CARTA DE BRAGA – “de conversas e dúvidas” por António Oliveira

Um cronista e historiador escreveu, há já algumas semanas, que um dia tinha visto num café que já não há, uma rapariga ganzada a conversar com um pastel de nata, dizendo-lhe à sua maneira, umas poucas de verdades, mesmo metafísicas, como a cena só ser possível por Deus unir todos os intervenientes. 

Não é caso isolado, por também já ter visto amigos, com ou sem ganza, com ou sem copos, a falar com a gente que viam ganhar forma pelo emaranhado do fumo dos charutos ou dos cachimbos, o que até me levou a acreditar que os cigarros não dariam para conversas de jeito. 

Reparava como sempre começavam a falar normalmente, mas em voz baixa, até se esquecerem do lugar onde estavam e de quem os rodeava, para depois embalarem para um desfiar de memórias, evocando o passado com o ambiente da altura, se calhar sem o ruído que o manchava, talvez para lhe dar um outro sentido, para o poderem rever e voltar a interpretar, pôr-lhe uma data ou até um nome.

Quando terminavam saíam do seu assento ou do canto, desapareciam ou arranjavam um lugar para escrever e passavam para o papel a experiência que tinham acabado de viver, se calhar com variantes e cores que a original não teria, com os sons que já lhe podiam juntar, frutos também daquele novo espaço de criação. Uma noite reparei num deles, um sujeito pacato, daqueles de nunca levantarem ondas, discutir só por gestos com o fumo do charuto, mas ‘deixando’ entender o diálogo pelas diferentes e sucessivas alterações do semblante. 

Mas um desses, com quem vim depois estabelecer uma amizade que ultrapassou e, muito, as cadeiras do bar, repetia de quando em quando, ‘Tudo o que já escrevi é só o explorar da minha memória, que não é mais do que o esqueleto do que agora sou; às vezes substituía o termo esqueleto por ‘alicerce’, como as memórias fossem os sedimentos onde tudo assentava e lhe permitia ser o que era. 

Voltando ainda lá atrás, há muitos anos, lembro-me de sermos três, sentados em bancos de lona, debaixo de uma tenda que mal abrigava da chuva torrencial que caía lá fora. E, de repente, sem olhar para nós, Gil arrastou um outro banco de um canto da tenda, puxou do sabre, tirou-o da bainha e estendeu-o cuidadosamente no meio daquele banco vazio. Pôs as mãos cruzadas no lugar do coração e, começou a murmurar como se falasse para ele e para o sabre, mas, a pouco e pouco a voz vai saindo mais clara e entendível, apesar do barulho da chuva a cair na tenda. 

É assim avô, estou aqui mais estes dois marmanjos, à espera que a chuva pare e que a guerra pare também! Quem me dera estar consigo e com o pai, os três encostados aos teares, sair depois para uma cerveja e, ouvir-vos falar da arte da fiação e da tecelagem, tudo o que me arrastou para ela, mas mais acima, por querer saber um pouco mais que vocês os dois, e de ter tido a oportunidade de estudar

Olhámos um para o outro e, o outro, fez sinal para estar calado e o Gil continua Aprendi consigo e com o pai, como a vida está para além dos mestres e das teorias, por ser mais difícil tomar decisões quando há dúvidas, por a dúvida ser também o princípio da sabedoria, disse uma vez um fulano qualquer, daqueles que nos ensinavam no liceu, mas que eu punha sempre em terceiro lugar, depois de vocês os dois

O outro volta a pôr o indicador em frente dos lábios e Gil acabou assim, de repente Estamos a aprender que o mundo dá muitas voltas, que temos de mudar de medos, por aqui a vida ser uma droga que nos tira o sono, e nunca mais serei o mesmo! Até amanhã ou depois avô e, diga ao pai para vir também! Estes dois não se metem!

Dando uma olhada rápida para tudo o que já passou por nós, ou por tudo o que já passámos, estou por descobrir se são as coisas que se movem, ou se seremos nós a mover-nos em volta de nós próprios sem parar, ser calhar por que ainda não descobri também, quem vai ficar a ganhar com isso! Lembra-me até de algumas estrofes do ‘FMI’ do inesquecível José Mário Branco

(…)

Palavras, palavras, palavras e não só

Palavras para si e palavras para dó

A contas com o nada que swingar o sol-e-dó

Depois a criadagem lava o pé e limpa o pó

A produtividade, ora nem mais, célulazinhas cinzentas

Sempre atentas

E levas pela tromba se não te pões a pau

Num encontrão imediato do 3º grau

(…)

Não há português nenhum que não se sinta culpado de qualquer coisa, não é filho?

Todos temos culpas no cartório

Foi isso que te ensinaram

Não é verdade?

Esta merda não anda

Porque a malta, pá

A malta não quer que esta merda ande.

Tenho dito.

A culpa é de todos

A culpa não é de ninguém

No fundo, né? 

Somos todos uma nação de pecadores e vendidos, né?

(…)

António M. Oliveira

Não respeito as normas que o Acordo Ortográfico me quer impor

 

 

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