Nota de editor
Inicialmente concebidos num contexto de uma série de maior dimensão e complexidade analítica – Neoliberalismo, Pensões por capitalização e Instabilidade Social e Política –, optou-se por publicar de imediato os textos respeitantes ao troço “O Reino Unido no centro do furacão criado pelo neoliberalismo”, uma vez que, conforme diz o autor da série, Júlio Marques Mota, “… o que neles se escreve não é diferente do que poderá ser escrito sobre qualquer outro país europeu neste momento”, podendo mesmo fornecer “… uma ótima grelha de leitura sobre a realidade atual e atrevo-me mesmo a dizer sobre o futuro próximo que aí vem” (ver aqui “Hoje faço 80 anos… tempos difíceis, o vinho que não bebi e que nunca procurei beber”).
Este é o quarto dos treze textos que compõem a parte II da série “O Reino Unido no centro do furacão criado pelo neoliberalismo”.
FT
Seleção e tradução de Júlio Marques Mota
10 min de leitura
Parte II – Texto 4. O tóxico culto britânico do SNS
Precisamos de proteger os doentes, não de santificar a instituição e colocar auréolas no pessoal
Publicado por em 2 de Dezembro de 2020 (original aqui)

Quando Michael Gove [N.T. ministro em vários governos do partido Conservador desde David Cameron, Theresa May, Boris Johnson e agora Rishi Sunak] procurou apoiar as políticas do governo durante o confinamento, invocou o ídolo mais sagrado da terra, desafiando os céticos do seu partido a desafiarem a divindade que todos eles devem adorar. “Tivemos de agir”, escreveu ele no fim-de-semana. “Porque se não o tivéssemos feito, o nosso serviço de saúde teria sido esmagado”. O ministro de óculos do gabinete, que uma vez atuou num filme como padre, continuou a proferir um sermão arrepiante sobre um serviço de saúde falido, cheio de corredores transbordantes, pessoal em dificuldades, operações canceladas e pacientes moribundos, se os seus críticos blasfemos não se curvassem em fiel obediência às suas piedosas exigências.
O aviso de Gove contra o fogo infernal e o enxofre foi apenas poeira atirada aos olhos. No entanto, o seu estratagema era claro: poucas coisas causam mais terror a um político Tory do que ser visto como sendo pouco simpático para médicos e enfermeiros. Talvez ele mereça algum crédito por, pelo menos, ter exposto claramente a posição do Governo, algo que parece estar para além do seu chefe. No entanto, note-se como mais uma vez esta administração conservadora exige cumplicidade dos cidadãos nos seus esforços para controlar a Covid-19 com base na proteção do Serviço Nacional de Saúde, tal como quando a primeira vaga da pandemia atingiu o país. O legado desta obsessão foi a relegação dos cuidados sociais para segundo plano, o que levou a milhares de mortes desnecessárias num sector já destroçado e ainda apenas a entrar nesta crise.
O Governo parece não ter aprendido nada com a carnificina nos lares de idosos. A intervenção de Gove seguiu-se a uma revisão das despesas que viu mais 6 mil milhões de libras esterlinas serem canalizadas para o SNS, enquanto a assistência social – que passou fome de dinheiro na última década apesar do aumento da procura – foi posta pura e simplesmente de lado. Um manda-chuva Tory vangloriou-se no Twitter de como os gastos reais no SNS teriam aumentado no próximo ano em 56,4 mil milhões de libras esterlinas desde que o seu partido tomou posse em 2010.
Ele não mencionou, claro, que o chanceler Rishi Sunak deu à assistência social uma miserável quantia de 300 milhões de libras, mais o acesso a mais 700 milhões de libras através de aumentos de impostos locais que serão absorvidos pelo aumento dos salários. Isto pode, no entanto, finalmente, provocar um aumento das despesas com os cuidados de saúde dos adultos para além da marca de 22,4 mil milhões de libras esterlinas, verificada no ano em que David Cameron se tornou primeiro-ministro.
Se os concelhos não podem apoiar os idosos com demência e outros cidadãos com necessidades complexas, a pressão extra recai sobre os serviços de saúde, mostrando a hipocrisia oca daqueles cânticos incessantes de devoção ao SNS. Essa queda na despesa com cuidados sociais ocorreu durante uma década de procura crescente numa população em crescimento e envelhecimento, com a necessidade adicional a vir especialmente dos adultos deficientes que representam agora quase metade da despesa. “É difícil acreditar que este nível de subfinanciamento pudesse ter sido tolerado – talvez, em parte, porque os cuidados sociais são utilizados por muito menos pessoas do que o SNS e não gozam do mesmo grau de reconhecimento público”, disse Simon Bottery, um membro senior do grupo de reflexão King’s Fund.
Muito bem. No entanto, não há ainda sinais do plano quimérico para salvar a Segurança Social que Boris Johnson prometeu que tinha no seu bolso quando entrou na Downing Street no ano passado. Parte do problema é o subfinanciamento, que deixa pessoas desesperadas abandonadas no seu tempo de imensa necessidade e pessoal sobrecarregado pago a preços insultuosos. E Brexit tornou a escassez de pessoal mais aguda.
No entanto, há também uma exploração escondida por parte de empresas secretas sedeadas em paraísos fiscais e carregadas de dívidas que precisam de ser classificadas, até porque desviam os serviços de zonas mais pobres do país, enquanto as suas economias de escala conduzem a “casas” maiores. Nenhuma outra parte do Estado está mais necessitada de reforma, nenhum outro serviço público é tão deficiente para os cidadãos, mas nenhum outro sector é tratado com tanto desprezo pelos políticos.
Os únicos trabalhadores do sector público a quem Sunak entregou um aumento salarial foram os santos seculares escravizados na linha de frente do SNS. Sim, muitos deles tiveram um desempenho heróico durante esta pandemia e merecem a nossa gratidão – mas outros funcionários públicos também o merecem. É difícil perceber porque é que um médico de clínica geral a embolsar um salário de seis dígitos em Devon é mais merecedor do que um polícia júnior a passar os seus dias percorrendo as ruas de Bolton ou Birmingham para fazer cumprir as bizantinas regras da Covid do Governo.
Por detrás desta política distorcida está a adoração sentimental de um serviço público que era corrosivo mesmo antes de uma pandemia ter inflamado o problema. Assisti a uma repetição da cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Londres durante o primeiro confinamento; aquele pedaço cheio de médicos dançarinos, enfermeiros com uniformes antiquados e crianças a saltar nas camas dos hospitais parece ainda mais absurdo agora.
Apesar da intensidade da devoção britânica ao SNS, não há nada de único nos cuidados de saúde universais de uma nação europeia rica; todos os países da Europa Ocidental o têm, tal como quase todos os países da Europa Oriental. E, quer gostemos quer não, o nosso serviço de saúde tem frequentemente piores resultados do que os seus vizinhos em indicadores chave tais como a mortalidade tratável (quando as pessoas morrem devido a condições potencialmente evitáveis), derrames cerebrais, muitos cancros, até mesmo a mortalidade infantil. Apesar de toda a impressionante eficiência e melhoria da produtividade, é ingénuo pensar que os problemas do SNS se devem todos ao dinheiro, independentemente do que os sindicatos médicos possam alegar.
Esta veneração míope acaba não só por ensombrar o pouco amado sector da assistência social, mas também por prejudicar os doentes. Pode parecer sacrílego, mas nem todos os trabalhadores da saúde são heróis, por muito dedicados que sejam na sua maioria. A consagração de um serviço público que infunde tanto medo de críticas nos políticos impede uma concentração adequada em questões profundas de equidade, resultados e segurança dos pacientes. No entanto, existem falhas sistémicas que tendem com inevitabilidade doentia a ferir – e por vezes matar – aqueles que mais necessitam de ajuda, tais como os muito velhos, os muito jovens e os portadores de deficiência.
Pergunte a si mesmo porque é que Matt Hancock, o secretário da saúde e dos cuidados sociais, permite que milhares de pessoas com autismo e dificuldades de aprendizagem sejam trancadas em buracos infernais abusivos onde são rotineiramente sedadas e enfiadas em celas solitárias, mesmo alimentadas através de escotilhas como animais selvagens? Porque é que temos um sistema psiquiátrico tão dependente de restrições farmacêuticas e físicas? Porque é que se faz tão pouco contra empresas privadas que ganham vastas somas enquanto prestam serviços péssimos? Porque é que o diagnóstico do autismo nas raparigas é tão terrível, apesar das consequências devastadoras quando estas desenvolvem distúrbios alimentares ou cortam os seus corpos à medida que a sua saúde mental se deteriora?
Na semana passada falei com outra mãe assustada a tentar impedir que a sua filha fosse destruída; esta mulher era médica, mas sentia-se impotente contra um sistema cruel que deixava uma adolescente traumatizada com autismo e necessidades especiais a perguntar porque estava a ser castigada num hospital seguro pelo “crime” de estar doente? Mais uma vez, mostrou-me como a Grã-Bretanha avançou menos do que gosta de pensar desde os tempos do Bedlam [N.T. antiga instituição para cuidar doentes mentais]. No entanto, onde está o clamor à medida que as vidas são devastadas devido às deficiências nos cuidados e à negação desumana dos direitos humanos que está no fundo do coração do nosso amado serviço de saúde?
Depois há os erros. Estes são, infelizmente, inevitáveis numa instituição enorme e altamente pressurizada que depende do esforço humano. No entanto, vejam todos os grandes escândalos de segurança dos pacientes nos últimos anos e todos eles têm uma narrativa comum de famílias enlutadas e/ou denunciantes corajosos que têm de lutar contra um sistema que procurava cerrar fileiras, encobrir incompetências letais e esmagar aqueles que procuram a verdade para proteger os outros da dor no coração.
Há uma lista cada vez maior destas sagas vergonhosas: centenas de hemofílicos a morrer de sangue contaminado; doentes idosos a morrer na miséria em hospitais de Staffordshire; bebés a morrer durante a cirurgia cardíaca devido a medidas de segurança laxistas em Bristol; mais mortes pediátricas no meio de um encobrimento em Morecambe Bay.
Soubemos que centenas de pessoas com dificuldades de aprendizagem morrem anualmente no serviço de saúde mesmo antes da pandemia devido a erros e preconceitos, graças ao zelo de campanha de uma mãe cujo filho adolescente se afogou em circunstâncias horríveis num suposto local de refúgio.
No início deste ano, houve um relatório devastador em três escândalos de saúde distintos que expuseram uma série de erros por parte do SNS, reguladores e hospitais privados. Seguiu-se uma investigação soberba da Baronesa Cumberlege, que falou com 700 pessoas sobre implantes de malha pélvica que levaram à agonia de milhares de pacientes do sexo feminino após o parto e dois medicamentos que deixaram crianças com deficiências. Falou de forma categórica sobre o sofrimento destas famílias com lesões médicas, salientando que muitos dos problemas horríveis poderiam ter sido evitados. Em vez disso, mostrou-se que um sistema defensivo, desarticulado e mal regulado carece de liderança, ignora as preocupações dos doentes e perpetua os erros. Foi arrepiante ver como as queixas de mulheres feridas foram postas de lado por paternalismo de homens em posições de poder.
As mesmas questões incrustadas numa “cultura de evasão e negação” foram novamente vistas quando outro inquérito este ano revelou como um cirurgião de mama desonesto submeteu mais de 1.000 pacientes a procedimentos desnecessários e prejudiciais durante 14 anos antes de ser detido e preso. Falhas letais de maternidade estão a ser investigadas no Shrewsbury and Telford Hospital NHS Trust, o que pode vir a revelar-se o pior escândalo de segurança de pacientes na história do NHS, com dezenas de mortes e bebés com danos cerebrais. Foi lançada uma investigação sobre as mortes infantis em dois hospitais Kent que só surgiram graças à extraordinária tenacidade de outra família traumatizada.
Este é o lado oposto da santificação do SNS. Vemos repetidamente os perigos de colocar este serviço público vital num pedestal que calcifica as suas defesas contra a responsabilidade, a crítica ou a dissidência. Compare como uma instituição menos sagrada como a indústria aérea exige uma cultura de segurança enquanto o serviço de saúde, impermeável às críticas, deixa um rasto de vidas destruídas por detrás da sua cultura de negação e encobrimento. A subida dos custos das indemnizações é um factor a ter em conta – mas as facturas legais cairiam drasticamente se os médicos e gestores deixassem de procurar silenciar os que levantam preocupações e os políticos garantissem que os lesados tivessem menos necessidade de passar anos em esgotadoras batalhas pela justiça.
Na semana passada surgiu outra história de horror quando Anne e Graeme Dixon foram vingados por um relatório impressionante após 19 longos e solitários anos a lutar para obter respostas sobre a morte evitável da sua filha menor face ao obscurantismo. O casal foi defraudado por todos as instâncias do Estado que deviam ajudá-los: os comissários de saúde locais, o juiz de instrução, a polícia, o chefe executivo do SNS, o provedor parlamentar. Depois foi lançado outro inquérito na segunda-feira sobre uma série de mortes envolvendo falhas nos cuidados de saúde prestados pelo Essex Partnership University Trust; mais uma vez, isto só acontece graças à coragem de outra mãe enlutada chamada Melanie Leahy, cujo filho morreu aos 20 anos numa unidade de saúde mental segura.
Estas pessoas são heróis não anunciados, lutando através da sua dor para ajudar os outros a evitar traumas semelhantes. Precisamos de proteger os doentes, não santificar a instituição e colocar auréolas em todo o pessoal. Como disseram os Dixons, as famílias não deveriam “ter de sofrer o inferno que passámos para conhecer a verdade”. Em vez disso, os políticos continuam a encomendar inquéritos, a emitir relatórios e a dizer que aprenderam lições cada vez que há outra tragédia.
Depois, voltam rapidamente a falar das suas complacentes banalidades e a elogiar o SNS, sem fazer nada para combater falhas sistémicas letais e desequilíbrios de poder tóxicos que sacodem os sistemas de saúde e de cuidados. É muito mais fácil aplaudir, emocionar e exprimir palavras ocas do que tomar qualquer acção real que possa realmente pôr fim ao sofrimento e salvar vidas. Não é de admirar que façam adoecer tantas pessoas.
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O autor: Ian Birrell é é um jornalista britânico e antigo redactor de discursos do Primeiro Ministro David Cameron. De 1998 a 2010, Birrell foi editor-chefe adjunto do The Independent. Foi correspondente no estrangeiro de jornais britânicos. É um defensor dos direitos das pessoas com deficiências de aprendizagem e autismo que estão confinadas em instituições psiquiátricas britânicas. Tem investigado e escrito extensivamente sobre esta questão e recebeu vários prémios por este trabalho. É também o fundador, com Damon Albarn, da Africa Express.