Democracias minadas – a Argentina — Texto 5. O número de circo de Javier Milei em Davos é uma amostra da futura política capitalista. Por Dennis Kolling

 

Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

7 min de leitura

Estamos no campo de domínio dos plutocratas –os que lenta, mas perseverantemente, se têm encarregado de ir minando os sistemas democráticos– mas que agora se vêm também acompanhados, ou emulados, por outras figuras e outros movimentos da direita mais extrema, tentando trazer acima práticas e regimes antigos, apoiados por poderes empresariais, económicos e financeiros, contando todos com a memória curta dos povos, devidamente ‘tratada’ com desinvestimento no ensino das humanidades e investimento na ‘sociedade do espectáculo’, comandado pelos ‘big brothers de bolso’.

António Oliveira, “das eleições ao sursumcordam”, A Viagem dos Argonautas em 20 de Abril de 2024 (aqui)

 

Texto 5. O número de circo de Javier Milei em Davos é uma amostra da futura política capitalista

 Por Dennis Kolling

Publicado por em 22 de fevereiro de 2024 (original aqui)

 

 

O presidente argentino de extrema-direita Javier Milei foi acolhido com entusiasmo no Fórum Económico Mundial de Davos. O acolhimento caloroso que lhe foi reservado é um sinal da direção que o radicalismo burguês toma na crise cada vez mais profunda do neoliberalismo.

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Este caloroso acolhimento reservado a Javier Milei no Fórum Económico Mundial deste ano em Davos constituiu a última etapa da ascensão aparentemente desconcertante do libertarianismo radical de direita para a respeitabilidade política. O recém-eleito presidente argentino, que empunhou uma motosserra nos seus comícios de campanha para reduzir simbolicamente a burocracia regulamentar, tornou-se a nova figura heroica da direita libertária.

O libertarianismo tem sido subestimado e considerado um movimento político marginal. Devemos considerar a sua tentativa de integrar a política mainstream em conexão com o desenvolvimento de seu mais próximo aliado ideológico, o neoliberalismo, ao lado do qual surgiu como um fenómeno de direita na década de 1930. O facto de que os líderes libertários estão a ganhar popularidade no momento em que a era neoliberal parece estar a chegar ao fim é uma situação que nos indica estarmos perante uma consolidação das ideologias radicais do mercado, em vez da sua dissolução.

 

A estrela do espetáculo

Em companhia da elite económica de Davos, Javier Milei aproveitou a sua tribuna no Fórum de Davos para avisar os seus ouvintes de que o «mundo ocidental está em perigo». Acolhido pelo fundador do Fórum Económico Mundial, Klaus Schwab, como uma «pessoa extraordinária», o presidente argentino lançou-se numa luta contra as feministas, os defensores do clima e uma grande parte do establishment universitário, que descreveu como inimigos da liberdade e da prosperidade.

Ignorando as tentativas do Fórum de abordar os temas da responsabilidade social e da transformação ecológica nos últimos anos, Milei procurou reduzir a economia ao simples confronto entre os «criadores» e os «tomadores». Ele concluiu piscando o olho a todos os homens de negócios presentes no auditório: “Sois uns heróis … que ninguém vos diga que a vossa ambição é imoral”.

O discurso de Milei não tardou a espalhar-se pela comunidade ultraliberal em todo o mundo, que não ficou surpreendida com tais elogios. Os participantes no Fórum de Davos felicitaram-no por ter feito soar o alarme mesmo a tempo. Elon Musk apresentou o seu discurso como uma «boa explicação» da economia da prosperidade e partilhou memes sobre a popularidade de Milei no Twitter/X. O historiador Niall Ferguson, que se tornou um político de direita, elogiou o discurso chamando-o de «magnífica defesa da liberdade individual e da economia de mercado».

O facto de que o radicalismo de mercado puro e duro de Milei ocupa o centro das atenções na maior reunião de atores neoliberais ofereceu um ponto de encontro para aqueles que, à direita, receavam que o liberalismo económico tivesse perdido a sua vantagem quando tentou ecologizar a sua imagem ao incluir preocupações sociais e ambientais no seu apelo a um novo capitalismo.

Embora a inclusão no Fórum de Davos marque um novo ponto culminante na sua carreira, a marca do libertarianismo radical de direita de Milei já havia experimentado um ressurgimento rastejante na última década. As obras de Ayn Rand, a grande divulgadora do libertarianismo americano e «deusa do mercado, conheceram um renovado aumento de interesse depois de terem sido saudadas por Donald Trump e por toda uma série de empresários do Sillicon Valley .

Paralelamente, um esforço concertado por parte de militantes libertários e investidores permitiu concretizar mais do que nunca a ideia de comunidades autónomas de seasteading,[n.t. residências permanentes em águas internacionais] fora do alcance de qualquer legislação estatal. Mais sutilmente, a influência das utopias libertárias, como as imaginadas pelo autor de ficção científica Robert A. Heinlein, permeou as recentes versões dos clássicos da dura ciência-ficção nas plataformas de comunicação populares.

 

Libertarianismo e neoliberalismo

Quando as ideologias libertárias começavam a ganhar popularidade, os comentadores de esquerda começavam a debater o fim de uma era dominada pela economia de mercado. O neoliberalismo, irmão um pouco mais respeitável do libertarianismo, parecia ter sido abalado pela reação global à pandemia de COVID-19, o que levou a formas sem precedentes de intervenção governamental e novas abordagens estatais aos problemas de proteção social e crise ambiental.

Outros viram o fim do neoliberalismo na eleição de Donald Trump e nas políticas isolacionistas, xenófobas e manifestamente ilegítimas que a sua administração adotou. Durante a década de 2020, o neoliberalismo foi considerado por muitos como uma força exausta.

É muito possível que o que vemos hoje marque o fim de uma versão moderada e centrista do neoliberalismo da «sociedade aberta», tão atraente durante décadas, mesmo para muitos membros da antiga esquerda social-democrata. Mas a crescente popularidade de formas mais extremas de libertarianismo em todo o mundo deve alertar-nos para o facto de que o radicalismo do mercado não vai simplesmente desaparecer. Pelo contrário, consolida a sua ideologia e volta às suas raízes culturais.

O aviso dramático de Milei de que a civilização ocidental está em grande perigo não é apenas uma figura retórica destinada a atrair a atenção na paisagem polarizada dos media sociais de hoje. Ele está profundamente enraizado numa tradição fatalista que Milei compartilha com os primeiros pensadores neoliberais e libertários das décadas de 1930 e 1940. O panfleto de Friedrich Hayek, A estrada da servidão (1944), também dirigido contra a ameaça do «coletivismo», começa por falar de uma «viragem inesperada» que levou o «curso da civilização» a inverter-se para «as idades passadas da barbárie».

A declaração de objetivos redigida na primeira reunião da Sociedade do Mont Pélerin Monte Peregrino, uma reunião internacional de intelectuais, políticos e empresários neoliberais, expressa-a em termos igualmente diretos: «Os valores centrais da civilização estão em perigo». Segundo estes primeiros neoliberais, o planeamento económico conduzir-nos-ia inevitavelmente ao «caminho da servidão» e do totalitarismo.

Embora eles se tenham podido ramificar em movimentos intelectualmente distintos ao longo do tempo, o neoliberalismo e o libertarianismo de direita compartilharam um momento de conceção e um mito fundador. Nascidos do clima intelectualmente pessimista que caracterizou a resposta da corrente liberal dominante à ascensão das ideologias totalitárias nas décadas de 1930 e 1940, os partidários de um renascimento do liberalismo nestes tempos sombrios procuraram fazê-lo apresentando-se como baluartes contra a ameaça totalitária.

Enquanto os neoliberais europeus como Hayek sublinharam o perigo «coletivista» do comunismo e do fascismo, os libertários americanos como H. L. Mencken, Rose Wilder Lane ou Isabel Paterson cedo incorporaram na sua avaliação do totalitarismo uma oposição feroz à política do New Deal. No entanto, ambos os campos primeiro abraçaram um fatalismo dramático que apresentava todo e qualquer apelo à ação coletiva como uma ameaça para a civilização como um todo.

 

O neoliberalismo zombi

O «espectro do totalitarismo» invocado por Hayek e por muitos dos seus companheiros de viagem tornou-se uma ferramenta discursiva para adiar as discussões sobre a desigualdade e pôr termo a qualquer preocupação de justiça social. Ele foi rapidamente usado para atacar até mesmo a democracia popular como tal. Numa série de livros, o historiador neoliberal Jacob L. Talmon procurou desconstruir a herança da Revolução Francesa, advertindo que tinha provocado a ascensão de uma perigosa «democracia messiânica totalitária».

A intervenção de Talmon fazia parte de um debate mais amplo sobre o suposto determinismo histórico inerente às conceções emancipadoras da democracia, das quais Friedrich Hayek e Karl Popper eram os principais protagonistas. Os neoliberais e os libertários adotaram antes a noção de democracia de mercado, lançada pelo economista austríaco Ludwig von Mises, segundo a qual cada compra ou venda num mercado deve ser considerada como um voto que representa os ideais da democracia muito melhor do que uma abordagem centrada no Estado jamais poderia fazê-lo. Neste contexto, o mercado, ironicamente elogiado como o salvador da civilização democrática, devia ao mesmo tempo substituir progressivamente a democracia popular.

Foi somente na década de 1960, em resposta à política emancipadora da Nova Esquerda, que os partidários do neoliberalismo moderado e do libertarianismo radical se separaram. O economista libertário Murray Rothbard rejeita a contestação igualitária das décadas anteriores com base numa conceção racializada da natureza humana. Isso levou-o, juntamente com os seus seguidores, gradualmente às franjas de extrema-direita da política estadunidense, formando a base da direita alternativa de hoje, como mostrou recentemente o historiador Quinn Slobodian.

Dez anos depois, os neoliberais supervisionados por Milton Friedman tiveram a oportunidade de se testar na elaboração ativa de políticas quando se tornaram os principais conselheiros económicos do governo do ditador chileno Augusto Pinochet. Convenientemente ignorando o passado antitotalitário do seu credo, o neoliberalismo abriu caminho para a política mainstream – o que foi sublinhado com veemência pela atribuição dos Prémios Nobel de Economia a Hayek em 1974 e a Friedman em 1976 – à custa do povo chileno e do impacto duradouro da doutrina do choque económico prosseguido pelo regime de Pinochet.

Na sua autoestilização idiossincrática, Javier Milei prestou homenagem a estas duas ideologias concorrentes. Um dos seus cinco amados Mastiffs ingleses chama-se «Murray», outro «Milton». O facto de ter reavivado o espectro do totalitarismo na tribuna do Fórum de Davos é talvez um sinal de que o cisma entre os neoliberais mais moderados e os libertários radicais está em vias de se reabsorver .

Se o ostensivo antiestatismo dessa corrente de pensamento esconde as inúmeras maneiras pelas quais os políticos neoliberais tentaram usar o Estado em vez de aboli-lo, este coloca igualmente em evidência que os radicais do mercado não terão qualquer escrúpulo em abandonar definitivamente a democracia. Poderiam fazê-lo sob o pretexto de defender a «civilização ocidental», abraçando à passagem dirigentes autoritários como Milei, Donald Trump ou Jair Bolsonaro.

É pouco provável que, diante de uma nova crise do liberalismo, eles simplesmente abandonem a herança neoliberal e a deixem morrer. Pelo contrário, a próxima onda de «neoliberalismo zombie» está prestes a rebentar. Prepare-se para o impacto.

 

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O autor: Dennis Kölling é investigador em história intelectual no Instituto Universitário Europeu e doutorando no Instituto Leibniz de história europeia.

 

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