UMA CARTA DO PORTO – Por José Fernando Magalhães (600)

 

 

FOI HÁ CINQUENTA ANOS,

Mudamos de vida, de pensamentos, de planos!

Amanheceu cedo o dia de todas as perdas

Amanheceu muito cedo o dia de muitos dos ganhos

Dali para a frente, tudo foi feito às avessas

Incutiram-nos pensamentos que ainda nos são estranhos.

 

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Naquele tempo, cumpria o serviço militar, e, naquela manhã, estava “desenfiado”. Desenfiado era o termo utilizado pelos magalas para definir quem, devendo estar de serviço dentro do quartel ou instituição militar, se encontrava fora, normalmente em casa, a dormir.

Ora, na verdade, eu estava desenfiado. Dormia a bom dormir quando, pelas oito da manhã, uma tia me telefona a perguntar o que sabia eu do golpe de Estado. Nada, não sabia nada. Se calhar era outra intentona como a de Março, disse.

Sorte minha, depois de correr, aflito, para o quartel, ninguém tinha dado pela minha falta. Por lá, toda a gente estava preocupada em saber notícias certas do que tinha acontecido de noite. A expectativa era grande, e nada mais importava. Tudo se estaria a passar na capital, e nós seríamos os últimos a saber. No entanto, havia algo que conseguíamos ver, a cadeia de comando estava a cair, desmoronava-se. As primeiras notícias eram contraditórias e ninguém mandava, ninguém obedecia. A “balda” era total e generalizada.

Os dias que se seguiram, serviram para que uns e outros se começassem a encontrar. Em poucos dias, o PREC modificou totalmente as pessoas. Poucos escaparam a essa transformação. Começaram a regressar os exilados. Hora a hora, novas notícias, novas coisas, novos factos. Milhares de pessoas se viram, por todo o País, espoliadas dos seus trabalhos e dos seus haveres. O primeiro 1º de Maio, foi, para a maioria de nós, uma festa provocada por um feriado que nunca tínhamos tido. Ninguém sabia ao certo as implicações políticas desse dia, apesar da tentativa de politização das gentes, por parte de alguns activistas. Pedaço daqui, pedaço dali, muitos dos meus “amigos” descobriram que tinham sido prejudicados, se não mesmo amarfanhados, por quarenta e oito anos de fascismo. O sofrimento, pelo qual tinham passado, diziam ser indescritível. Chegava a meter dó tanta crueldade sofrida. Não podiam falar alto e em plena rua, contra os governantes. Não se podiam manifestar publicamente. Não podiam ofender os superiores ou faltar ao respeito aos mais velhos, fossem eles quem fossem. Para sair do País tinham de pedir autorização. Eram obrigados a responsabilizar-se por todos os actos que cometiam, mesmo os mais comezinhos. As mulheres eram menorizadas. Os estudos continuados até se completarem cursos superiores, não eram para todos, nem sequer para mais do que alguns. Não se encontravam nas livrarias livros de cariz político, de ideologia de esquerda. Havia censura ao que se escrevia. Não havia Coca-Cola, não se encontravam livros nem filmes pornográficos, e um ou outro, sabiam de um amigo de um amigo que tinha sido preso por motivos que nenhum deles discernia.

As movimentações para a conquista do poder, ficaram, em poucos dias, ao rubro.

O grande problema, pensava eu, é que as pessoas com quem eu me dava, que na sua maioria não morria de amores pelas estruturas políticas vigentes, muito embora poucos ou nenhuns soubessem o que era política ou as diferenças entre o que cá se passava e o que existia noutros lugares, eram da minha idade ou pouco mais velhas. No meu círculo de amigos, que era enorme, só um ou dois, sabiam mais ou menos do que falavam.

Eu, ainda não tinha, na altura, vinte e dois anos, e de política sabia pouco menos do que sei hoje. E hoje o que sei é que é feita, na sua grande maioria, por uma cambada de aproveitadores da boa-fé dos outros, para não dizer mais.

Passaram-se, entretanto, muitos anos. As pessoas da minha geração, são na sua maioria avós. O golpe de Estado tinha passado a ser revolução, e esta vingara. As coisas mudaram. Os ânimos, durante muito tempo exaltados, acalmaram. Já há quem não queira festejar oficialmente a data de todas as

mudanças. Já nada é o que era.

Hoje, vivemos melhor em muitos ou quase todos os aspectos. As mulheres já quase têm o lugar de igualdade que sempre deveriam ter tido. Já todos podemos falar o que nos apetecer, ou quase. Já podemos clamar por justiça (essa, ao fim de tantos anos não sei se não estará pior), já podemos dizer o que nos vai na alma embora com algum cuidado, já podemos votar em toda e qualquer eleição, já somos todos iguais (embora, como sempre, haja uns mais iguais que outros), e já todos temos acesso a todo e qualquer cargo ou estudo, sem haver a necessidade de provar que se tem habilitações ou categoria para tal, bastando, em muitos casos, ter amigos ou compadres. A corrupção, que estava confinada a alguns, está agora disseminada por todo o lado. Está tudo muito mais democratizado, e de uma maneira geral, vivemos todos melhor um bocadinho. Só que, um bocadinho, é muito pouco.

Para além destas coisas, a democracia trouxe-nos outras. Também já todos podemos insultar, mentir, e passar por cima dos outros, tendo para isso o apoio incondicional e o exemplo das estruturas que nos governam. Já não há princípios nem valores que nos impeçam de fazer seja o que for. Sexo, a partir das mais tenras idades, deixou de mal visto, e a educação sexual começa nos jardins de infância. A educação, conforme a conhecíamos, está em vias de desaparecimento, os problemas laborais cujas soluções não têm fim à vista estão para lavar e durar, o preço da vida está pela hora da morte, assim como as injustiças e a qualidade dos governantes, a saúde e o seu serviço nacional e a habitação digna para todos são uma miragem, o ensino, em especial o da nossa língua, hoje já muito deturpada, é deplorável, havendo um analfabetismo funcional crescente, que já não se mede no não saber ler ou escrever como antigamente, mas em não se saber interpretar o que se lê ou ouve. As toneladas de ouro que os “fascistas” tinham acumulado e guardado, desapareceram em pouco tempo. Fizemos uma descolonização “exemplar”. Deixamos de ter um escudo forte e passamos a ter um euro fraco e a preço de custo da restante Europa. Passamos os últimos quarenta anos em crise económica, com as diferenças entre quem mais ganha e quem menos aufere a serem eventualmente maiores que no tempo da “outra senhora”. Há conflitos em todo o lado e em todas as estruturas do País. Já nada impede que seja quem for por cá entre para nos fazer mal, ou ensinar a fazer. Os crimes violentos têm vindo a aumentar dia a dia, surgindo a todo o momento novas formas e novos tipos, embora haja quem afirme que não é assim, que o que se passa é que são mais noticiados. A nossa juventude parece andar perdida, sem rumo, sem expectativas ou esperança.

Mudou muita coisa, mas muita outra ficou na mesma. E na que mudou, apesar de grandes conquistas, nem tudo foi para melhor. Globalmente, mudaram os mandantes, mas não as formas de mandar, há cada vez mais exigentes que não sabem como ou o que exigir, e há cada vez mais dirigentes, desde os pequeninos aos grandes, que não sabem dirigir. Ética, carácter, seriedade, competência, honestidade e sentido de Estado, já quase só existe no dicionário, pouco falta para serem coisas do passado.

Hoje, estou convencido de que tudo acabou por ser feito às avessas.

Perdemos uma excelente oportunidade de fazer um País maravilhoso.

Aquele que foi um dia de muitos e bons ganhos, foi também o dia de quase todas as perdas.

Um novo ciclo político parece querer vingar.

Que melhorias nos poderá trazer?

O melhor é orar pelo melhor!

 

 

 

 

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