As tensões da modernidade (6) – Boaventura de Sousa Santos

 

(Continuação)

 

A marca ocidental, ou melhor, ocidental-liberal do discurso dominante dos direitos humanos pode ser facilmente identificada em muitos outros exemplos: na Declaração Universal de 1948, elaborada sem a participação da maioria dos povos do mundo; no reconhecimento exclusivo de direitos individuais, com a única excepção do direito colectivo à autodeterminação, o qual, no entanto, foi restringido aos povos subjugados pelo colonialismo europeu; na prioridade concedida aos direitos cívicos e políticos sobre os direitos económicos, sociais e culturais e no reconhecimento do direito de propriedade como o primeiro e, durante muitos anos, o único direito económico.

 

Mas há também um outro lado desta questão. Em todo o mundo, milhões de pessoas e milhares de ONG’s têm vindo a lutar pelos direitos humanos, muitas vezes correndo grandes riscos, em defesa de classes sociais e grupos oprimidos, em muitos casos vitimizados por Estados capitalistas autoritários. Os objectivos políticos de tais lutas são frequentemente explícita ou implicitamente anticapitalistas. Gradualmente, foram-se desenvolvendo discursos e práticas contra-hegemónicos de direitos humanos, foram sendo propostas concepções não ocidentais de direitos humanos, foram-se organizando diálogos interculturais de direitos humanos. Neste domínio, a tarefa central da política emancipatória do nosso tempo consiste em transformar a conceptualização e prática dos direitos humanos de um localismo globalizado num projecto cosmopolita.

 

Passo a enumerar as principais premissas de uma tal transformação. A primeira premissa é a superação do debate sobre universalismo e relativismo cultural. Trata-se de um debate intrinsecamente falso, cujos conceitos polares são igualmente prejudiciais para uma concepção emancipatória de direitos humanos. Todas as culturas são relativas, mas o relativismo cultural enquanto atitude filosófica é incorrecto. Todas as culturas aspiram a preocupações e valores universais, mas o universalismo cultural, enquanto atitude filosófica, é incorrecto. Contra o universalismo, há que propor diálogos interculturais sobre preocupações isomórficas. Contra o relativismo, há que desenvolver critérios políticos para distinguir política progressista de política conservadora, capacitação de desarme, emancipação de regulação. Na medida em que o debate despoletado pelos direitos humanos pode evoluir para um diálogo competitivo entre culturas diferentes sobre os princípios de dignidade humana, é imperioso que tal competição induza as coligações transnacionais a competir por valores ou exigências máximos, e não por valores ou exigências mínimos (quais são os critérios verdadeiramente mínimos? os direitos humanos fundamentais? os menores denominadores comuns?). A advertência frequentemente ouvida hoje contra os inconvenientes de sobrecarregar a política de direitos humanos com novos direitos ou com concepções mais exigentes de direitos humanos (Donnelly, 1989: 109-24) é uma manifestação tardia da redução do potencial emancipatório da modernidade ocidental à emancipação de baixa intensidade possibillitada ou tolerada pelo capitalismo mundial. Direitos humanos de baixa intensidade como o outro lado de democracia de baixa intensidade.

 

A segunda premissa da transformação cosmopolita dos direitos humanos é que todas as culturas possuem concepções de dignidade humana, mas nem todas elas a concebem em termos de direitos humanos. Torna-se, por isso, importante identificar preocupações isomórficas entre diferentes culturas.

 

Designações, conceitos e Weltanschauungen diferentes podem transmitir preocupações ou aspirações semelhantes ou mutuamente inteligíveis. Na secção seguinte darei alguns exemplos.

 

(Continua)

 

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