Debaixo do véu – por Margarida Ruivaco

Um Café na Internet 

 

 

 

 

 

 

 

 

Como ave agoirenta, paira por cima da cabeça delas todas. Sobe e desce as escadas, abre e fecha as portas, resmunga com todas a Marias, suas irmãs, e com todas as outras, filhas de outros pais e outras mães.

 

Começa bem cedo, liga o esquentador,  vê quem sai e quem entra, e quem barra o pão com mais doce do que devia, quem come mais um paposseco, quem entorna o café do termo, tudo disfarçado de um “Buom dia, méninass”.

 

De voz nasalada, vai inquirindo quem vai e quem fica, com um falso sorriso, na cara cor de cera.

 

E quando quase todas tiverem saído, dará ordens às irmãs, contará quem ficou, e quem há-de chegar, e estará atenta à porta da entrada, e ao sobe e desce do elevador. Desligará o esquentador. Fará uma ronda proibida, escondida, pelos quartos, e desligará das tomadas os carregadores, os despertadores, os rádios e aparelhagens, os computadores, “por causa das sobre-potências”.

 

Abanará a cabeça perante camas por fazer, e olhará com nojo, chamemos assim à inveja, para os soutiens rendados sobre as costas das cadeiras dos quartos sobrelotados. Encarnação, sossega…

 

 

Confiscará pacotes de bolachas, que possam atrair formigas, comerá a última fatia do bolo, mas nada dirá a ninguém.

 

Espreitará, de dentro da capela, e nada lhe passará ao lado.

 

Reclamará ainda com outra Maria qualquer, sua irmã, com nome de orografia ou que rime com o seu, e esperará pela hora do almoço, entre contas e missais.

 

Depois do almoço reclamará porque alguma menina vê televisão, ou está agarrada ao telefone.

 

E quando, ao fim do dia, for abrir o armário do esquentador, que se encontra fechado a cadeado, para que, por fim, se possam tomar banhos de água quente, fará a advertência do costume sobre os gastos da água. E  como vingança de quem tem um ralos cabelos cinzentos, sucumbirá à tentação de fechar umas quantas torneiras de segurança, por achar que há fartas cabeleiras, cabelos longos, castanhos, pretos, dourados, lisos ou encaracolados, que estão a demorar tempo de mais a enxaguar a espuma do champô.

 

À hora de jantar, voltar a contar quem está, quem fica, quem veio, quem foi, e montará de novo guarda à porta e ao elevador. Não admitirá qualquer queixa sobre o esparguete com sardinha frita. Poderá ainda dizer “Ménina, que comes tanto…”, ou soltar um valente “Shiuu, que fazem tanto barulho.”

 

Terá ainda tempo de perguntar a uma ou outra, se vai sair assim, com tanto frio, reprovando saias e pernas frescas, enquanto arde de calores.

 

Mais tarde, enquanto não acabar a excitação do fim do dia, voltará a agoirar, reprimindo, reclamando, aconselhando o que ninguém quer ouvir, vigilante, não vá faltar uma ovelha, ou encontrar algum lobo no meio do rebanho, ou um galo novo na capoeira.

 

E enquanto não estiverem todas na cama, e todas as luzes apagada, e não tiver contado e voltado a contar, quem está, quem fica, quem foi e quem veio, continuará a subir e descer escadas, controlando a porta, a entrada, o elevador e as outras Marias e as outras meninas.

 

Não vá suceder o extravio de uma delas, perdida nos braços de alguém, esquecida das horas, noutra cama qualquer, ou quem sabe, um baile silencioso, de pantufas, no último piso, que faça estremecer os cinco andares de mulheres.

 

Desligará, por fim,  e encerrará à chave, o esquentador.

 

 

Ilustração: quadro de Dorindo Carvalho

 

 

 

 

 

Leave a Reply