparentes, muitos dos que queríamos entrevistar sobre LDIs preferiram “passar a sua vez “, admitindo que não compreendiam completamente. Um dos especialistas já tinha feito soar o alarme em 2019. Hans Van Zwol, gestor da NN IP, explicou numa nota intitulada “Um servo maravilhoso, um terrível dono” que os LDIs eram úteis desde que fossem “incorporados prudentemente” na carteira de um fundo de pensões, sendo no caso contrário prejudiciais dado o risco de causar “instabilidade“. Já foram realizados testes de stress de liquidez, mas nenhum modelo incorpora nos cálculos riscos extremos, eventos altamente improváveis, “cisnes negros”, que têm uma probabilidade de ocorrência extremamente baixa. “O aumento em flecha de 111 pontos de base nas taxas da dívida pública a 30 anos na sessão de terça-feira nunca tinha acontecido antes, pelo menos desde que começámos a olhar para estes números, diz Antoine Lesné. Corresponde a 8 desvios padrão, é uma anomalia estatística que não é tida em conta nos modelos”.

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Nota

[1] N.T. Sobre este escândalo a Viagem dos Argonautas publicou diariamente, entre 8 de Julho de 2021 e 2 de Agosto de 2021, a série “Tempos de pandemia, de disfuncionamento da justiça, de disfuncionamento dos mercados, de apostas selvagens em Wall Street – 3. ARCHEGOS E AS APOSTAS SELVAGENS DE WALL STREET“ de autoria de Júlio Marques Mota.


A autora: Marjorie Encelot, jornalista em Les Echos (Investir). Também colabora para Radio Classique, RFI, RTL, France Info. É licenciada em jornalismo pela ESJ de Paris.

 

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