Seleção e tradução de Júlio Marques Mota
IV – O crescimento alemão pelas exportações ou as razões para a procura da competitividade a qualquer preço (parte 2), por Onubre Einz
Publicado por criseusa.blog.lemonde em 8 de maio de 2013
Reedição revista dos artigos publicados em A Viagem dos Argonautas em 3 e 4 de abril de 2015 (vd. https://aviagemdosargonautas.net/2015/04/03/a-alemanha-o-seu-papel-nos-desequilibrios-da-economia-real-o-outro-lado-da-crise-de-que-nao-se-fala-uma-analise-assente-na-divisao-internacional-do-trabalho1-iv-o-crescimento-a/ e vd. https://aviagemdosargonautas.net/2015/04/04/a-alemanha-o-seu-papel-nos-desequilibrios-da-economia-real-o-outro-lado-da-crise-de-que-nao-se-fala-uma-analise-assente-na-divisao-internacional-do-trabalho1-iv-o-crescimento-a-2/)
(conclusão)
3° Os países mais importantes para o crescimento das importações no PIB alemão.
As importações trazem somente umas nuances às considerações anteriores. Deve notar-se que as importações alemãs vindas da Europa aumentaram fortemente. A estagnação do papel das importações americanas confirma-se enquanto a África progride lentamente. São sobretudo as importações vindas da Ásia que pesam mais fortemente, mas a sua progressão não é comparável com a da Europa.
As importações alemãs aumentam, é verdade, já antes das reformas de Schröder, mas não aumentam mais do que as exportações. É normal para uma grande potência comercial que tem excedentes na sua balança comercial. O ano anterior às reformas de Schröder não mostra um aumento das importações: elas estagnam.
Assim, as reformas de Schröder não tinham o carácter de urgência com que as justificaram aos olhos da opinião pública.
4° Os principais países que contribuem para o crescimento líquido da riqueza na Alemanha
A análise da balança comercial da Alemanha permite ver mais claramente os benefícios que trazem para a Alemanha as suas trocas com os diferentes continentes do mundo. Trata-se de um enriquecimento em termos líquidos.
Enquanto o desenvolvimento do papel das importações e exportações permite falar sobre o papel crescente do comércio no desenvolvimento de um país, os excedentes permitem-nos determinar quem ganha mais com estas trocas.
Os componentes continentais da balança de pagamentos alemã são claros: a Alemanha obteve um aumento líquido de 5 p.p. do seu PIB com as suas trocas cada vez mais desequilibradas com a Europa, entre 1999 e 2008, o que é enorme.
O saldo da balança comercial dos alemães com o continente americano tem variado sem realmente tomar um rumo marcado, seja por uma diminuição ou um aumento forte e suficientemente sustentado. Finalmente, o comércio com a Ásia teve altos e baixos entre 1999 e 2005, mas, desde essa data, os alemães reduziram tendencialmente o seu défice.
Uma análise mais precisa do gráfico permite-nos reafirmar algumas ideias: antes de 2001 não se identifica nenhuma degradação de competitividade, as trocas com os seus parceiros europeus e americanos são vantajosas. Só as trocas com a Ásia são modestamente negativas, mas são largamente compensadas com as trocas com a Europa e a América.
No ano anterior às reformas de Schröder não se detetava nada de preocupante. É normal que uma crise leve a uma perturbação pontual do comércio que não assume nenhuma proporção alarmante.
As reformas de Schröder provocaram um grave desequilíbrio nas trocas comerciais da Europa, enriquecendo a Alemanha e privando na mesma proporção de riqueza todos os seus parceiros europeus.
O crescimento europeu beneficiou a Alemanha durante este período.
Depois de 2008, a crise europeia (a que voltaremos) provocou uma desaceleração acentuada dos excedentes alcançados com os outros países do continente europeu. A desaceleração do crescimento do PIB na Alemanha explica as contribuições dos países da América e Ásia para a balança comercial, onde o crescimento foi mais sustentado.
Compreender-se-á melhor esta última observação, mostrando as componentes (geográficas) da balança comercial, tendo em conta o valor do saldo da balança comercial.
Manifestamente, os excedentes criados sobre os outros países europeus foram realizados num espírito que não é o do restabelecimento da competitividade perdida. Este argumento é uma mentira.
Houve uma degradação da balança comercial com a Europa no final da década de 1990, mas essa degradação deixou, ainda assim, largos excedentes à Alemanha. A situação alemã não é preocupante: o saldo com os EUA não para de crescer durante o mesmo período.
Se olharmos para o ano que precede as reformas Schröder não se nota nenhuma perda de competitividade. Na verdade, o problema da perda de competitividade não é pertinente na Europa. Dever-se-ia antes falar de reequilíbrio. A perda de competitividade seria mais relevante com a Ásia, mas com esta última o saldo não deixou de variar no período anterior a 2000, tanto no sentido da alta como no da baixa.
A problemática pertinente relativamente à Alemanha deve ser expressa em termos de vantagens claramente procuradas e alcançadas. É a partir dos anos Schröder que esta busca máxima de vantagens para a Alemanha se assemelha a um cavaleiro isolado a apontar em todas as direções (e recorrendo a todos os meios) com particular relevo aos países europeus.
Resta assim determinar quem prossegue esta política na Alemanha. A população alemã no seu conjunto? Nada disso é menos certo: os cinco primeiros decis das famílias não beneficiaram deste crescimento, sustentado pelas exportações, essas famílias pagaram-no também. São os decis entre 50-100, que tiraram bem as castanhas do fogo e, entre eles, com particular realce, estão os decis superiores (80-100) e especialmente o último decil, o dos 10% mais ricos, que mais beneficiaram com os frutos do crescimento.
Conclusão
A revisão do saldo da balança de pagamentos poderia responder às nossas questões. Trata-se realmente do saldo da balança comercial com o mundo exterior. Tentámos mostrar num texto anterior que uma parcela crescente do rendimento foi monopolizada pelas camadas superiores da sociedade alemã.
A análise desse saldo permite-nos compreender exatamente onde é que houve uma perda de competitividade na Alemanha. A perda de competitividade nunca atingiu seriamente o sistema de produção alemão. Antes das reformas Schröder, a perda de competitividade não é visível na balança de pagamentos: as exportações e a balança comercial globalmente portaram-se bem durante todo este período.
E esta perda de competitividade também não era visível relativamente ao PIB ou à taxa de desemprego.
A balança de pagamentos negativa antes de 2002 significa que as elites económicas alemãs estavam em risco de terem uma perda de rendimento a longo prazo através do défice da balança de pagamentos. Este défice expresso por regiões significava que os saldos positivos com a América e Oceânia seriam fortemente afetados por saldos negativos com a Europa, Ásia e África.
Não basta ter excedentes comerciais para que a riqueza e o rendimento a ser partilhado entre as classes sociais de um país aumente. Também é necessário que o saldo da balança de pagamentos continue a ser positivo, caso contrário uma parte significativa da riqueza produzida escapa à partilha entre as classes sociais ao sair do país.
Temos aqui a causa essencial do relançamento do crescimento através das exportações e da formação de um saldo comercial cada vez maior, pelo menos até ao aparecimento da situação de crise. Este relançamento do crescimento das exportações, afinal, criou a margem para o aumento do rendimento nacional na Alemanha e a procura de uma transferência de riqueza crescente (em % e valor) para as camadas superiores da população foi o motivo central deste crescimento que desequilibrou o comércio internacional e o crescimento de muitos países europeus. Uma grande fração da população alemã não beneficiou desse crescimento, tal como os países que passaram a ter défices crescentes com a Alemanha. Certamente, a taxa de desemprego da Alemanha caiu depois de 2005, mas esta queda não é acompanhada por uma distribuição equitativa dos frutos do crescimento entre os alemães.
O motivo fundamental para a realização do crescimento através das exportações é o de realizar uma transferência de riqueza para o topo da pirâmide social, pesando sobre os rendimentos da maior parte dos alemães através da moderação salarial e operando também uma drenagem de riqueza dos países que têm fortes défices com a Alemanha. É a Europa que paga o preço elevado. Os excedentes comerciais da Alemanha são o resultado de um abrandamento da procura interna que penalizou as importações, assim como da competitividade-preço resultante da moderação salarial praticada neste país.
Basta olhar para a balança de pagamentos, depois de 2002, para se perceber que os excedentes da balança comercial permitiram à Alemanha conservar uma parte crescente da riqueza no seu território. Desde 2002, o défice da balança de pagamentos é corrigido a favor da Alemanha pelos défices da Europa e por África e é necessário esperar por 2009 para que o mesmo resultado seja obtido na Ásia.
Poder-se-ia ir ainda mais longe na via desta análise. Observámos que a Alemanha tem uma propensão para jogar a carta da financeirização por procuração; os capitais alemães tendem a ultrapassar o IDE nos investimentos no estrangeiro. Também observámos que, em última análise, o saldo dos rendimentos de capitais (IPD-Intérêts, Profits et Dividendes) tende a ser captado pelos estratos mais ricos da sociedade que dispõe de um património financeiro substancial.
Para que este saldo permaneça elevado, é necessário que a base produtiva da Alemanha gere um forte crescimento; também é assim essencial que este crescimento gere rendimentos nacionais crescentes dos quais uma fração pode ser investida financeiramente, dentro e fora da Alemanha, e para que o rendimento aumente exige-se que a balança de pagamentos permaneça fortemente excedentária uma vez que o crescimento do PIB depende cada vez mais das exportações. Há apenas uma solução para atingir este objetivo: desenvolver fortemente a riqueza do país através de exportações e aumentar os saldos comerciais para aumentar o excedente da balança de pagamentos.
Nessa medida, os dois fenómenos que acompanham uma economia que tende a enriquecer as classes dirigentes verificam-se na Alemanha: certamente, o investimento alemão é generoso para com os meios de produção, mas já é bem diferente para com o imobiliário das empresas; certamente, o rendimento dos alemães aumentou mas de forma muito desigual, de acordo com sua classe social de pertença ou de captação. E faz todo o sentido, dada a finalidade das elites económicas alemãs: capturar uma parcela crescente do rendimento e aumentar o valor do seu património. Reencontra-se neste esquema outra vez a insuficiência das despesas em infra-estruturas, o equilíbrio orçamental, a diminuição das despesas públicas…
O argumento da perda de competitividade escondeu, assim, a vontade das elites dominantes em aumentar a sua parte relativa e absoluta na repartição do rendimento e de o comércio externo contribuir para o seu enriquecimento. Isto explica que uma parte cada vez mais significativa do crescimento seja conseguida através das exportações.
As reformas Schröder tiveram pois dois efeitos: aumentar os excedentes da balança comercial e com isso assentar o crescimento alemão em exportações cada vez mais fortes.
Como mostra o nosso último gráfico, o aumento dos excedentes da balança de pagamentos é essencialmente suportado desde 2002 pelos países europeus até rebentar a crise de 2008. Desde então, os EUA e a Ásia passaram a funcionar como placa de substituição de uma Europa sem força que assim passava a servir menos os interesses da classe dominante de além-Reno.
Podemos ficar surpreendidos com a teimosia alemã de querer que nada mude na Europa apesar de uma crise da zona euro sem precedentes. A classe dominante alemã é, sem nenhuma dúvida, inteligente quanto às possibilidades de um enriquecimento perene, ela continua ainda atenta (ainda que ameaçada) aos meios de produção que formam a base do seu enriquecimento. Mas não é certo que as combinações que lhe permitem prosperar sejam muito realistas politicamente. Esta não será a primeira vez que a classe dominante alemã terá uma conceção das condições económicas da sua prosperidade que vai contra os seus interesses reais. A Europa (e os alemães) é (são), uma vez mais, a vítima.
A história não parece servir como uma lição; há uma maneira especial, a Sonderweg, uma maneira alemã problemática, ontem como hoje [1]. Esta Sonderweg de agora é uma personalização do crescimento praticado nos EUA mas em que o enriquecimento de uma fração reduzida da população alemã procede por vias diferentes. Esta paixão dever-se-ia ter manifestado após o colapso do comunismo, a reunificação, os seus custos e as suas tarefas tê-la-ão inibido de avançar nesse sentido. Esta Sonderweg manifestou-se apenas na viragem do novo século.
A Alemanha está, na aparência, numa via diferente daquela que foi seguida pelos EUA, as elites têm no entanto a mesma preocupação, as estruturas económicas levá-las-ão simplesmente a proceder de forma diferente de um lado e do outro do Atlântico. Os alemães servem-se do seu poder comercial para aumentar o seu crescimento, sendo então as exportações a alavanca do enriquecimento das classes superiores, enquanto nos EUA as importações de bens de consumo baratos são a maneira de tornar tolerável a compressão de rendimento da maioria da população sob a ação do enriquecimento dos dez por cento mais ricos da população.
Não é certo que os nossos vizinhos alemães tenham rompido com a sua aptidão de terem uma política externa perigosamente irrealista e altamente provincial ditada por interesses económicos mal compreendidos. A impecável máquina de ganhar nas exportações não é colocada ao serviço de um projeto com visão de futuro. As elites económicas de vários países estão já a competir entre si e atrás delas as pessoas enfrentam-se umas contra as outras sem sequer o saberem.
Em todo o mundo, o projeto alemão de um crescimento através das exportações é já questionável, os números, que não detalhámos, revelam deficiências que abalam a imagem de uma economia alemã triunfante. A pressão exercida pela escolha das elites alemãs nas economias europeias é provavelmente também tão pouco praticável a médio prazo como o é a aposta numa conquista dos mercados emergentes que está tudo menos ganha. No entanto, é através desta conquista que os dirigentes europeus estão a vislumbrar uma saída improvável da crise.
Isto é o que veremos num próximo texto em que tentaremos mostrar que as exportações alemãs têm uma reputação que está claramente sobrestimada e que o crescimento através de exportações tem alicerces bem frágeis.
Texto original “La croissance allemande par les exportations où les raisons de la recherche de la compétitivité à tout prix” em http://criseusa.blog.lemonde.fr/page/11/
Nota
[1] N.T. Sonderweg ,”caminho especial”, identifica a teoria na historiografia alemã que considera que as regiões de língua alemã ou a própria Alemanha seguiram um curso desde a aristocracia à democracia único na Europa.
A moderna escola de pensamento Sonderweg surgiu no início da II Guerra Mundial em resultado da ascensão da Alemanha nazi. Em consequência da escala de devastação provocada na Europa pela Alemanha nazi, a teoria Sonderweg ganhou progressivamente seguidores dentro e fora da Alemanha, principalmente desde finais dos anos 1960. …. , os seus defensores argumentam que o modo como a Alemanha se desenvolveu ao longo dos séculos assegurou virtualmente a evolução de uma ordem social e política nos moldes da Alemanha nazi. ………… a mentalidade germânica, a estrutura da sociedade e a evolução institucional seguiram uma via diferente em comparação com as outras nações do Ocidente, ………………. O historiador alemão Heinrich A. Winkler escreveu sobre a questão de haver um Sonderweg: “Durante muito tempo, os alemães com instrução responderam que sim, que havia um Sonderweg, inicialmente reivindicando para a Alemanha uma missão especial, e depois, após o colapso de 1945, criticando o desvio alemão em relação ao Ocidente. Hoje em dia, a posição negativa em relação a esta teoria predomina. A Alemanha não se diferencia …………… das grandes nações europeias a tal ponto que justifique falar-se de ‘uma via alemã singular’. E, de qualquer modo, nenhum país do mundo seguiu alguma vez o que se poderia descrever como a ‘via normal'”.
(Vd. Wikipedia https://en.wikipedia.org/wiki/Sonderweg)
[1] Título principal da responsabilidade do tradutor.