Dos conhecimentos básicos em finança à opacidade e complexidade do mundo financeirizado – Uma exposição e uma análise crítica. Parte I – A finança básica hoje – 11. A regulação dos fundos de cobertura, por Randall Dodd

Jan Brueghel the Younger Satire on Tulip Mania c 1640
Jan Brueghel, the Younger Satire on Tulip Mania, c. 1640

Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

Parte I – O básico na finança de hoje 

parte I texto 11 A

11. A regulação dos fundos de cobertura

Por Randall Dodd

 

O debate sobre a regulamentação de Hedge Funds, chamados fundos de cobertura, sofre de várias deficiências. Uma delas é que os opositores à regulamentação de tais sociedades de investimento privado agarraram-se intransigentemente a uma curta lista de argumentos polidos sobre os temas em discussão. Embora tais chavões possam ser bons para melhorar as relações públicas, frequentemente não fornecem conteúdos legítmos para um debate público informado. Com este texto pretendemos avaliar esses tópicos de discussão.

“Os fundos de cobertura são benéficos porque dispersam o risco nos mercados financeiros”.

É na verdade muito importante evitar concentrações de risco e diversificar os riscos, mas não é o caso de que os fundos de cobertura sejam necessários para este tipo de gestão de riscos, nem que eles na verdade contribuam significativamente para tais fins.

Mesmo as premissas da argumentação precisam de uma investigação mais aprofundada. A maioria de riscos no sistema financeiro não são assim tão “irregulares” nem estão assim tão concentrados, e em vez disso estão já dispersos, através de um vasto leque de investidores. As ações e as obrigações são suficientemente granuladas de modo a que a sua posse está espalhada por milhões de indivíduos e de instituições. No caso dos empréstimos, a transferência de risco envolve frequentemente a agregação – e não a desagregação – dos riscos através de vários tipos de titularização. Os empréstimos titularizados, as hipotecas e outros ativos são vendidos a uma ampla variedade de investidores. Os riscos em empréstimos muito grandes estão dispersos frequentemente através da sindicação [grupo altamente bem estruturado, composto por diversas instituições financeiras e bancárias, que empresta fundos em iguais condições a uma empresa, fonte INE]. As bolsas de valores assim como as bolsas sobre derivados proporcionaram mercados líquidos para a deslocação do risco há muito tempo. Os fundos de cobertura não foram necessários para estas atividades.

De acordo com os dados, há somente duas áreas de dispersão do risco onde os fundos de cobertura desempenham um papel importante. Um é no mercado de produtos derivados do crédito e o outro é no campo da dívida em dificuldade ou sobreendividamento.

Os fundos de cobertura não deviam ser necessários para o mercado de derivados do crédito. Entre os bancos há bastante interesse nas operações de deslocação do risco de crédito, para além de que outras instituições financeiras reguladas e os investidores institucionais apoiam o mercado. As instituições acima originam ou detêm a grande maioria do risco de crédito e têm os maiores incentivos para a deslocação do risco. Elas têm igualmente um grande conhecimento dos riscos de crédito e têm o maior potencial para ganharem com a diversificação de tais riscos. Se o mercado de derivados do crédito não pode prosperar com os negócios entre estas empresas e se não pode existir sem a participação dos especuladores fundos de cobertura, então isso implica que estes mercados não estão verdadeiramente a gerar os benefícios  económicos  que reivindicam estar a criar.

Independentemente de os fundos de cobertura serem ou não necessários, existem sinais de que os fundos de cobertura são prejudiciais e disruptivos para os mercados de derivados do crédito. Um exemplo é que os fundos de cobertura estão no centro de uma investigação levada a cabo pela SEC [Comissão de Valores Mobiliários dos Estados Unidos] pela utilização de CDS [credit default swaps], seguros de crédito, por transacionarem com informação privilegiada sobre fusões de grandes empresas. Outro exemplo é sobre a ineficiência com que confirmam e fecham as suas transações.

Uma questão adicional sobre o papel dos fundos de cobertura neste mercado é se é uma melhoria para a estabilidade financeira que estas sociedades de investimentos não reguladas, altamente alavancadas e sem rating de crédito formal, estejam a ser utilizadas para escoarem o risco de crédito existente nas nossas principais instituições financeiras reguladas: – a saber, os principais bancos e as sociedades de valores mobiliários. Como é que pode ser saudável a uma economia comprar a proteção do crédito avaliado como dívida AA ou A de uma contraparte avaliada como dívida B ou menor rating de crédito? Mas é isto precisamente o que os bancos principais estão a fazer comprando proteção de crédito AA e A aos fundos de cobertura de menor rating. Mesmo se se consegue assim alcançar a dispersão de risco de que se reclamam, isso não está a ser feito de maneira que torne os mercados mais seguros e sãos.

No que diz respeito à divida em dificuldade, o problema aqui é que alguns fundos de cobertura estão a utilizar a sua posição como credores para obter informação não pública sobre empresas, e depois procuram negociar na base dessa informação interna. Noutros casos, a dívida em dificuldade é comprada pelos fundos de cobertura “abutres” e desencadeiam ações judiciais obterem o reembolso imediato para impedir a reestruturação da dívida ou permiti-la somente depois para outros credores, depois de a dívida ser paga na sua totalidade aos fundos de cobertura abutres.  

“Os fundos de cobertura são benéficos porque acrescentam liquidez ao mercado.”

O volume transacionado, segundo algumas definições, é liquidez, e os fundos de cobertura diz-se que proporcionam em termos de liquidez um valor entre 25% e 50% do volume de trocas transacionados nas bolsas de valores de New York e de Londres. Assim, a este respeito, a afirmação é verdadeira em si. Contudo, o significado económico destes volumes de transações precisam de uma avaliação mais cuidadosa.

Contudo, os mercados tais como o NYSE são, e têm sido assim durante muito tempo, muito líquidos. Estes mercados são tão líquidos que estão saturados – não podem obter mais liquidez. Não há muito benefício económico, ou talvez nenhum, em aumentar os volumes de transações. Se existem efetivamente vantagens reais isso depende se há redução ou não da margem (spread) de compra-venda ou se aumenta a profundidade do mercado [capacidade para manter ordens de mercado relativamente grandes sem que isso tenha impacto no preço do título].

Uma outra qualificação necessária é que o volume de trocas especulativas pode ser todo numa só direção. Considere a especulação que esteve por detrás da enorme subida dos preços da energia em 2006. Pergunte-se aos consumidores e aos empresários industriais utilizadores da energia quais as vantagens destas transações especulativas. Além disso, uma tal liquidez frequentemente esgota-se precisamente quando ela é mais necessária – durante períodos de disrupções e crises do mercado.

“Os bancos e outras instituições financeiras reguladas disciplinarão os fundos de cobertura através do seu papel como principais corretores.”

Os bancos e as sociedades de valores mobiliários estão, naturalmente, preocupadas com a exposição dos seus créditos aos fundos de cobertura de empréstimos e transações sobre derivados. O problema é que os bancos e as sociedades de valores mobiliários não podem controlar adequadamente tudo o que os fundos de cobertura estão a fazer. Isto é especialmente verdade para os fundos de cobertura que operam com estratégias de investimento complexas e multifacetadas. Nesses casos, não é pura e simplesmente nada económico para os principais corretores estarem a par de todas as posições e transações dos seus clientes.

Além disso, existem conflitos de interesses sérios. Os bancos e as sociedades de valores mobiliários ganham muitas comissões, taxas e lucros pelas transações com os fundos de cobertura. Restringir as atividades dos seus clientes minaria os incentivos para expandir esta lucrativa fonte de rendimentos.

Para além destes conflitos de interesses, há ainda os incidentes dos bancos em conluio ativo com os fundos de cobertura para entrarem em transações ilegais e potencialmente desestabilizadoras. O Bank of America foi conivente com o fundo de cobertura Canary Capital para negociarem derivados de títulos de investimento como parte de um esquema para roubar fundos mútuos geridos pelo Bank of America. O Deutsche Bank operou com fundos de cobertura para manipular uma oferta de valores mobiliários públicos em França. Se os bancos estão de facto em conluio com os fundos de cobertura, então é muito perigoso depender deles para supervisionarem indiretamente os fundos de cobertura.

“A falência de Amaranth [1] prova que o sistema funciona porque não conduziu a uma crise sistémica.”

Este é o mesmo tema de debate que foi usado depois do colapso da Enron. Assume-se um elevado patamar para aquilo que constitui um evento sistémico, e este valor serve para descartar a ideia de gravidade de outras falências financeiras. Alguns exemplos:

  • O congelamento ou a cessação – embora temporária – das transações de um swap sobre taxas de juros e de títulos de rendimento fixo que se seguiu à falência da Long Term Capital Management (LTCM).
  • O colapso das transações sobre derivados em energia negociados nos mercados de balcão, mercados OTC, que seguiu à falência de Enron.
  • O quase caos sistémico sobre o mercado de derivados do crédito que se seguiu à degradação da notação da GM e da Ford em maio de 2005.
  • A fraude feita aos investidores de fundos comuns de investimento com as técnicas de late trading [2] e market timing [3].
  • As distorções nos preços de mercado por transações feitas na base de informação privilegiada ou de manipulação dos mercados.

A defesa desta ideia do elevado patamar para o que deve ser considerado um evento sistémico, pressupõe implicitamente que não existem outros custos ou interesses públicos atingidos salvo nas crises sistémicas, e que os grandes eventos de mercado como os que acima foram citados não são crises sistémicas. Isto implica, erradamente, que os numerosos disfuncionamentos assim como as numerosas distorções não são encaradas como sinais de fraquezas estruturais sérias no mercado atual e na estrutura reguladora que poderão, indubitavelmente, um dia causar uma grande crise sistémica.

“Caveat emptor [4]: Os investidores devem proteger-se eles próprios através da sua recolha de informações.”

Esta ideia desvia o foco do interesse das autoridades públicas sobre os próprios fundos de cobertura em si mesmos, isto é, sobre a proteção de muitas pessoas cujos meios de sobrevivência dependem do funcionamento seguro, sadio e eficiente dos mercados financeiros, em vez de se andarem a interessar em andar a proteger aqueles que investem nos fundos de cobertura. Quando as atividades de mercado dos fundos de cobertura interrompem ou distorcem os mercados financeiros, isto traz custos a todos com o seu impacto na economia em geral. Os investidores nos fundos de cobertura não podem confiar numa vigilância segura sobre as suas ações – especialmente se puderam privadamente estar a ganhar com elas. É a integridade dos mercados – e não os investidores individuais específicos – que é preciso proteger.

Conclusão

Em resumo, estes argumentos na defesa dos fundos de cobertura não fazem avançar a discussão política ou a formação da política de regulação. Ao invés, prestam um muito mau serviço. Nós precisamos de um debate bem informado para se determinar sobre o que deve ser a política financeira mais apropriada – uma política que atenderá aos benefícios que os fundos de cobertura realmente fornecem, mas reduzindo ao máximo os danos trazidos pelo crescimento rápido deste novo veículo de investimento. Tal como a arquitetura, o projeto da política de interesse público deve ter em atenção o ditado de que a forma deve respeitar a função. Se os fundos de cobertura são importantes para os mercados e para a economia, então o seu lugar na estrutura reguladora deve ser importante. Se não se mostram capazes de se auto-regularem, então é necessária uma estrutura reguladora legalmente executória. Se os fundos de cobertura desempenham funções críticas nos mercados de crédito, então eles precisam de padrões reguladores apropriados para o capital e para a utilização de colateral. Se estão a assumir grandes posições nos mercados bolsistas clássicos e nos mercados de derivados, então devem estar sujeitos a exigentes requisitos de informação para permitir uma adequada vigilância do mercado.

 

Texto original “Hedge Fund Regulation”, Randall Dodd, em https://poseidon01.ssrn.com/delivery.php?ID=101111070070113115002004080005007073116000017019026088089089070026078013095070104025052012063126123028115126113066022005117091044005075034012089075084080104094004105068003033070094103116083028075018006082099124125095122106074001027029022071074031113013&EXT=pdf

NOTAS DE TRADUÇÃO

[1] Amaranth Advisors LLC era um fundo de cobertura americano fundado por Nicholas Maounis e com sede em Greenwich, Connecticut. No seu auge a empresa tinha mais de $9 milhares de milhões em ativos sob a sua gestão, antes de entrar em colapso em setembro de 2006, depois de perdido mais de $5 milhares de milhões em futuros de gaz natural. A falência da empresa foi uma das maiores perdas de transações e de colapso de fundos de cobertura conhecidos.

[2]  A SEC define late trading como sendo a prática de colocar as ordens de compra ou de recompra de ações de fundos comuns de investimento depois da data à qual os fundos comuns calcularam o seu valor patrimonial líquido, habitualmente às 16 horas mas recebendo o preço baseado nesse dia e não o preço de abertura do dia seguinte.

[3]  Market timing é a escolha do momento ideal, tendo em conta a situação de mercado para efetuar uma operação. Diremos assim que representa a tentativa de previsão da direção de mercado frequentemente seguindo indicadores técnicos ou dados económicos.

[4]  Expressão latina que significa literalmente “toma cuidado, comprador”, ou seja, o risco é do comprador.

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