7. Anos 80: Os Coveiros do Novo Mundo / Entrevista com François Cusset: PARTE I

Os socialistas franceses têm mais de 30 anos de avanço sobre a Troika a defenderem as políticas de austeridade.

Crónica sobre os anos 80, sobre “Viva a Crise! “ – Texto 7 – Parte I


(In Blog Article 11, 08/04/2011)

Um verdadeiro traumatismo. Em La décennie – le grand cauchemar des années 1980, o historiador das ideias François Cusset conta-nos brilhantemente a grande ofensiva neoliberal – rolo-compressor ideológico, culto do dinheiro e dos valores (ditos) empresariais. Para um artigo do número 2 da versão papel da revista, Cusset regressa a estes anos incrivelmente “descomplexados”.


Eles enterraram tudo – a utopia, o pensamento crítico, a contestação, Marx, o comunismo e mesmo a história. O nosso mundo tornou-se um campo de ruínas, quando o deles se mostrava cheio de beleza e se afirmava com altivez, certo da superioridade das suas palavras de ordem: submissão ao mercado, à modernização tecnocrática, ao espírito de empresa e ao dinheiro-rei.

Um verdadeiro rolo-compressor, lançado em meados dos anos 1970, com os autoproclamados “ novos filósofos” e a sua denúncia do totalitarismo, e metodicamente utilizado ao longo dos anos de 1980. Nada de outra coisa que não seja o pensamento único capitalista e as sombrias perspetivas neoliberais, como se uma Margaret Thatcher sob cocaína tivesse tomado o controlo de toda a parte ocidental do globo. Mais ou menos: o inferno.

Para contar a sua vitória, um livro – prolifico e apaixonante. A obra chama-se La Decénnie, (1)  o sub-título a dar o tom : o grande pesadelo dos anos de 1980. O historiador das ideias François Cusset (2) estabelece o quadro, quase terrível, destes anos de vazio e de demasiado cheio: eliminação pura e simples (na quase indiferença total indiferença ) de toda e qualquer questão social e abundância de discursos ocos – os discursos dos ( pretensos) intelectuais e dos políticos, todos eles convertidos aos princípios da comunicação e da livre-empresa. Multiplicando e cruzando as referências, dos filmes aos artigos de jornais, das canções aos discursos políticos e aos anúncios da publicidade, o autor de Décennie não se satisfaz de falar de uma época: documenta o verdadeiro funcionamento de uma máquina de guerra ideológica.

Aos comandos da máquina rolo-compressor : Bernard-Henri Levy, Jacques Séguéla, André Glucksman, Jacques Attali, Alain Finkielkraut, Laurent Joffrin, Luc Ferry, Alain Minc, Pascal Bruckner, Jacques Julliard e tutti-quanti. Já. Há cerca de trinta anos, tomavam de assalto a (pseudo ) vida intelectual francesa; de tal modo o fizeram que ainda hoje são eles que nesse campo puxam os cordelinhos hoje. Há três décadas, pregavam a conversão às alegrias do mercado e acompanhavam a passo a transformação neoliberal; e nunca deixaram de o continuar a fazer. É aqui também que esta obra se torna essencial: fazendo viver este passado próximo, é o presente – o nosso e o deles – que a obra esclarece. Dando-nos chaves de compreensão de um mundo de que sofremos ainda hoje, é a possibilidade de uma contra-viragem ideológica o que ele também nos informa. François Cusset fala-nos no texto abaixo, em conversa livre, sobre as permanentes idas e voltas entre os anos 1980 e hoje.

A Década (La Décennie) tem isto de precioso:  não se satisfaz em descrever o balanço ideológico dos anos 80, dá-lhe realmente corpo…

Para tornar vivo este livro contra- ideológico, tive de recorrer a todo um bom pedaço da atualidade e de acontecimentos – digo : o corpo e o espírito do tempo. Tive mesmo mais prazer em estar a descrever uma época do que a denunciar ideólogos contra os quais somos tão numerosos a fustigar.

Reside aí o paradoxo do livro: mistura uma linha política, de leitura, de estar a descorticar uma visão ideológica, e uma linha subjetiva – este desejo de apreender o espírito deletério que foi o da minha juventude. Escrevê-lo, de resto, teve um efeito de autoanálise: compreendi a desordem completa na qual a minha geração se encontrava. Então confrontávamo-nos com uma espécie de obrigação de ir no sentido do vento e do fatalismo económico; isso não nos excitava, mas não nos era proposto nenhuma outra coisa. Para levar a cabo, e bem, esta obra, as fontes revelaram-se essenciais. Há uma que esgotei de A à Z: Nouvel Observateur, revista centro-esquerda da elite – onde todas as vozes influentes “de esquerda”, políticas mas também culturais e artísticas, se exprimiam todas as semanas. Li-a assim, como a tribuna da elite. E – para a pequena história – foi a causa verdadeira de um orgulho pessoal: após a publicação da Década, recebi uma carta de insultos do seu antigo diretor, Laurent Joffrin, furioso por me ter aberto as portas de Obs, para que eu me tenha aproveitado disso para lhe tirar um retrato tão pouco lisonjeiro.

Também descortiquei o jornal Libération (3), a sua evolução – do jornal proletário e em guerra dos anos 70 até ao jornal liberal-da moda dos anos 1980 – o que é sintomático da época. E Globe, Actuel, os meios de comunicação social audiovisuais, etc. Por fim, tenho lido muitos ensaios publicados nessa altura até agora, porque são um dos veículos ideológicos da época. A descolagem do ensaio como tipo best-seller remonta com efeito aos anos 1980, com primeiras tiragens de mais de 100.000 exemplares – para os Bernard Henry-Levy e equivalentes.

No final, elaboras um quadro quase terrível desta década…

Há a tendência a esquecermos o que fomos. À escala mundial, os anos 1980 correspondem a uma nova fase do capitalismo: estendeu-se a zonas ou esferas que ainda não eram colonizadas – porque não havia então ainda nenhuma necessidade de o serem e que o capitalismo estava organizado diferentemente. Ataca-se então à vida privada, ao corpo, à intimidade, etc.…

A questão da relação com o corpo, por exemplo, é essencial para compreender a década. Se não se tem em conta de que houve uma excitação corporal, desportiva, atlética e de um certo aventureirismo que é promovida com o espírito de empresa, uma dimensão de fun, mais ou menos acrescentado, cria-se um impasse sobre o espírito do tempo. Porque se continua – finalmente – numa análise ideológica. Era a preocupação de um Jean-François Lyotard: “Todos os intelectuais de esquerda com as mãos limpas nunca compreenderam que se podia ter gozo em engolir o orgasmo do capital.” Esta dimensão de gozo é primordial para compreender toda a ambiguidade dos anos 1980.

Porque há efetivamente ambiguidade! Do ponto de vista superficial das excitações e das palpitações, o corpo e as sensações, o capitalismo então desacorrentado é mais fun que todas as experiências contestatárias. O problema está aí: esta disposição ao prazer funciona, agindo como uma mola apontada para o individualismo por mais intenso que seja. Apresenta-se hoje este último como uma maneira de dividir a sociedade, de matar qualquer forma de coletivo; acredito antes que ele é um conto de fadas, uma promessa de aventura feita à cada pequena existência. Cada um teria assim em sis-mesmo um potencial infinito de histórias e de cenários.

O capitalismo funciona sobre esta promessa feita “aos perdedores” que estes têm uma possibilidade de atingir a felicidade semelhante à daqueles que eles veem insistentemente nos meios de comunicação social. Eles deveriam odiar estes pessoas que lhes roubam tudo; pelo contrário, eles gostam destas pessoas, desejam-nas, invejam-nas. Porque – precisamente – há o corpo, o prazer, um mundo de conforto. O outro, o que está em frente, não é somente o inimigo social, é também um corpo no qual se projeta.

É pesado de consequências, a multidão não emburguesada encontra-se completamente em clivagem. De um lado, as pessoas estão certas de que uma injustiça irreversível é a causa da sua existência quotidiana; do outro, identificam-se ao corpo do vencedor, esperando que um dia ele seja o seu assim. Esta segmentação desmobiliza. Todo o espírito dos anos 1980 assenta nesta promessa de que não é necessário competências específicas para se ter êxito, mas exatamente uma mistura de sorte, de maníaco e de vantagens ligadas à época – não é por conseguinte uma questão de fatalidade social. Está acessível a toda a gente: eis pois o que pretende o neoliberalismo quando agita esta velha mentira da democracia empresarial. Fazer de alguém um ser bem falante como Tapie, o herói dos anos 1980 é uma maneira de afirmar que o grande proprietário não passa de um enarca desprezível nascido com sob uma boa estrela. O que pode acontecer a qualquer um de nós.

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Nota de Tradutor

Excerto de uma canção de Tapie, o amigo de Mitterrand:

« Réussir sa vie

C’est croire en l’instant

Où tout est magie

Où tu es géant

Réussir sa vie

C’est traverser un océan

Sans savoir pourquoi ni pour qui

A l’aventure, tout simplement

 

C’est d’être un président

Ou bien n’importe qui

Ou bien prendre le temps

D’aider un ami

 

C’est de gagner en bourse

Comme on jouait aux billes

Et de finir sa course

Le soir en famille”

Até à caricatura… As fórmulas destes arautos do espírito de competicão – Tapie, por exemplo, com seu “Ganhar, viver, é mudança ” – são tão excessivas que até se tornam ridículas…

Ao redigir este meu livro, interroguei-me sobre se estas pessoas se davam conta de que eram tão caricaturais. Compreendi, depois, que toda e qualquer época de renovação ofensiva de uma ideologia é necessariamente descomplexada. Trata-se de tentar tudo, de fazer passar dogmas sob formas excessivas antes de os amaciar para se chegar finalmente a um discurso politicamente correto. A linguagem das elites é muito mais descomplexada e espetacular nos anos de 1980; depois tornam-se menos agressivos desculpando-se pelos famosos “ excessos” do capitalismo.

Opera-se por conseguinte uma ligeira reversão de discurso no início dos anos 1990. Mas isto nada mais é que retórica: o capitalismo integra o medo da mundialização e dos seus excessos sem estar a pôr em causa o seu princípio ideológico. A melhor ilustração disto mesmo é a campanha eleitoral de Chirac em redor “da fratura social”. Na sua boca, uma tal fórmula – recuperada de uma nota da Fundação Saint-Simon (4) e que resume perfeitamente quinze anos de evolução francesa – é, seguramente, uma imensa fraude. Permite-se no entanto prolongar durante dois mandatos a aventura dos anos 1980.

Prolongar? Esta década não se limita por conseguinte aos anos de 1980?

Ela dura com efeito quase vinte anos. Ela ganha as suas raízes numa viragem que tem lugar na França por meados dos anos de 1970, ligados a um refluxo rápido da excitação e os efetivos esquerdistas, bem como à chegada da crise. O nascimento do movimento diz antitotalitário, operação estratégica e mediática conduzida por Bernard-Henri Lévy ,  Glucksmann, encarna-a perfeitamente: tudo se passa como se a França descobrisse a existência de goulags… Este movimento põe realmente uma pressão enorme sobre os que tentam permanecer fiéis aos ideais de 68. No outro extremo, pode-se estender esta década até meados dos anos de 1990, muitas das pistas traçadas nos anos 1980 prolongaram-se para alem da década. Se o fim do segundo mandato de Mitterrand representa uma evidente interrupção, é sobretudo o movimento social de 95 que marca a sua travagem.

É uma paralisação simbólica.

Mas é essencial porque retira a culpabilização a quem se mobiliza. Há 15 anos, no âmbito da década, toda e qualquer forma de resistência coletiva é considerada de imediato proibida. Esta é diabolizada como estando conluiada com o comunismo real e o terror soviético. Ou então apresentada como distúrbio e desmancha-prazeres face à omnipresença do prazer televisivo e empresarial.

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Ver nota 5

É esta culpabilização que é interrompida pelo movimento de 1995. Pela sua euforia. E pela renovação das formas da luta social e do seu conteúdo de identificação. Penso aqui no desenvolvimento dos movimentismos, ligados às políticas identitárias e contra-identitárias, bem como ao tema radicalmente novo para a extrema-esquerda francesa minoritária – com esta ideia que incumbe a  uma minoria opor-se à ordem dominante. É ainda tanto mais importante quanto o comunismo terá sido durante muito tempo uma máquina de esconder as diferenças, mostrando-se tão cega às particularidades quanto a doutrina republicana francesa.


Notas:

1 Publicado por  La Découverte (2006).

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Aliás, autor  de Queer critics que tem como subtítulo :  A literatura française desestabilizada pelos seus homo-leitoress (PUF, 2002) et de French Theory, Foucault, Derrida, Deleuze & Cie et les mutations de la vie intellectuelle aux États-Unis (La Découverte, 2003).

3 A imagem de Montand que é a capa desta série é a reprodução da  capa de cobertura de um número de Libération que ficou (tristement) célebre.   Publicado em Fevereiro de 1984 e em complemento de uma emissão televisiva que foi com mesmo nome, foi apresentada por  Yves Montand,. O número analisava, à esquerda,  a viragem para as políticas de rigor, de austeridade, decididas por Mitterrand. O inarrável  Laurent Joffrin aí escrevia , citado por Acrimed : “Como estas velhas fortalezas relegadas a  terem  um papel secundário relativamente à  evolução da arte militar, a massa pardacenta do Estado francês assemelha-se  cada vez mais a um castelo inútil. A vida está algures, em outros lugares,  ela emana da  crise,  através das empresas, através da iniciativa, através da comunicação. “

4 Esta nota foi redigida por Emmanuel Todd .

5  No dia 12 de Dezembro Pierre Bourdieu juntava-se aos trabalhadores dos Caminhos de Ferro franceses da Gare de Lyon para lhes expressar o seu apoio. O seu texto pode ser lido em: Pierre Bourdieu Combattre la technocratie sur son terrain. Discours aux cheminots grèvistes, Paris, Gare de Lyon, 12 décembre 1995. Disponível aqui.


(A segunda parte deste texto será publicada amanhã, 27/06/2017, 22h)


Texto original aqui

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