Populismo e Democracia: O populismo é “o grito de dor” da moderna democracia representativa. Ouçam-no! – 7. Porquê constitucionalizar instituições classistas. Ainda uma resposta a Nadia Urbinati (2ª parte). Por Lorenzo del Savio e Matteo Mameli

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Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

7. Porquê constitucionalizar instituições classistas. Ainda uma resposta a Nadia Urbinati (2ª parte)

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Mameli e Del Savio

 

Por Lorenzo del Savio e Matteo Mameli (*)

Publicado por MicroMega Il Rasoio di Occam, em 11 de novembro de 2014

 

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A ficção da representatividade e as desigualdades económicas

A democracia representativa moderna, na reconstrução de Urbinati, tem quatro principais características institucionais: “(a) a soberania do povo, expressa através da eleição de representantes; (b) a representação como uma relação de mandato livre; (c) um mecanismo eleitoral que assegure um certo grau de responsabilidade para com o povo da parte dos representantes que falam e agem em seu nome; (d) o sufrágio universal que baseia a representação na igualdade política” (Democracia em direto, p.89). Todas estas quatro características das democracias contemporâneas têm de facto uma ligação essencial com o princípio da igualdade política dos cidadãos. A eleição por sufrágio universal garante que o processo político seja uma emanação de toda a população e não dos subgrupos privilegiados, como acontecia quando o sufrágio era limitado a grupos restritos das classes proprietárias. A contagem numérica dos votos encarna de maneira direta o princípio de que cada cidadão tem o mesmo peso político: cada um cidadão vale um voto. O mandato livre, ou seja, a independência legal dos eleitos relativamente aos eleitores e partidos, quebra a ligação entre representantes e interesses partidários, permitindo a participação dos representantes na deliberação política como portadores de pontos de vista imparciais sobre o bem comum da comunidade, de modo a permitir a neutralidade e a imparcialidade das decisões políticas.

No quadro teórico de Urbinati, o mandato livre dos representantes desempenha um papel fundamental na promoção da igualdade política. Foi o mandato livre, na interessante reconstrução histórica de Urbinati, que rompeu a natureza hierárquica dos regimes políticos não democráticos do antigo regime: “Libertar os representantes dos eleitores (dos eleitores específicos de quem receberam o voto) significou libertar os eleitores da arbitrariedade da sua filiação. Sobretudo significou libertar a assembleia dos condicionamentos diretos de interesses sociais e económicos para dar a todos os seus súbditos, sem distinção, um direito igual ” (Democracia em direto, p.133). De acordo com este ponto de vista, na ausência de mandato livre a eleição dos representantes sofreria uma regressão para formas de delegação baseadas na pertença a determinadas camadas sociais, das quais os representantes seriam simples porta-vozes, como precisamente acontecia nos sistemas políticos do ancien régime.

O mandato livre necessariamente afrouxa o controlo do povo sobre os representantes, relegando-os para essa forma de supervisão intervalada que são as eleições, as quais são, entre outras coisas, uma forma de controlo a posteriori, que funciona exclusivamente na base do temor dos representantes de não serem reeleitos. Ainda no recontar de Urbinati esta forma de prestação de contas pode não ser suficiente: os representantes seriam excessivamente independentes dos eleitores se a única correia de transmissão entre as duas partes fosse apenas as eleições. Para uma democracia representativa em bom funcionamento são necessários, de acordo Urbinati, os partidos políticos e que exista alguma forma robusta de contrapoder, como a imprensa livre. Os partidos garantiriam um controlo temporal contínuo dos eleitos, isto é, independentemente das eleições. Isto porque os representantes estão vinculados ao mandato dos eleitores por afinidade ideológica e por outros mecanismos informais mediados de pertença a partidos políticos (Democracia em direto, p. 99). Os meios de opinião, ou seja, o “poder negativo” na terminologia Urbinati (Democracia em direto, p.105) vinculam ainda mais o comportamento dos políticos, submetendo-os a formas de escrutínio e vigilância, ainda que legalmente inertes. Assim, o mandato livre, independente, é uma ficção jurídica necessária: o mandato dos representantes é formalmente e legalmente livre, porque encarna a igualdade política dos cidadãos e permite aos representantes participarem como deliberadores imparciais no processo legislativo, mas na verdade eles estão vinculados por formas de controle ideológico (os partidos) e pela supervisão pública (através da opinião dos media), bem como pelo julgamento ex post dos eleitores. Este é o ponto de equilíbrio em que se fundamenta o governo representativo, de acordo com Urbinati.

Por outro lado, a representação e o mandato livre expõem-se a uma crítica importante, vigorosamente descrita por Marx, como recorda a mesma Urbinati. Marx argumenta que “a igualdade e a liberdade formal são os dois cornos da religião civil que o Estado moderno criou, a fim de melhor proteger os interesses da classe dominante” (Democracia em direto, p.136). Graças à igualdade jurídica e aos dispositivos da democracia representativa, mesmo onde as maiorias deviam ser, por razões demográficas, a expressão dos menos abastados, “o número acaba por não contar: graças ao mandato livre, independente, os poderosos podiam legislar alegando uma imparcialidade que não existe, contornando assim a força do número ” (Democracia em direto, p.140).

A eleição por sufrágio universal deve, teoricamente, garantir a formação sistemática de maiorias que são a expressão dos interesses das pessoas comuns, que são sempre mais numerosos do que os ultra-ricos. Mas na verdade isso nunca acontece, porque o mandato livre é utilizado pelos poderes económicos para influenciar a conduta dos eleitos. A igualdade política formal pode ser mantida sem pôr em perigo os poderes económicos de se verem suplantados por políticos que coloquem os interesses do povo em primeiro lugar, porque os poderes económicos podem sequestrar o comportamento dos representantes, formalmente livres face ao mandato dos eleitores. Urbinati parece responder a esta importante objeção afirmando que nenhum crítico, muito menos Marx, foi capaz de propor uma teoria da cidadania democrática alternativa àquela que ela reconstitui. Segundo Urbinati devemos mantermo-nos firmes quanto aos quatro princípios do governo representativo, apesar da possibilidade de sequestros pela oligarquia.

Esta tese é surpreendente considerando a avaliação impiedosa de Urbinati quanto ao desempenho da democracia representativa nos Trinta Gloriosos Anos, ou seja, no que é considerado o seu período de maior glória, trinta anos após o fim da Segunda Guerra Mundial (Democracia em direto, p.138). Naquele período, os partidos políticos populares poderiam ser simultaneamente portadores imparciais de pontos de vista políticos, respeitando assim a ficção da representação, e favorecendo os interesses de grandes setores da população. Isso funcionou enquanto durou a expansão económica, porque o forte crescimento económico permitiu que os ultra-ricos se tornassem mais ricos sem que com isso empobrecessem as pessoas comuns. Nesse contexto, os partidos podiam de facto apresentar-se como defensores do interesse geral, e os eleitores em maioria podiam considerar-se “partícipes iguais de uma sociedade democrática” numa “plataforma geral que não satisfazendo nenhuma parte de forma absoluta contentava toda a gente se bem que de maneira contida”.

O bom desempenho da democracia representativa seria assim, mesmo aos olhos de Urbinati, uma situação que se devia mais ao contexto de crescimento económico após a Segunda Guerra Mundial do que ao facto de que este sistema político promovesse e protegesse a igualdade política e satisfizesse os interesses das pessoas comuns. Esta contingência parece, além do mais, estar corroborada por provas empíricas na recente obra de Thomas Piketty (O Capital no século XXI, Bompiani 2014), que defende a substancial excecionalidade do período pós-guerra. Piketty reconduz essa singularidade a uma série de fatores dificilmente repetíveis e, em alguns casos certamente não desejáveis, como a destruição massiva de capital físico causada por duas guerras mundiais, uma destruição que tinha confundido temporariamente os oligarcas e afrouxado o seu controle sobre o poder político.

A ilusão do bom funcionamento das democracias representativas modernas começou a desaparecer nos anos setenta, quando com a interrupção da expansão económica era óbvio que a distribuição se tornara um jogo de soma nula, em que já não era possível para os ultra-ricos ficarem ricos sem que o resto da população não ficasse mais pobre, e que as políticas económicas liberais emergentes seriam cada vez mais “expressamente aplicadas para satisfazer os interesses da minoria social” (Democracia direta, p.139), ou seja, os oligarcas. Isto foi, na opinião de Urbinati, o início da crise da democracia representativa e dos partidos, que naquele momento já não eram capazes de trabalhar nos espaços apertados que lhe eram consentidos pela ficção de representação.

Não está claro como, dadas estas premissas, pode Urbinati tomar partido por este tipo de democracia representativa, e pelos princípios que lhe estão subjacentes, quando o êxito desse tipo de modelo, como ela mesma admite, “é o reflexo de uma certa homogeneidade socioeconómica (uma ampla e sólida classe média) – uma condição que não é fácil de obter nem de preservar” (Democracia em direto, p.142) e de condições macroeconómicas totalmente atípicas. Mesmo que nos esforcemos para “mobilizar o instrumento da lei de forma adequada precisamente para corrigir as desigualdades de modo a que o seu peso não degrade a própria lei” (Democracia em direto p.142), de modo, por exemplo, a reformar as regras aplicadas ao financiamento das campanhas eleitorais, como é que pode este esforço ser suficiente para fazer funcionar a ficção da representação num contexto em que, precisamente devido aos defeitos da democracia representativa, aqueles que têm a responsabilidade de fazer as reformas não têm nenhum interesse em fazê-lo?

As oportunidades de influência política dos potentados económicos nos meandros do governo eleitoral e representativo – ou seja, a oportunidade de captura oligárquica – entre outras coisas, têm-se multiplicado nos últimos tempos. Não só os custos crescentes das campanhas eleitorais tornam muito mais fácil a manipulação por parte daqueles que podem financiar candidatos, mas também a crescente importância política dos peritos, tanto na administração como nos partidos políticos, fornece alavancas poderosas para aqueles que controlam financeiramente a informação e produção cultural. Os partidos, como bem denuncia Urbinati, agora são pouco mais do que receptáculos que se juntam em torno de figuras carismáticas, e os programas políticos já não são vistos como reflexo de ideologias diferentes e opostas mas como o ditado de consultores e grupos de reflexão que pela sua natureza são influenciados pela elites sociais, intelectuais e económicas. Além disso, há uma osmose contínua entre universidades de elite, órgãos consultivos, bancos de investimento, organizações internacionais e política, osmose que precisamente torna a classe política não só auto-referencial, mas totalmente incrustada nos interesses das minorias socialmente mais poderosas. O impacto dos credores e, principalmente dos maiores deles, nos mercados de obrigações de dívida pública é um canal adicional de pressão utilizado pelos oligarcas sobre as decisões que afetam a todos: o julgamento dos mercados sobre as decisões do governo ou sobre o parlamento é em larga medida o julgamento dos oligarcas (muitas vezes estrangeiros) sobre decisões que potencialmente poderiam prejudicá-los.

(continua)

Por Lorenzo del Savio e Matteo Mameli “Perché costituzionalizzare istituzioni classiste. Ancora una risposta a Nadia Urbinati”, em http://ilrasoiodioccam-micromega.blogautore.espresso.repubblica.it/2014/11/11/perche-costituzionalizzare-istituzioni-classiste-ancora-una-risposta-a-nadia-urbinati/

 

(*)Os Autores:

Lorenzo Del Savio: Doutorado em “Ethics and Foundations of the Life Sciences” na Universidade de Milão (Escola Europeia de Medicina Molecular). Atualmente é investigador pós-doutorado na Universitaetsklinikum Schleswig-Holstein em Kiel (Alemanha), trabalhando em projetos científicos na área da biomedicina, centrando os seus interesses na bioética, filosofia da tecnologia, teoria política e evolução humana. Vd https://www.kcl.ac.uk/artshums/depts/philosophy/people/staff/associates/visit/Del-Savio.aspx

Matteo Mameli: Licenciado em Filosofia pela Universidade de Bolonha e doutorado em Filosofia pela Universidade de Londres. É atualmente Leitor de Filosofia no King’s College Londres; foi investigador na London School of Economics e no King’s College da Universidade de Cambridge; é membro eleito do Conselho do Royal Institute of Philosophy. É também membro do Conselho editorial do jornal académico Topoi.

Vd http://www.kcl.ac.uk/artshums/depts/philosophy/people/staff/academic/mameli/

 

 

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