Autópsia de uma morte já anunciada, a do PSF. XI – Reforma do Código do Trabalho: a caminho de um “capitalismo western «

François Mitterrand: “A luta de  classes não é para mim um objetivo. Procuro que esta deixe de existir!”

Lionel Jospin:  “Eu sou um socialista de inspiração, mas o projeto que proponho ao país  não é um projeto socialista. É uma síntese do que é necessário hoje. Ou seja, é  a modernidade. ”

François Hollande   “Vivi cinco anos de poder relativamente absoluto. (…)  Eu naturalmente impus ao meu campo que, sem nenhuma sombra de dúvida, só iria aprovar as políticas que eu consideraria serem justas.” 


Autópsia de uma morte já anunciada, a do PSF

A farsa acabou. O povo francês, Macron escolheu. Um outro ciclo de tragédia e de  farsa já começou.

Reforma do Código do Trabalho: a caminho de um “capitalismo western – Texto XI

(Entrevista com David Cayla— 09/06/2017)

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Os contornos da nova Lei do Trabalho, apresentada como a prioridade do mandato presidencial de Emmanuel Macron, foram esboçados esta semana pelo governo. Sem surpresas, o projeto deixa prever uma desregulamentação acrescida do mercado do trabalho e a aceleração da corrida ao que é considerado os mínima  sociais. Quais são os desafios? Qual o impacto que se pode esperar sobre a atividade económica e sobre os assalariados? Uma explicação ao detalhe com David Cayla economista a lecionar na Universidade de Angers e membro dos Economistas Horrorizados

Emmanuel Macron prevê legislar por despacho presidencial  para reformar em profundidade o direito do trabalho francês. Este novo projeto intervém menos de um ano após a entrada em vigor das principais medidas previstas pela Lei El Khomri. Quais são as implicações desta primeira Lei Trabalho?

A lei El Khomri tinha por objetivo responder às repetidas pressões da Comissão europeia que deseja desde há anos que a França reforme e flexibilize o seu “mercado do trabalho”. Esta pretensão, que também já se exerceu e exerce sobre os países da Europa do Sul, enquadra-se  no âmbito da coordenação das políticas económicas europeias. Com efeito, a criação efetiva do euro provocou desequilíbrios crescentes entre os países do Norte, por um lado,  e os países do Sul, por outro lado. Os países do norte, a Alemanha à cabeça, aproveitam-se do seu poder industrial para gerar enormes excedentes correntes que são a causa da crise do euro (2011-2013). A Comissão entende por conseguinte reduzir estes desequilíbrios fazendo levar a que o ajustamento se faça principalmente sobre a França e sobre os países da Europa do Sul, aos quais é exigido que resolvam os seus desequilíbrios comerciais. Assim, os países em défice devem diminuir as suas despesas (o que passa por políticas de austeridade) e aumentar a sua competitividade, o que passa por uma baixa do custo do trabalho.

Ora, a maior parte das legislações sociais na Europa impede aos empregadores que alterem unilateralmente os contratos de trabalho. Para reduzir o custo do trabalho, é necessário por conseguinte anular ou revogar os constrangimentos jurídicos que protegem atualmente os assalariados e deixar “o livre jogo” do mercado organizar a baixa das remunerações. A aposta é que, nas condições atuais de uma forte taxa de desemprego, mais o mercado será “livre”, mais os assalariados serão forçados de diminuir as suas exigências e, por conseguinte,  mais o custo do trabalho se irá reduzir. Os governos de François Hollande tinham integrado perfeitamente esta lógica desde 2012. A ausência “de um empurrão à alta” do SMIC, o congelamento das remunerações na função pública e mesmo o CICE tinham todos por objetivo  submeterem-se  a esta exigência. De resto, Emmanuel Macron reconheceu-o muito formalmente. Em Maio de 2016, aquando do debate sobre “a lei trabalho”, numa entrevista aos Echos, Macron  diretamente apelava aos dirigentes de empresas  para praticarem “a moderação salarial” em nome da competitividade.

A redução do custo do trabalho era por conseguinte o objetivo principal da lei El-Khomri dado que previa explicitamente que as empresas poderiam derrogar os acordos de ramo nas negociações sobre o tempo de trabalho, ou seja, concretamente, poderiam reduzir a sobre – remuneração das horas suplementares de 25% à 10%. Por outro lado, facilitando os despedimentos económicos, a lei melhora a vantagem de que beneficia naturalmente o empregador nas negociações salariais.

Por último, não nos esqueçamos de que a lei EL Khomri foi completada (numa n-ésima versão) por um dispositivo social, “a garantia jovem”, que permite aos jovens adultos com menos de 25 anos sem recursos de beneficiar de um dispositivo de acompanhamento e de inserção e mesmo de uma  remuneração ligeiramente inferior ao RSA. Ironicamente, esta medida apresentada como “um novo direito”  e que foi considerado ter como função  fazer passar a pílula da lei El Khomri é com efeito apenas a transposição de uma diretiva europeia de Abril de 2013 que a França nunca tinha aplicado! Por esta lei, a França por conseguinte colocou-se duplamente em conformidade europeia.

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Na Primavera 2016, a Lei El Khomri provocou um movimento social de grande amplitude do qual Nuit Débout foi um dos emblemas.

O programa presidencial de Emmanuel Macron e os documentos do ministério do Trabalho revelados por Libération deixam transparecer as grandes orientações dos despachos presidenciais  que se vão seguir. Qual é a filosofia que está subjacente a este projeto de reforma e quais são os seus objetivos?

A filosofia é a mesma que a da lei precedente. Emmanuel Macron sempre considerou que a lei trabalho não tinha ido bastante longe na desregulamentação. Primeiro, não tinha chegado a impor a limitação das indemnizações de danos sofridos pelos assalariados no caso de despedimento abusivo. Seguidamente, as reformas do trabalho efetuadas nos nossos vizinhos foram muito mais violentas e permitiram reduzir os salários nominais das empresas, o que não permite a lei EL Khomri (à parte para o caso específico das horas suplementares). Ora, nos ofícios onde existe um desemprego em massa, nomeadamente nos empregos de serviços não qualificados, as margens de manobra são importantes em matéria de baixa das remunerações. Certamente, não se pode descer abaixo do SMIC, mas pode-se suprimir prémios, os minimas de ramos, os tickets restaurantes e mesmo pôr em causa os critérios em termos de penosidade do traabalho. Caricaturando levemente, as pistas tornadas públicas por Libération permitiriam aplicar o regime dos trabalhadores destacados aos assalariados franceses.

A esse respeito, dois dispositivos aparecem particularmente perigosos. O primeiro é o que atribuiria aos empregadores a possibilidade de iniciar referendos de empresa. Contrariamente ao que se poderia pensar, estes referendos não são em nenhum caso “democráticos”. Primeiro porque num referendo de empresa os assalariados são colocados perante uma escolha binária: aceitar ou recusar. E o risco é que uma recusa seja imediatamente punida por despedimentos patronais. Um tal referendo arriscar-se-ia sobretudo a ser visto como muito próximo de um dispositivo de chantagem. Contrariamente a um governo que, se perder um referendo, não pode “dissolver o povo”, um empregador pode “dissolver” os seus assalariados e perfeitamente exilar-se na Polónia ou noutro lugar. Além do mais, a lógica referendária é mesmo a negação do princípio da democracia social e da negociação. Se a democracia na empresa implicar representantes dos pessoais, sindicatos, numerosas reuniões… é porque as questões são complexas e porque os pontos de vista sobre estas questões são frequentemente muito afastados. Ora, uma empresa, para bem funcionar, não pode dispensar as discussões e as negociações, que são outros tantos momentos durante os quais representantes dos assalariados e do empregador podem apresentar os seus pontos de vista. Pelo referendo de iniciativa patronal, o empregador poderia curto-circuitar esta democracia social. A curto prazo teria sem dúvida a impressão de ganhar tempo, mas a longo prazo privar-se-ia dos instrumentos que lhe permitem efetivamente conhecer a sua empresa e os seus assalariados. A ditadura do chefe nunca é um modelo que seja capaz de perdurar muito tempo.

Outro dispositivo particularmente perigoso: a primazia do acordo de empresa sobre o contrato de trabalho. Hoje, quando um contrato é assinado entre duas pessoas, nenhuma modificação deste contrato é possível sem o acordo das pessoas interessadas. O projeto revelado por Libération prevê que o acordo de empresa possa impor-se aos contratos já estabelecidos. Em suma, se um contrato previr uma remuneração de 1500 euros líquidos, um acordo de empresa poderá fazê-lo reduzir para 1200 euros sem o acordo individual dos assalariados. Certamente, para que um acordo de empresa possa ser validado é então necessário que tenha a aprovação de uma maioria de assalariados ou dos seus representantes. Missão impossível? Não é, se o empregador utilizar a velha receita “dividir para melhor reinar ”. Poderia assim impor um acordo por referendo que preveria a baixa dos salários de uma minoria de assalariados (por exemplo os comerciais)… seguidamente multiplicar “os acordos” até ao conjunto das remunerações ser reduzido (depois dos comerciais, os secretários, seguidamente os quadros, etc.

Isto vê-se neste  exemplo, “a combinação” “referendo de iniciativa patronal” e “primazia aos acordos de empresa”, daria aos empregadores a possibilidade de fazer enfim baixar os salários das empresas francesas em toda a legalidade.

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O ministro do Trabalho Muriel Pénicaud e o Primeiro-ministro Edouard Philippe, a apresentarem o roteiro da política governamental na terça-feira 6 de junho de 2017.

O presidente da República deseja que a lei se limite a fixar os grandes princípios do direito do trabalho. Quanto ao resto, é pois a negociação coletiva de empresa que deverá ter a primazia. Em especial sobre os acordos de ramo. O que é que isso significa concretamente?

Os ramos profissionais agrupam todas as empresas de um setor económico. O interesse em negociar a este nível de agregação acordos deve-se ao facto de que a maior parte das empresas conhecem os mesmos problemas e podem portanto entenderem-se mais facilmente sobre soluções adotando normas ou entendendo-se sobre as boas práticas. Para os assalariados as negociações por ramo são também um meio para se reunirem e se defenderem os interesses coletivos comuns ao seu setor de atividade nomeadamente sobre como condições de trabalho e sobre os salários. Frequentemente, numa empresa individual, os sindicatos têm mais dificuldade em se fazerem entender porque as negociações implicam relações humanas e profissionais bem para além das questões meramente sindicais. E não esqueçamos que em numerosas empresas simplesmente não existe nenhum representante sindical, o que torna toda e qualquer negociação extremamente difícil.

As negociações por ramos têm uma outra vantagem. As empresas de um mesmo setor estão em concorrência. Ao negociarem à escala do ramo estas empresas suspendem esta concorrência e asseguram-se que os seus acordos, as ” boas práticas”, serão respeitadas por todas. Eles, assim, impedem o dumping, isto é, a concorrência desleal. De imediato, permitir às empresas desviarem-se dos acordos, significa que as autorizam a retirarem‑se unilateralmente do quadro comum, o que pode levar a uma exacerbação da concorrência e a levá-los a confrontarem-se, não na base de critérios de eficiência mas sim na base de práticas desleais.

Porque devemos ser claros: ninguém vai perder tempo a negociar ao nível de ramo se ao nível das empresas a lei lhes permite que estes acordos não sejam respeitados. Ora, estes acordos de ramo são essenciais para a regulação económica. Durante a crise da década de 30, nos Estados Unidos, foi graças à aplicação deste tipo de acordos sectoriais que o New Deal foi capaz de conter a deflação. Enfraquecer os sectores profissionais, portanto, é enfraquecer a regulação económica e promover um capitalismo western “sem fé nem lei”.

Um outro campo prioritário avançado por Emmanuel Macron consiste em colocar um limite das indemnizações do Tribunal arbitral para os casos de despedimentos sem uma causa real e séria. Trata-se aqui de uma medida reclamada desde há muito tempo pelas organizações patronais. Os documentos do ministério do Trabalho deixam igualmente prever uma flexibilidade do perímetro dos despedimentos económicos. As condições atuais do despedimento são elas realmente um travão à criação de empregos?

Não penso que a ideia seja para incitar os empresários a contratar. Hoje não é assim tão difícil em contratar na França e o direito do trabalho permite já múltiplas formas de contratações, desde o trabalho temporário ao contrato de duração indeterminada clássico passando pelos CDD, pelos contratos ditos de missão, ou seja de tarefa definida e temporária, passando pelos empregos a tempo parcial, Além disso, quando uma empresa tem necessidade de mão-de-obra a ela não se põe a questão de um eventual despedimento em cinco ou dez anos, sobretudo hoje em que as contratações se fazem massivamente em CDD, contratos pelos quais a questão do despedimento não se põe.

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Em Maio último, o Presidente do Medef Pierre Gattaz exortou Emmanuel Macron a ir “rápido e forte” com as reformas.

Na minha opinião, estas medidas dirigem-se não às empresas francesas mas aos investidores internacionais, nomeadamente aos que são familiares do direito anglo-saxónico, o qual protege muito pouco os assalariados despedidos. Aproximando-se desta norma, o governo entende enviar “um sinal” ao capital estrangeiro que procura um país onde se possa instalar. Porque a questão da competitividade não se põe unicamente em termos de balança comercial. Trata-se também, numa economia aberta, de mostrar que se oferecem “melhores” condições possíveis aos industriais desejosos de lançar uma atividade na França. E nesta concorrência aos mínima sociais não há praticamente nenhum limite, enquanto se permanecer no âmbito das convenções da Organização internacional do trabalho. O problema é que até mesmo as convenções da OIT nem sempre são respeitadas. Assim, enquanto que a França aplica 81 convenções da OIT, a Alemanha respeita apenas 59 e os Estados Unidos 12! Sem estar a contar que todas as convenções podem evidentemente ser denunciadas a todo e qualquer momento pelos países signatários.

Estas medidas parecem-nos apropriadas para lutar contra o desemprego? Não se pode temer um impacto negativo sobre a atividade económica?

É aí que reside todo o problema! Aceitando comprometer-se numa guerra de competitividade, François Hollande e Emmanuel Macron definitivamente quebraram com as políticas keynesianas tendentes a estimular a atividade económica pela procura. Persuadidos (sem razão, de resto) que estas políticas já não eram eficazes num mundo aberto à concorrência, deduziram apenas que uma só política de estímulo da oferta poderia ser lavado a cabo.

Agir sobre a procura significa aumentar o consumo das famílias e as despesas públicas para estimular a produção das empresas e o emprego. No entanto, uma parte deste aumento da procura tende logicamente a aumentar as importações e, por conseguinte, vai também  estimular a atividade económica dos nossos vizinhos. Num mundo cooperativo não seria um problema. Poder-se-ia muito bem encarar que os países se põem de acordo para que economicamente se ajudarem mutuamente. Mas o mundo de hoje não é mais cooperativo mas competitivo, incluindo na União europeia onde a cooperação desde há muito tempo deixou o seu lugar à concorrência mais agressiva possível!

Assim, neste mundo onde cada um procura ser mais competitiva que o seu vizinho, a única política possível é a política da oferta, ou seja, a politica que visa a conquistar partes de mercado à custa dos seus parceiros diminuindo o custo do trabalho e os direitos sociais. O problema é que se todos efetuarem esta mesma política os rendimentos das populações diminuem e a procura afunda-se, um pouco como se cada um se batesse contra os outros para obter uma parte maior de um bolo que diminui em tamanho. As empresas, confrontadas com as devastações desta guerra económica exigem por conseguinte sempre mais apoio por parte dos governos, o que reforça ainda mais a lógica da política da oferta.

Neste jogo em que finalmente todos saem perdedores, os principais perdedores são obviamente os assalariados que veem as suas condições de trabalho degradarem-se, e são igualmente as economias mais frágeis, a exemplo da Grécia, que são lançadas numa espiral depressiva sem fim. É por conseguinte bem evidente que estas políticas podem ter apenas consequências desastrosas a prazo e que elas são incapazes de resolver o problema do desemprego.

 


Artigo original aqui


 O décimo segundo texto desta série será publicado, amanhã, 04/09/2017, 22h


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