A complexidade da situação interna na Síria é directamente proporcional à importância e ao peso estratégico que o país tem não apenas no Médio Oriente mas também na globalidade do mundo árabe e islâmico. Sendo um país da chamada “linha da frente” em relação a Israel, com o qual mantém um contencioso territorial absolutamente estagnado, tem uma relação muito especial com o Líbano, outro país da “linha da frente” e há muitas décadas em permanente sobressalto, quando não em guerra ou sob invasões israelitas… e sírias.
A envergadura da contra-informação, da censura e do bloqueio informativo praticados pelo regime, da mistificação, da mentira, dos desejos tomados como realidade corresponde ao nível da complexidade e do peso estratégico do país.
Por tudo isto já perceberam que é muito difícil, mesmo para quem tem conseguido viajar pela região, decifrar o que realmente está a acontecer na Síria para lá de um frente-a-frente caracterizado por enorme violência e terrível desumanidade entre o regime e a oposição. E sem querer colocar os dois lados em pé de igualdade, porque seria falsificar grosseiramente a relação de forças, não pode assumir-se tese de que de que os círculos oposicionistas são todos, por definição, uns anjinhos, como se entre eles não houvesse os que têm da democracia, da liberdade e dos direitos humanos o mesmo entendimento que a dinastia Assad.
O melhor caminho para tomar o pulso à realidade é alinhar factos que, através da leitura atenta e do cruzamento de informações, relatos e opiniões, parecem corresponder à realidade.
Não dá dúvida de que o regime de Damasco é ditatorial e assenta numa supremacia de um grupo formado por várias minorias étnicas e de índole religiosa que funcionam como estratos políticos e sociais um pouco à imagem do que ainda hoje é o Líbano. Grupo esse apoiado por um aparelho militar e de segurança muito poderoso e bem preparado.
Também já não existem dúvidas de que movendo-se entre a heterogeneidade das oposições existem grupos armados que, embora sob a designação comum de Exército Livre da Síria encontrada pelo Conselho Nacional de Transição para apresentar o seu braço armado como credencial aos presumíveis apoiantes estrangeiros, funciona em grupos locais e regionais, sem coordenação central e com poucos contactos entre eles.
Também existem, sem qualquer dúvida, dois relatórios internacionais realizados por comissões que estiveram no terreno e cujas conclusões, não sendo opostas, são bastante discrepantes. O primeiro, por ordem cronológica, foi elaborado por uma delegação da Liga Árabe; do conteúdo final apenas se desligaram os representantes da Arábia Saudita, monarquia ditatorial e fundamentalista que está na primeira linha da luta pela democracia em Damasco. A presidência da Liga Árabe, assumida pelo Qatar, bloqueou tanto quando conseguiu a divulgação desse relatório, segundo o qual o regime não dispara contra manifestantes pacíficos, e formou uma outra delegação, também “independente”, para realizar outra missão de apuramento da realidade ; esta lançou todo o odioso sobre o regime e silenciou a actuação de grupos oposicionistas armados. Serviu então de base à iniciativa da senhora Navi Pilay, alta comissária para os direitos humanos da ONU, que culminou com uma grande votação contra o regime de Damasco na Assembleia Geral como desagravo pelo facto de a China e a Rússia terem vetado uma posição idêntica que dava corpo a uma resolução do Conselho de Segurança.
Neste cenário não devemos passar ao lado do papel desempenhado pelo Qatar em todas as manobras das petromonarquias do Golfo provavelmente com o objectivo de conseguirem uma intervenção militar estrangeira para derrubar Bashar Assad. Enquanto preparava a segunda missão “independente à Síria”, o Qatar tratou de afastar o responsável pela primeira, o general sudanês al-Dabi, prestigiado pelo papel desempenhado nas negociações de paz no Darfour. O ministro dos Estrangeiros do Qatar tentou comprar al-Dabi para se afastar, chegou a a enviar-lhe um cheque em branco, mas perante o fracasso da diligência conseguiu os mesmos resultados oferecendo dois mil milhões de dólares ao regime de al-Bahir em Cartum para demitir o seu representante.
Acresce que o Qatar nem deveria estar actualmente à frente da Liga Árabe. Comprou a posição por 400 milhões de dólares a quem agora tinha direito ao lugar no âmbito da rotatividade das presidências, a Autoridade Palestiniana.
Estas são alguns factos. Não revelam, nem pouco mais ou menos, o que se passa na Síria mas podem servir de instrumentos de compreensão do que vai acontecendo numa procissão que, infelizmente para os sírios e também para cidadãos de muitas mais nações da região e zonas adjacentes, ainda apenas vai no adro.