A Guerra na Ucrânia — Putin e o que realmente importa no tabuleiro de xadrez, por Pepe Escobar

Seleção e tradução de Francisco Tavares

8 min de leitura

Putin e o que realmente importa no tabuleiro de xadrez

 Por Pepe Escobar

Publicado por  em 15 de Junho de 2023 (original aqui)

 

                                      Foto: domínio público

É fascinante ver como os correspondentes de guerra russos estão agora a desempenhar um papel semelhante ao dos antigos comissários políticos da URSS.

 

O encontro do Presidente Putin com um grupo de correspondentes de guerra russos e bloguistas do Telegram – nomeadamente Filatov, Poddubny, Pegov do War Gonzo, Podolyaka, Gazdiev da RT – foi um exercício extraordinário de liberdade de imprensa.

Havia entre eles jornalistas seriamente independentes que podem ser muito críticos em relação à forma como o Kremlin e o Ministério da Defesa (MoD) estão a conduzir o que pode ser alternativamente definido como uma Operação Militar Especial (SMO); uma operação antiterrorista (CTO); ou uma “quase guerra” (de acordo com alguns círculos empresariais influentes em Moscovo).

É fascinante ver como estes jornalistas patriotas/independentes estão agora a desempenhar um papel semelhante ao dos antigos comissários políticos da URSS, todos eles, à sua maneira, profundamente empenhados em orientar a sociedade russa no sentido de drenar o pântano, lenta mas seguramente.

É evidente que Putin não só compreende o seu papel como, por vezes, o sistema a que preside põe efetivamente em prática as sugestões dos jornalistas, ao estilo “choque no sistema”. Como correspondente estrangeiro que trabalha em todo o mundo há quase 40 anos, fiquei bastante impressionado com a forma como os jornalistas russos podem gozar de um grau de liberdade inimaginável na maioria das latitudes do Ocidente coletivo.

A transcrição da reunião feita pelo Kremlin mostra que Putin não está, de facto, inclinado a andar com rodeios.

Admitiu que existem “generais de opereta” no exército; que existe uma escassez de drones, munições de precisão e equipamento de comunicação, que está agora a ser resolvida.

Discutiu a legalidade dos grupos mercenários; a necessidade de, mais cedo ou mais tarde, instalar uma “zona tampão” para proteger os cidadãos russos dos bombardeamentos sistemáticos do regime de Kiev; e sublinhou que a Rússia não responderá ao terrorismo inspirado em Bandera com terrorismo.

Depois de examinar as trocas de impressões, é imperativo chegar a uma conclusão: Os meios de comunicação de guerra russos não estão a encenar uma ofensiva, mesmo quando o Ocidente coletivo ataca a Rússia 24 horas por dia, 7 dias por semana, com o seu enorme aparelho de meios de comunicação e ONGs. Moscovo não está – ainda? – totalmente empenhada nas trincheiras da guerra de informação; neste momento, os meios de comunicação russos estão apenas a jogar à defesa.

 

Até chegar a Kiev?

A citação mais importante de todo o encontro é sem dúvida, a avaliação concisa e arrepiante de Putin sobre a nossa posição atual no tabuleiro de xadrez:

Fomos obrigados a tentar acabar com a guerra que o Ocidente começou em 2014 pela força das armas. E a Rússia vai acabar com esta guerra pela força das armas, libertando todo o território da antiga Ucrânia dos Estados Unidos e dos nazis ucranianos. Não há outras opções. O exército ucraniano dos EUA e da NATO será derrotado, independentemente dos novos tipos de armas que receber do Ocidente. Quanto mais armas houver, menos ucranianos e o que costumava ser a Ucrânia subsistirão. A intervenção direta dos exércitos europeus da NATO não alterará o resultado. Mas, neste caso, o fogo da guerra envolverá toda a Europa. Parece que os EUA também estão prontos para isso“.

Resumindo: isto só terminará nos termos da Rússia e apenas quando Moscovo considerar que todos os seus objectivos foram atingidos. Tudo o resto são ilusões.

De volta à linha da frente, como salientou o indispensável Andrei Martyanov, o correspondente de guerra de primeira classe Marat Kalinin descreveu de forma conclusiva a forma como a atual contraofensiva ucraniana de caixões de metal não foi capaz de atingir sequer a primeira linha de defesa russa (estão a uns longos 10 km de distância – autoestrada do inferno). Tudo o que o principal exército de representantes da NATO alguma vez reunido conseguiu até agora foi ser impiedosamente massacrado a uma escala industrial.

Conheça o General Armagedão em ação.

Surovikin teve oito meses para colocar a sua pegada na Ucrânia e, desde o início, percebeu exatamente como transformar a situação num jogo totalmente novo. A estratégia é, sem dúvida, destruir completamente as forças ucranianas entre a primeira linha de defesa – partindo do princípio de que alguma vez a violam – e a segunda linha, que é bastante substancial. A terceira linha permanecerá fora dos limites.

Os meios de comunicação social ocidentais estão previsivelmente a passar-se, começando finalmente a mostrar as terríveis perdas ucranianas e a dar provas da total incompetência acumulada dos capangas de Kiev e dos seus manipuladores militares da NATO.

E para o caso de as coisas ficarem difíceis – por enquanto uma possibilidade remota – o próprio Putin entregou o roteiro. Suavemente, suavemente. Como em: “Precisamos de uma marcha sobre Kiev? Se sim, precisamos de uma nova mobilização, se não, não precisamos. Não há necessidade de mobilização neste momento”.

As palavras operativas cruciais são “neste momento”.

 

O fim de todos os vossos elaborados planos

Entretanto, longe do campo de batalha, os russos estão muito atentos à frenética atividade geoeconómica.

Moscovo e Pequim negoceiam cada vez mais em yuanes e rublos. Os dez países da ASEAN estão a apostar nas moedas regionais, deixando de lado o dólar americano. A Indonésia e a Coreia do Sul estão a aumentar o comércio em rupias e won. O Paquistão está a pagar o petróleo russo em yuan. Os Emirados Árabes Unidos e a Índia estão a aumentar o comércio não petrolífero em rupias.

Cada um e o seu vizinho estão a tentar juntar-se aos BRICS+ – forçando um desesperado Hegemon a começar a utilizar uma série de técnicas de Guerra Híbrida.

Já lá vai um longo caminho desde que Putin examinou o tabuleiro de xadrez no início da década de 2000 e, em seguida, lançou um programa de mísseis de defesa e ofensivos.

Durante os 23 anos seguintes, a Rússia desenvolveu mísseis hipersónicos, ICBMs avançados e os mísseis defensivos mais avançados do planeta. A Rússia ganhou a corrida aos mísseis. Ponto final. O Hegemon – obcecado pela sua própria guerra fabricada contra o Islão – foi completamente apanhado de surpresa e não fez quaisquer avanços materiais em matéria de mísseis em quase duas décadas e meia.

Agora a “estratégia” é inventar do nada uma Questão de Taiwan, o que está a configurar o tabuleiro de xadrez como a antecâmara de uma Guerra Híbrida sem limites contra a Rússia-China.

O ataque por procuração – através das hienas de Kiev – contra o russófono Donbass, incentivado pelos psicopatas neoconservadores straussianos responsáveis pela política externa dos EUA, assassinou pelo menos 14.000 homens, mulheres e crianças entre 2014 e 2022. Isso foi também um ataque à China. O objetivo final deste jogo de dividir para reinar era infligir uma derrota ao aliado da China na Eurásia, para que Pequim ficasse isolada.

De acordo com o sonho molhado dos neoconservadores, tudo isto teria permitido ao Hegemon, uma vez que tivesse tomado de novo o controlo da Rússia como fez com Ieltsin, bloquear o acesso da China aos recursos naturais russos utilizando onze forças de intervenção de porta-aviões dos EUA e numerosos submarinos.

Obviamente, os neoconservadores deficientes em ciências militares ignoram o facto de a Rússia ser agora a mais forte potência militar do planeta.

Na Ucrânia, os neoconservadores esperavam que uma provocação levasse Moscovo a utilizar outras armas secretas para além dos mísseis hipersónicos, para que Washington pudesse preparar-se melhor para uma guerra total.

Todos esses planos elaborados podem ter fracassado miseravelmente. Mas o corolário mantém-se: os neoconservadores straussianos acreditam firmemente que podem instrumentalizar alguns milhões de europeus – quem serão os próximos? Polacos? Estónios? Letões? Lituanos? E porque não os alemães? – como carne para canhão, tal como os EUA fizeram na I e na II Guerra Mundial, lutando sobre os corpos de europeus (incluindo russos) sacrificados para a mesma velha conquista de poder anglo-saxónica: a Eurásia [n.t. o pivot do mundo segundo Halford Mackinder].

Hordas de agentes subversivos europeus fazem que seja muito mais fácil “confiar” nos EUA para os proteger, enquanto apenas alguns com um QI acima da temperatura ambiente compreenderam quem realmente bombardeou o Nord Stream 1 e 2, com a conivência do birrento Chanceler alemão.

A questão de fundo é que o Hegemon simplesmente não pode aceitar uma Europa soberana e autossuficiente; apenas um vassalo dependente, refém dos mares que os EUA controlam.

Putin vê claramente como o tabuleiro de xadrez foi colocado. E também vê que a “Ucrânia” já nem sequer existe.

Enquanto ninguém estava a prestar atenção, no mês passado, o bando de Kiev vendeu a Ucrânia à BlackRock, que vale 8,5 biliões de dólares. Nem mais nem menos. O acordo foi selado entre o Governo da Ucrânia e o vice-presidente da BlackRock, Philipp Hildebrand.

Estão a criar um Fundo de Desenvolvimento Ucraniano (FDU) para a “reconstrução”, centrado na energia, infra-estruturas, agricultura, indústria e TI. Todos os activos valiosos que restarem no que será uma Ucrânia em ruínas serão engolidos pela BlackRock: desde a Metinvest, DTEK (energia) e MJP (agricultura) até à Naftogaz, Caminhos de Ferro Ucranianos, Ukravtodor e Ukrenergo.

Então, para que é que serve ir a Kiev? O neoliberalismo tóxico de alto nível já está a festejar no local.

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O autor: Pepe Escobar [1954-] é um jornalista e analista geopolítico brasileiro. A sua coluna “The Roving Eye” para o Asia Times discute regularmente a “competição multinacional pelo domínio sobre o Médio Oriente e a Ásia Central”.

Em Agosto de 2000, os Talibãs prenderam Escobar e dois outros jornalistas e confiscaram o seu filme, acusando-os de tirarem fotografias num jogo de futebol. Em 30 de Agosto de 2001, a sua coluna no The Asia Times alertou para o perigo de Osama bin Laden numa peça que tem sido chamada “profética. A entrevista de Escobar de 2001 com o principal comandante da oposição do Afeganistão contra os Taliban foi também amplamente citada. A sua peça de 26 de Outubro de 2001 para o Asia Times, “Anatomia de uma ONG ‘terrorista’”, descreveu a história e os métodos do Al Rashid Trust.

“Pipelineistão” é um termo cunhado por Escobar para descrever “a vasta rede de oleodutos e gasodutos que atravessam os potenciais campos de batalha imperiais do planeta”, particularmente na Ásia Central. Como Escobar argumentou num artigo de 2009 publicado pela CBS News, a exploração de condutas de energia das nações ricas em energia perto do Mar Cáspio permitiria à Europa estar menos dependente do gás natural que actualmente recebe da Rússia, e ajudaria potencialmente o Ocidente a depender menos da OPEP. Esta situação resulta num conflito de interesses internacional sobre a região. Escobar afirmou que a guerra do Ocidente contra o terrorismo é “sempre por causa da energia”.

De acordo com Arnaud De Borchgrave, durante a Guerra Civil Líbia em 2011, Escobar escreveu uma peça “desvendando” os antecedentes de Abdelhakim Belhaj, cuja liderança militar contra Kadhafi estava a ser auxiliada pela NATO, e que tinha treinado com a Al-Qaeda no Afeganistão. Segundo a história de Escobar, publicada pelo Asia Times a 30 de Agosto de 2011, os antecedentes de Belhaj eram bem conhecidos dos serviços secretos ocidentais, mas tinham sido ocultados ao público. avisando que Belhaj e os seus colaboradores mais próximos eram fundamentalistas cujo objectivo era impor a lei islâmica uma vez que derrotassem Kadhafi.

O Global Engagement Center (GEC) do Departamento de Estado dos EUA identificou vários pontos de venda que publicam ou republicam trabalhos de Escobar como sendo utilizados pela Rússia para propaganda e desinformação. Em 2020, o GEC declarou que tanto a Strategic Culture Foundation como a Global Research, duas revistas online onde o trabalho de Escobar tem aparecido, actuaram como sítios de propaganda pró-russa. Escobar tem sido também comentador de RT e Sputnik News; ambos os pontos de venda foram destacados num relatório de 2022 da GEC como membros do “ecossistema de desinformação e propaganda da Rússia”. Em 2012, Jesse Zwick na The New Republic perguntou a Escobar porque estava disposto a trabalhar com a RT; Escobar respondeu: “Eu conhecia o envolvimento do Kremlin, mas disse, porque não usá-lo? Passados alguns meses, fiquei muito impressionado com a audiência americana. Há dezenas de milhares de espectadores. Uma história muito simples pode obter 20.000 visitas no YouTube. O feedback foi enorme”.

(fonte, Wikipedia, ver aqui)

 

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