JOÃO RAMALHO – por Fernando Correia da Silva

Sim, sou o João Ramalho e bem sei que estamos em 1580. Vossa Reverendíssima não torça o nariz porque, embora os portugueses sejam os novos donos do Brasil, aqui a língua portuguesa é como o latim, lá no Reino, só poucos a falam. Aqui, a língua-geral é o tupi, embora corrompido pela língua portuguesa, porém tupi ainda. E até a língua portuguesa que algumas criancinhas aprendem no Colégio (não nas ocas ou malocas) vai sendo corrompida pelo tupi. Vossa Reverendíssima, em Coimbra, falava um português impecável. Aqui já vai dizendo urubu em vez de abutre, mirim em vez de pequeno, saúva em vez de formiga, capim em vez de forragem, jabuti em vez de cágado, arapuca em vez de armadilha, catapora em vez de bexigas, jararaca em vez de cobra, e tantas mais…

E eu pergunto-me se as facilidades que os povos de língua tupi deram aos portugueses, estão a ser devidamente retribuídas pela forma como estes tratam aqueles. Não, Padre, não estou a falar apenas da sujeição física, mas também daquela outra que promoveis com a evangelização dos índios, esse vosso trabalho de sapa das suas antigas crenças e tradições, afinal suas referências para a vida ter sentido e apetecer. Estou a falar dos muitos milhares de índios que, em consequência, vão perdendo a vontade de viver e de resistir à opressão dos brancos. Bem sei que anjos, não homens, é o que vós, jesuítas, pretendíeis fabricar nos vossos aldeamentos. Mas vejo que não haveis conseguido nem uma coisa nem outra, apenas mortos-vivos.

Padre: estou velho e prestes a apagar-me. Português nasci e só ambiciono, na hora da morte, ouvir falar a minha língua natal. Só por isso tornei a esta vila de São Paulo, é ainda esta minha pecha das duas águas…

Padre: se tudo o que digo vos parecer blasfémia, pois relevai as patetices de um velho senil que a vós chega amparado pelos seus caribocas, e tratai de encomendar-me a alma a Nosso Senhor, deus dos brancos, que um pajé, antes do meu retorno, já a encomendou a Tupã, deus dos índios.


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