Uma nova série sobre as novas tempestades que se vislumbram já no horizonte
Seleção e tradução de Júlio Marques Mota
Parte I – 2. Os anos de 1930 revisitados (1ª parte)
A corrida para o abismo: o que a Grande Depressão nos revela sobre o futuro
Por Larry Elliott
Publicado por The Guardian, em 4 de março de 2017
Foi o maior revés para a economia global desde o início da era industrial moderna. Mas a reação do mundo piorou os efeitos do Grande Colapso de 1929? E será que aprendemos com esses erros?
Quando o verão de 1929 chegou ao fim, o célebre economista da universidade de Yale, Irving Fisher, serviu-se das páginas do New York Times para opinar sobre Wall Street. As cotações das ações tinham aumentado ao longo de todo o ano; os investidores tinham estado a especular com dinheiro emprestado no pressuposto de que os bons tempos continuariam a verificar-se. Era o mercado em mais forte alta de todos os tempos, e aqueles que apostavam queriam garantir que o seu dinheiro estava seguro.
Fisher forneceu-lhes essa segurança, prevendo confiante: “Os mercados de ações atingiram o que parece ser um patamar máximo que se vai manter constante”. Naquele dia, o colapso de Wall Street de Outubro de 1929 estava a menos de dois meses de distância. Foi a pior sugestão da história. Nada mais houve que se lhe assemelhe.
A crise rebentou na quinta-feira 24 de outubro, quando o mercado caiu 11%. A quinta-feira negra foi seguida por uma queda de 13% na segunda-feira negra e uma queda adicional de 12% na terça-feira negra. No início de novembro, Fisher estava arruinado e o mercado de ações estava numa espiral descendente que atingiu o seu ponto mais baixo em junho de 1932, altura em que as empresas cotadas na Bolsa de Valores de Nova York tinham perdido 90% do seu valor e o mundo tinha mudado completamente.

O grande colapso foi seguido pela Grande Depressão, o maior colapso da economia global desde o alvorecer da moderna era industrial em meados do século XVIII. No espaço de 3 anos após as previsões erradas de Fisher, um quarto da população trabalhadora da América estava desempregado e desesperada. Como o economista JK Galbraith afirmou: “Algumas pessoas estavam com fome em 1930, em 1931 e em 1932. Outras foram torturadas pelo medo de que poderiam vir a passar fome”.
Os bancos que não estavam a falir estavam a executar as hipotecas dos devedores. Não havia Estado Providência para amortecer a queda para aqueles tais como os Okies de John Steinbeck -os fazendeiros encurralados entre dívidas crescentes e quebras brutais nos preços dos seus produtos. Uma estimativa sugere que 34 milhões de americanos não tinham nenhum rendimento. Em meados de 1932, a abordagem do nada fazer de Herbert Hoover foi desacreditada e o democrata Franklin Roosevelt estava em vias de se tornar presidente dos EUA.
Do outro lado do Atlântico, a Alemanha estava a sofrer a sua segunda calamidade económica em menos de uma década. Em 1923, os vingativos termos de paz impostos pelo Tratado de Versalhes ajudaram a criar as condições para a hiperinflação, quando um dólar podia ser trocado por 4,2 milhões de milhões de marcos, em que as pessoas transportavam carrinhos cheios de notas inúteis pelas ruas, e os cigarros eram utilizados como dinheiro. Em 1932, um programa de austeridade selvagem deixou 6 milhões de pessoas sem emprego. A Alemanha sofreu quando a libra caiu e as exportações britânicas rivais ficaram mais baratas. Mais de 40% dos trabalhadores industriais da Alemanha estavam desempregados e os nazis, os camisas castanhas, estavam em luta contra os comunistas pelo controle das ruas. Em 1932, as políticas de austeridade do Chanceler alemão Heinrich Brüning foram desacreditadas e Adolf Hitler estava em vias de o substituir.
Seria errado pensar que ninguém viu a crise chegar. A previsão de Fisher pode muito bem ter sido uma resposta a uma previsão bastante diferente (e notavelmente precisa) feita pelo consultor de investimentos Roger Babson no início de setembro de 1929. Babson disse na Conferência Nacional de Negócios dos EUA que um colapso estava em vias de se verificar e que este colapso seria muito violento. “As fábricas serão fechadas”, disse Babson, “os homens perderão os seus empregos, perderão os seus postos de trabalho.” Antecipando como o grande colapso se alimentaria a si mesmo, Babson avisou: “O ciclo vicioso vai entrar e o resultado será uma grave depressão na atividade económica.”
As Cassandras são ignoradas até que seja tarde demais. E Babson, que tinha fama de pessimista, foi devidamente ignorado. O Dr. Doom da crise de 2008, Nouriel Roubini da Universidade de Nova York, teve o mesmo destino.

F Scott Fitzgerald descreveu o Grande Colapso como o momento em que a era do jazz se afundou até à morte. Isso marcou a passagem de uma primeira era da globalização que tinha florescido nas décadas anteriores à primeira guerra mundial, com movimentos livres de capital, liberdade e, em menor medida, com movimentos de mercadorias. Na década que se seguiu ao silenciar das armas em 1918, os políticos tentaram recriar o que eles viam como um período dourado de liberalismo. A Grande Depressão pôs um ponto final nestes planos, dando início, em vez disso, a uma era de isolacionismo, protecionismo, nacionalismo agressivo e totalitarismo. Não houve recuperação significativa até que as nações pegaram de novo nas armas em 1939.
Na Grã-Bretanha, a recuperação concentrou-se no sul da Inglaterra e foi demasiado fraca para poder reduzir o desemprego enraizado nas antigas áreas industriais. A marcha de Jarrow pelo direito ao emprego ocorreu em 1936, sete anos após o início da crise. Passou-se uma história semelhante nos EUA, onde a recuperação durante o primeiro período presidencial de Roosevelt terminou numa segunda mini-queda em 1937. Sir Winston Churchill, que perdeu muito com o Grande Colapso descreveu este período de 1914 a 1945 como a segunda guerra dos 30 anos.
Apenas um outro colapso financeira se pode comparar ao colapso de Wall Street pela dimensão e duração do seu impacto: o período que teve como ponto mais alto a falência do Lehman Brothers em setembro de 2008. Sem a Grande Depressão, não haveria New Deal nem revolução Keynesiana em economia. Roosevelt talvez nunca tivesse progredido para além da sua mansão de governador em Nova Iorque em Albany. Hitler, cuja estrela política estava em declínio no final dos anos 1920, teria sido apenas uma nota histórica de rodapé.
Da mesma forma, sem os duradouros efeitos do colapso de 2008, não teria havido Brexit e Donald Trump ainda seria um construtor da cidade de Nova York e a Europa não estaria a tremer perante a possibilidade de Marine Le Pen substituir François Hollande como presidente francês.
Não, desde a década de 1930 que não se viam tão graves receios de uma revolta populista contra a ortodoxia predominante. Tal como então, um período prolongado de pobres resultados económicos levou a uma reação política que parece alimentar novamente o desejo de uma abordagem económica diferente. O início dos anos 30 partilha com os meados dos anos 2010 um sentimento de que os poderes estabelecidos perderam a confiança de um largo número de eleitores, eleitores estes que rejeitaram o “negócio como de costume” e apoiam os políticos que eles veem como estando a desafiar o status quo.

Trump não é o primeiro presidente a exortar uma política da América em primeiro lugar: Roosevelt teve uma ideia semelhante depois de substituir Herbert Hoover em 1933. Nem é a primeira vez que houve um tão grande abismo entre Wall Street e o resto do país. A aversão aos banqueiros nos anos 20 endureceu e transformou-se num desejo de retribuição, de resposta, nos anos 30.
De acordo com Lord Robert Skidelsky, biógrafo de John Maynard Keynes: “Chegamos à Grande Depressão pelo mesmo motivo que em 2008: houve uma grande quantidade de dívidas, houve apostas à margem no mercado de ações, houve excesso de inflação dos ativos e as taxas de juros eram demasiado altas para suportarem um nível de investimento de pleno emprego.”
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Existem outras semelhanças. Os anos 20 tinham sido bons para os proprietários de ativos mas não para os trabalhadores. Houve um aumento acentuado do desemprego no início da década e os mercados de trabalho ainda não tinham recuperado completamente no momento em que uma queda ainda maior se desencadeou em 1929. Mas, enquanto os empregados viram a sua fatia do bolo económico tornar-se menor, para os ricos e poderosos, os ruidosos anos 20 foram o melhor dos tempos. Nos EUA, a redução para metade da taxa máxima de imposto de rendimento para 32% significou mais dinheiro para a especulação nos mercados de ações e de imóveis. Os preços das ações subiram seis vezes em Wall Street na década anterior ao Grande Colapso de Wall Street.
A desigualdade era alta e crescente, e a procura apenas foi mantida através de uma bolha de crédito. O desemprego entre 1921 e 1929 foi de 8% nos EUA, 9% na Alemanha e de 12% na Grã-Bretanha. Os mercados de trabalho nunca se recuperaram realmente de uma recessão severa no início dos anos 20, projetada para destruir o boom inflacionista do pós-guerra.
Acima de tudo, em ambos os períodos, a política global estava em movimento. Desde 1890, o equilíbrio de poder entre as grandes nações europeias que mantiveram a paz durante três quartos de século, após a batalha de Waterloo em 1815 começou a desmoronar-se. Os impérios otomano e austro-húngaro estavam em declínio antes da primeira guerra mundial; os EUA, a Alemanha e a Rússia estavam em ascensão.

Mais importante ainda, a Grã-Bretanha, que tinha estado a ser o centro da globalização do final do século XIX, tinha sido enfraquecida pela primeira guerra mundial e já não era capaz de desempenhar o papel de liderança. A América ainda não estava pronta para assumir o lugar da Inglaterra.
Stephen King, consultor económico sénior do HSBC e autor de um próximo livro sobre a crise da globalização, Grave New World, diz: “Existem semelhanças entre agora e 1920 e 1930, no sentido de que se tem uma superpotência em declínio. A Grã-Bretanha estava em declínio e os EUA estão agora potencialmente em declínio“.
King diz que nos anos 20, a ideia de um mundo governado por impérios estava a desmoronar-se. Eventualmente, os EUA assumiram o papel da Grã-Bretanha como defensor dos valores ocidentais, mas não antes dos anos 40, quando era fundamental tanto derrotar o totalitarismo como criar as instituições económicas e políticas – Nações Unidas, Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial – que foram projetadas para garantir que os eventos calamitosos dos anos 30 nunca mais voltassem a acontecer.
“Há sérias dúvidas sobre se os EUA estão aptos ou estão dispostos a desempenharem o papel que tiveram na segunda metade do século XX, e isso é preocupante porque se os EUA não o estão a fazer, quem é que o faz? Se ninguém está preparado para desempenhar esse papel, a questão é se não estamos a caminhar para uma era ainda mais caótica“.
(continua)
Crash course: what the Great Depression reveals about our future. Texto disponível em: https://www.theguardian.com/society/2017/mar/04/crash-1929-wall-street-what-the-great-depression-reveals-about-our-future
Larry Elliott, jornalista inglês, é editor económico no The Guardian.