Autópsia de uma morte já anunciada, a do PSF. XV – O vazio ideológico do Partido Socialista – Parte I

François Mitterrand: “A luta de  classes não é para mim um objetivo. Procuro que esta deixe de existir!”

Lionel Jospin:  “Eu sou um socialista de inspiração, mas o projeto que proponho ao país  não é um projeto socialista. É uma síntese do que é necessário hoje. Ou seja, é  a modernidade. ”

François Hollande   “Vivi cinco anos de poder relativamente absoluto. (…)  Eu naturalmente impus ao meu campo que, sem nenhuma sombra de dúvida, só iria aprovar as políticas que eu consideraria serem justas.” 


Autópsia de uma morte já anunciada, a do PSF

A farsa acabou. O povo francês, Macron escolheu. Um outro ciclo de tragédia e de  farsa já começou.

O vazio ideológico do Partido Socialista  – Texto XV – Parte I 

(Por Rafaël Cos, in Revue Mouvements,  2017/1, n° 89)
REVUE

 

Resumo do artigo

O quadro desolador do mandato de  François Holland não pode somente  ser atribuído ao contexto econômico internacional. É também o resultado de recomposições  ideológicas do Partido Socialista desde o fim da era Mitterrand e do desinvestimento do trabalho programático pelos seus quadros responsáveis.  A ausência do corpus doutrinal original, a crescente dependência sobre os esquemas dos adversários  e o crescente entrelaçamento das elites partidárias com o campo do poder económico são todos  fatores que conduziram ao  esvaziamento da palavra ‘socialismo’ de todo e qualquer conteúdo identificável.


As grandes linhas “das renúncias” de François Hollande são já bem  conhecidas. A maior parte das propostas importantes formuladas aquando da campanha presidencial de 2012 foi realizada a   mínima , e isto quando não foram adiadas sine die. O Pacto orçamental europeu assinado por Angela Merkel e Nicolas Sarkozy em 2012 não foi renegociado sobre a matéria de fundo. A fusão do imposto sobre o rendimento e a  CSG e o direito de voto dos estrangeiros às eleições locais foram pura e simplesmente enterradas.  A lei sobre as atividades bancárias tocou apenas e de forma marginal sobre a parte mais especulativa destas atividades, satisfazendo assim os lóbis financeiros. A proposta destinada a enquadrar os rendimentos dos grandes patrões desafia uma  de qualquer ambição de limitação, etc.

O mandato presidencial foi caracterizado pela fixação precoce de uma agenda neoliberal que atribui a primazia aos grandes equilíbrios orçamentais e à competitividade das empresas (CICE, choque “de competitividade”, choque “de simplificação”, lei Macron), indo até ao ponto de  pôr em causa à própria  ossatura  do Código do trabalho (Acordo nacional interprofissional, trabalho ao Domingo, lei  do “Trabalho”).  Esta agenda terá sido acompanhada  de toda uma gesta  pró- patronal de   elevada carga simbólica: assim da presença massiva  dos ministros socialistas às universidades de verão do Medef, da recusa de votar uma lei de amnistia para os sindicalistas envolvidos  nas lutas sociais, ou o apoio de ministro do Trabalho às sanções penais que visam os assalariados de Air France apanhados no caso da  “ camisa”; ao ponto que se poderia justificadamente perguntar se “o adversário” de François Hollande não era tanto a finança mas sim  o próprio  trabalho. Por último, esta agenda neoliberal duplicou-se progressivamente através de uma deriva   securitária e guerreira pós atentados, a controvérsia à volta da perda do direito  de nacionalidade que constitui  um ponto alto de uma fuga para a frente desencadeada  com a lei sobre os serviços de informações   e condicionada,  desde então,  pelo facto de ter sido ativado  o Estado de emergência.

O balanço do mandato presidencial de Hollande reenvia-nos seguramente  aos próprios  constrangimentos do   campo do poder. A relação de forças interna ao espaço de decisão europeu, o peso das diferentes instituições financeiras ou a influência considerável da techno-estrutura de Bercy constituem  tantos fatores  que afetam brutalmente o horizonte do voluntarismo político em regime democrático. Uma outra pista de interpretação merece contudo ser considerada: se o efeito de sideração produzido pelas reformas postas em prática  ao longo de todo  este mandato presidencial anos parecem ser assim  tão poderoso, é talvez também porque se tenha sobrestimado  o caráter vinculativo dos compromissos assumidos em  campanha por François Hollande e – mais fundamentalmente ainda   –   de tudo o que tem a ver com  “ uma ideologia” socialista. Este artigo, que se apoia sobre um trabalho de inquéritos efetuado a partir de arquivos e entrevistas, procura abrir a caixa negra  das condições de produção das ideias socialistas. Este trabalho sugere que a política efetuada pelo PS desde 2012 resulta de uma sequência histórica e sociológica precisa, que mergulha uma parte das suas raizes na maneira como os seus líderes contribuíram para não se perceber bem onde estão as fronteiras “do socialismo”.  Nas margens de uma matriz ideológica partidária que raramente pareceu tão esvanecente, foram assim fixadas de forma duradoura orientações de que se encontra hoje a sua verdadeira tradução.

Identificar o  que constituiria “o software” ideológico do Partido socialista não é coisa fácil. Um conjunto de fatores, tanto internos como  externos à organização, cristalizou-se progressivamente, o que tornou  menos  necessária a produção de uma visão do mundo clara e estruturante. O desmoronamento do bloco soviético, o declínio contínuo do Partido comunista francês e as recomposições  do sistema  partidário  tornaram, assim,  mais saliente  as propriedades específicas da instituição socialista. Historicamente, esta é caracterizada pela fraca apetência pelo  trabalho de construção ideológica. Aí, onde  o PCF durante muito tempo  se  apoiou  num  “ modo de produção doutrinal” identificável e vinculativo( 1)   singulariza-se com efeito pela sua fraca propensão a alimentar um corpus de ideias suscetível de estimular  as práticas tanto dos seus líderes como também dos  seus militantes. A trajetória histórica da sua estruturação nacional, marcada pela conquista precoce de importantes bastiões locais, condicionou muito fortemente a organização partidária e a relação que esta mantém com a produção de ideias.  O partido é caracterizado desde longa data  pelas dificuldades claramente sentidas pela sua direção para impor uma linha aos seus poderosos  bastiões locais; ao ponto que, com exceção do período muito singular dos anos 1970, a direção do partido raramente esteve em condições de impor um quadro estratégico (a união da esquerda) e ideológico (a referência ao marxismo) comum ao conjunto das suas representações locais. O paradoxo da instituição socialista assenta assim sobre o facto que a sua unidade política   –   e, por conseguinte, a sua capacidade de movimentação e de organização da campanha eleitoral   –   necessita relações muito flexíveis no plano ideológico. Este interesse político de indefinição doutrinal vê os seus efeitos fortemente potenciados pela sociologia específica dos militantes socialistas (2). Frequentemente caracterizados por um capital cultural mais elevado que os militantes comunistas, estes últimos esperam e dependem menos da bagagem teórica que seria suscetível de lhes ser fornecida pelo partido. Até os recentes revezes registados aquando das últimas eleições locais, mais de um terço destes militantes eram quer eleitos municipais, quer assalariados de uma coletividade local ou  quer colaboradores dos  eleitos. O PS é primeiro um partido de profissionais da política, vivendo para  e da política. A rotinização  das alternâncias locais, mas também nacionais, fazia acreditar,  além disso, que  a vocação reformista do partido se provava mais “no exercício concreto das responsabilidades” do que em  longas  disputas ideológicas. Último fator,  e  não dos  menos importantes: a centralidade  crescente do cargo  presidencial dentro dos jogos partidários relegou o trabalho de produção de  ideias para a parte  baixa da escala das suas práticas. .

Esta configuração específica entravou todo o trabalho de capitalização doutrinal. Fraca a curiosidade intelectual regularmente atribuída a  François Hollande, isto é válido  para o conjunto do partido tal como este se estruturou a partir da chegada  de Lionel Jospin ao poder em 1997. Sobre este período recente, os sinais são numerosos quanto a  este esvaziamento ideológico. Os líderes do PS escrevem pouco e só muito marginalmente mobilizam os suportes de publicação dependentes do partido. O título de pretensão teórica do partido, a Revista socialista, funciona com prejuízo e desempenha apenas um papel menor aquando das sequências de elaboração programática. Os poucos “intelectuais de partido” preocupados em  manter a coerência ideológica da organização evocam a sua atividade ou a sua audiência de   modo descaradamente cínico.   O Secretariado nacional, constituído de um número pletórico de postos criados sobre os domínios de ação pública (alojamento, cultura, economia etc.), é geralmente investido pouco pelos seus próprios membros que, fora dos comunicados de imprensa, não encontram nem o tempo nem os meios para produzir textos substanciais. O Secretariado nacional para os Estudos, o órgão a partir do qual Jean-Pierre Chevènement tinha coordenado e orientado os trabalhos programáticos do partido durante os anos 1970, está desde há muito tempo desprovido de meios materiais consequentes, e a sua produção suscita apenas uma atenção amadorística  por parte das frações dirigentes. As interações com o campo intelectual, quando existem, emergem apenas de forma descontinuada, sem que nenhuma instância alguma chegue a sacralizar   estas relações para além de alguma séries de audições de  destino muito incerto. Posta em prática  por Martine Aubry em reação à derrota “ideológica” infligida por Nicolas Sarkozy em 2007, Laboratório das Ideias era suposto servir de referência para a renovação  das relações entre o partido e os intelectuais. Foi assimilado internamente a um simples instrumento ao serviço pessoal do Primeiro secretário, e nunca não foi considerado suficientemente legítimo pelas diferentes quintas ou tendências de opinião  de modo a que estas se  invistam nele. A sua principal produção, uma obra publicada em 2011 que reúne uma cinquentena de investigadores na ótica “mudar de civilização”, encontrou-se imediatamente satelizada e nunca  pareceu  em condições de encarnar uma linha ideológica (além disso muito fragmentada pelo tipo de  contribuições individuais) assimilável pelo partido como um todo.

As correntes elas mesmas deixaram-se consideravelmente secar. Se quase todas as suas  revistas desapareceram, é porque a sua tendência à cissiparidade ordena-se hoje sobretudo em torno  da distribuição dos recursos partidários: alianças e fidelidades evoluem à vontade das oportunidades oferecidas pela competição interna. Em 2005, a cristalização das oposições como o  revelou  o referendo sobre o Tratado constitucional europeu teria podido prever  uma etapa de esclarecimento ideológico. Mas imediatamente esta foi eliminada pela perspetiva da eleição presidencial, que atuou contraditoriamente como uma injunção à unidade (não mostrar as suas divisões) ao mesmo tempo que baralhava às linhas de divisão mais salientes: os jogos de aliança em redor das presidenciais  mostraram-se ser relativamente indiferentes às tomadas de posição em prol do Sim e do Não. As primárias e 2011 voltaram a criar um cenário análogo: depois de Arnaud Montebourg ter procurado demarcar-se do discurso dominante mobilizando o tema “da desmundialização”, aderiu seguidamente a François Hollande… que, tinha escolhido  fazer campanha sobre o tema da credibilidade económica.

A  fraca  apetência do partido para o debate ideológico atinge todos  os estratos do partido. Os seus arquivistas lamentam a relação desinvolta que mantêm tanto a direção como as federações para com a sua própria história. As sessões de formação do partido respondem doravante primeiramente a interesses ligados aos cargos políticos : “ a tomada da palavra em público”, “comunicação com os meios de comunicação social”, “finanças públicas locais”, etc. As raras sequências onde a democracia partidária é conduzida a incidir  sobre textos de fundo que nos dão a ver o relativo desinteresse de que   estes exercícios parecem cada vez mais serem objeto. Em 1996 e em 2010, o partido tinha organizado em cada ano três convenções temáticas encarregadas de preparar os programas próximos. Enquanto que em média 50   % dos militantes se tinha expresso sobre os textos em 1996, estes não serão  mais, em 2010, do que somente  35  % a entregarem-se a esta tarefa. Dois anos antes, a nova fórmula da Declaração de Princípios, no entanto suposta estabelecer  “o bilhete de identidade ideológico” do partido, também não tinha suscitado uma intensa mobilização do partido. Expedida em poucas semanas, a sua redação não tinha interessado nenhum dos principais líderes socialistas, já projetados para a preparação do congresso de  Reims. Adotado em catimini, este texto não foi mais referido por ninguém. Em dezembro de 2014, “a Carta dos socialistas para o progresso humano” devia constituir o ponto alto dos Estados gerais do socialismo organizados por Jean-Christophe Cambadélis. Ao acontecimento terá, desta vez,  aderido menos de um militante em cada  três. O facto que, três dias após a oficialização  de um documento que fala em “instaurar uma tributação sobre as transações financeiras”, Michel Sapin e Pierre Moscovici se tenham oposto à sua aplicação  para preservar a competitividade da praça  financeira de Paris exprime, de uma outra maneira, a centralidade  muito relativo deste tipo de texto.

Mais especificamente, é mesmo a crença do partido na sua própria capacidade em produzir programas vinculativos para aqueles ou aquelas que se apresentam em  seu nome que se estiola. O desdobramento da oferta partidária entre “o projeto” do partido e “o programa” do candidato é tão antigo quanto a eleição presidencial por sufrágio universal, e a articulação dos dois tipos de texto nunca foi tomada como uma necessidade. Em 2002, Lionel Jospin tinha-se associado confidencialmente com os serviços de uma equipa fechada para confecionar o seu programa pessoal enquanto que, ao mesmo momento, o PS celebrava o seu próprio texto. Em 2007, Ségolène Royal tinha-se oposto violentamente ao partido depois deste ter procurado impor-lhe  diversas propostas  ditas de referência:  já não  era considerado  natural nem legítimo que   o programa da candidata prolongue o do  partido. Certos sinais recentes indicam que esta dualidade se terá mesmo radicalizado. Em 2009, o relatório produzido por Arnaud Montebourg e Olivier Ferrand destinado a introduzir o procedimento das primárias abertas propunha mesmo suprimir o próprio princípio de um projeto assinado com o selo do PS. Cerca de 60  % das propostas de François Hollande não figuravam no projeto do partido, no entanto aprovado por unanimidade. Para 2017, Jean-Christophe Cambadélis fez  saber que julgava inútil que o partido se mobilizasse  para produzir um projeto no seu próprio nome : “os cadernos das presidenciais” são apresentados como simples “sugestões” a dar ao futuro candidato socialista, e não como “um programa acabado”. É assim toda a economia discursiva do partido que se encontra doravante ligada à preparação das presidenciais elas mesmas suspensas dos veredictos das sondagens. A relação partidária aos textos e o modo de produção de ideias no partido socialista aparecem assim tão fragmentados que seria difícil localizar o que é que nas suas mensagens e na suas práticas  tem a ver com um software doutrinal próprio ao Partido socialista.


Notas:

  • Rafaël Cos é doutorando em Ciência Política no CERAPS e na  Universidade  de  Lille.
  1. B. Pudal, Un monde défait. Les communistes de 1956 à nos jours, Éditions du Croquant, Bellecombe-en-Bauges, 2009.
  2.  Lefebvre, F. Sawicki, La société des socialistes. LePS aujourdhui, Éditions du Croquant, Bellecombe-en-Bauges, 2006.



Artigo original aqui

 A segunda parte deste texto será publicada, amanhã, 17/09/2017, 22h


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