
Como parece a Geringonça quando vista desde Portugal – uma resposta a Mario Nuti sobre o caso exemplar das políticas socialistas de sucesso em Portugal (1ª parte)
Por Júlio Marques Mota
Em 3 de junho de 2018
Em relação à questão por si levantada sobre o caso exemplar das políticas socialistas de sucesso em Portugal e como parece a Geringonça quando vista desde Portugal, envio-lhe uma resposta, elaborada por um antigo aluno meu, um dos meus grandes amigos e editor no blog A Viagem dos Argonautas, que se situa numa crítica muito dura à ala direita do PS. E também a resposta do meu amigo António Marques sobre a espinhosa questão da reversão da política da Troika.
Pela minha parte, e de modo direto, penso que vivemos ainda no regime de austeridade, que foi mitigado por uma certa redistribuição dos rendimentos feita pela Geringonça, penso que vivemos numa sociedade bloqueada pela crise e pela regulamentação bruxelense, que nos impede de ter quaisquer veleidades de democracia e de crescimento, como elas foram interditas no quadro dos procedimentos dos tratados da UEM. Felizmente, temos um governo de esquerda que se mantém graças à grande capacidade de negociação de António Costa e do reconhecimento público do seu empenho sério com a melhoria das condições de vida da maioria dos portugueses, e também devido ao sentido de Estado que têm os dirigentes do partido Comunista e do Bloco de Esquerda que apoiam a Geringonça.
Mas os problemas acumulam-se e se bem que se compreende a boa vontade do governo, com os mecanismos europeus a sua margem de manobra é muito pequena, para não dizer quase nula, como o sabe tão bem como eu.
O nosso país saiu do quadro do procedimento por défice excessivo, mas ainda nos encontramos no âmbito do quadro preventivo dos Tratados com exigências draconianas em relação às necessidades do estímulo necessário para se estabelecer uma trajetória de crescimento. No âmbito do quadro preventivo os Estados-membros devem assegurar finanças públicas sustentáveis, digamos, é necessário que elas cumpram a trajetória de ajustamento para os objetivos do médio prazo. No caso da dívida deve-se assegurar que esta se situe na trajetória de redução pelo valor de referência da redução da dívida. Eis os valores de referência para os principais indicadores em 2017 e 2018.
Sublinhemos que a exigência de Bruxelas em relação ao orçamento é a segunda mais draconiana da UEM, 0,6 de variação do saldo estrutural na trajetória dos objetivos de médio prazo ! O ajustamento mínimo exigido para a variação do saldo estrutural impõe uma melhoria deste indicador no mínimo de 0,6% do PIB em 2017 e 2018 !
Além disso, para assegurar uma margem de proteção em relação ao défice de 3% para que os estabilizadores automáticos possam funcionar sem que o país caia no défice excessivo, é necessário que o saldo estrutural atinja o valor mínimo de referência que corresponde a -1,6% em 2017 e -1,1% em 2018.
Mais ainda : para que a evolução da despesa possa ser consistente com a trajetória de ajustamento dos objetivos de médio prazo, ela deve registar uma redução de pelo menos 1,4% em termos reais, ou de um crescimento em termos nominais inferior a 0,1% em 2017 e 2018.
Está tudo claro, a margem de manobra de política económica favorável ao crescimento é praticamente nula. Aliás, tudo isto pode ser resumido na posição oficial que nos diz, preto no branco: «o esforço orçamental mostra-nos uma mudança de comportamento da política orçamental. No contexto da melhoria da conjuntura económica, a evolução do saldo primário estrutural foi positivo (0,6% do PIB) e isso reflete um comportamento restritivo e contra-cíclico da política orçamental». Vergonhoso, é o mínimo que se pode dizer, aplicado num país fortemente devastado pela crise. Tudo se passa como se estivéssemos nos bons tempos das vacas gordas, como se estivéssemos numa bela primavera, para aplicar uma política restritiva e contra‑cíclica.
Sobre este mesmo ponto o primeiro-ministro acaba de nos dizer:
« A prioridade fundamental do país, … é reduzir a sua dívida, o que implica a necessidade de manter níveis de saldos primários relativamente elevados ».
« Isso implica que a despesa não possa ser aumentada tanto quanto o desejaríamos, e implica também não baixar a carga fiscal tanto quanto desejávamos. Devemos manter-nos neste equilíbrio até que exista um nível de dívida sustentável que nos alivie dos riscos em relação aos imponderáveis no cenário internacional, nomeadamente no seguimento de eventuais guerras comerciais »
Do meu ponto de vista não estamos, ideologicamente, muito longe do discurso da Troika, de Rogoff e de Reinhardt, certamente numa versão suave, em que o importante (recordando Bécaud) não é a rosa (aqui, o crescimento) o importante é a dívida. Em suma, a ideologia da dívida e da austeridade é implicitamente assumida, mesmo por estas pessoas que não a defendem, como é, na minha opinião, seguramente o caso do nosso Primeiro-ministro.
Portanto, nesta malha de restrições, de duros constrangimentos, a economia só poderá arrancar impulsionada por fatores exógenos. Ela pode, pois, descolar apenas através de um milagre, por acontecimentos externos, como a dinamização tendo como suporte o crescimento do turismo, o aumento da procura das nossas exportações, a redução do serviço da dívida pela baixa da taxa de juro implícita devido ás aquisições do BCE e da confiança dos mercados, em virtude desta política do BCE, pela entrada de capitais estrangeiros como investimento direto na indústria por exemplo, ou no nicho de mercado da construção de luxo.
Vejamos o plano dos factos. Neste plano, eis o que existe como sinais de sucesso: a redução do serviço da dívida devido à política de flexibilização quantitativa (QE) do BCE, a dita «confiança dos mercados» ; o crescimento muito forte do turismo de baixa gama, turismo de massa dinamizado pelo desmantelamento das rotas internacionais clássicas do turismo, e aqui podemos sublinhar quer os efeitos nefastos do aluguer tipo airbnb (existem outros como Warmrental, Rentalia, Homeaway, Only-appartments) sobre o mercado de aluguer do ponto de vista interno, que está numa situação de forte ruptura, quer o efeito de dinamização da entrada de turistas. Neste caso, trata-se sobretudo de turismo de baixa gama, no sentido económico do termo. Existe também algum turismo de alta gama, ainda que de poucas pessoas mas de elevada importância económica devido ao seu impacto na construção de habitações de luxo novo ou sobre a compra de imóveis para recuperação situadas nos melhores bairros e que são vendidos no mercado especializado de luxo. O processo de gentrificação está em marcha e imaginamos bem os custos sociais sofridos pelos desfavorecidos neste processo. A isto não é estranho também a emissão de passaportes dourados, as aquisições de casas por estrangeiros ricos ou de classe média de países «ricos», caso francês sobretudo no sul do país.
E, certamente, no ativo do governo existem também os efeitos de redistribuição dos rendimentos e o seu efeito multiplicador sobre a procura interna. Devemos sublinhar bem que a política de redistribuição foi feita sobretudo para melhorar as condições de vida dos mais desfavorecidos e também aliviar a carga fiscal sobre a pequena e média burguesia. No ativo do balanço do governo poder-se-á acrescentar nesta dinâmica de crescimento o impacto das taxas de juro, em baixa devido à política do BCE, e também, o que é muito importante, uma maior confiança que as pessoas ganharam em relação ao futuro, dada a política de estabilização social d atual governo, tudo isso tem como efeito favorecer o crescimento do setor da habitação clássica.
No quadro da nossa leitura da situação atual, iremos ver alguns números que nos poderão dar a imagem da fragilidade da economia portuguesa neste processo que tanto admira os analistas estrangeiros. Iremos ver a evolução do turismo, do mercado imobiliário, veremos algumas características presentes no mercado de trabalho, analisaremos a evolução do endividamento das famílias, etc. Iremos, pois, olhar para os principais números que explicam o crescimento do PIB e a fragilidade da economia portuguesa desprotegida dos imprevistos da conjuntura económica internacional.
Vejamos em primeiro lugar, alguns dados sobre a evolução do turismo e a sua crescente importância desde 2015:
[Obs: pode ver-se mais claramente esta crescente importância nos dois últimos quadros deste grupo. Os 3 primeiros quadros mostram os dados para 2017/2018 (o primeiro) e os dados gerais no que diz respeito ao comércio de bens e serviços para 2014/2017 (os dois seguintes).]
Comércio de bens e serviços em percentagem do PIB
Taxas reais de crescimento homólogo
O excedente da balança de serviços ainda aumentou em 2017, situando-se em 8,1% do PIB, depois de ter atingido 7,3% em 2016. Houve uma aceleração das exportações (um aumento de 13,3%, em relação aos 6,3% de 2016) e das importações (crescimento de 10,5%, após uma subida de 5,1% em 2016).
Vejamos agora o setor da construção, dinamizado a nível interno, sobretudo pelas baixas taxas de juro praticadas, e aqui podemos e devemos acrescentar o sentimento de uma mais forte confiança no futuro por parte da pequena burguesia e das classes de rendimentos mais baixos, dado o sentimento de uma maior estabilidade de emprego no futuro. Isto tem a ver sobretudo com o imobiliário clássico. Para as famílias mais abastadas, as muito baixas taxas de juro dos seus depósitos bancários convida-as a investirem no imobiliário com objetivos especulativos, digamo-lo. A esta procura interna deve-se acrescentar, porque muito importante, a procura externa no imobiliário de média ou alta gama.
Nas palavras da FEPICOP Federação Portuguesa da Indústria da Construção e Obras Públicas:
“Segundo os dados publicados pelo INE, os preços de venda das casas nas principais cidades explodiram, com um aumento da mediana no espaço de um ano, de 18% em Lisboa e de 14% no Porto. Mas tendo em conta o período de 24 meses para o qual existem informações disponíveis, o caso de Lisboa é paradigmático: o preço de venda médio por metro quadrado aumentou 30%. Mas também no caso da Amadora, a evolução é significativa, com uma subida dos preços de 25%, indicando que as zonas de fronteira das grandes cidades começam igualmente a revelar um perfil igualmente inquietante do nível de preços do imobiliário.
A fim de atenuar este desequilíbrio entre procura e oferta no mercado de habitação, é indispensável reforçar a oferta de casas, seja tornando atrativa a disponibilidade das casas existentes, e que não estejam ainda no mercado (incentivos fiscais ou outros), seja dinamizando a construção de novas casas.
É neste sentido que a autorização de novas já evoluiu, aumentando de 21%, 38% e 24% no decurso dos três últimos anos e de 20% nos dois primeiros meses de 2018. Porém, estes valores correm o risco de serem insuficientes para satisfazerem uma procura tão dinâmica como a atual e que é de grande importância para a nossa economia, mesmo se, ocasionalmente, ela dá lugar a situações menos consensuais.” (o sublinhado a negro é nosso).
Do ponto de vista interno, o Banco de Portugal diz-nos:
“Em conformidade com o que foi observado desde 2015, o montante dos novos empréstimos para habitação mostrou uma tendência de subida ao longo de 2017. (Ver a figura I.3.10)
O total de empréstimos para habitação fica, não obstante, claramente inferior ao dos anos antes da crise económica e financeira. Após dois anos no decurso dos quais os contratos a uma taxa de juro a um ano aumentaram significativamente o seu peso no total dos novos empréstimos, em 2017 observou-se uma estabilização do seu peso em 40%. O aumento de novos créditos imobiliários contribuiu para o aumento da taxa de variação anual dos créditos bancários para a aquisição de habitação (figura I.3.11), que fica porém em valor negativo (-1,7% em dezembro de 2017), pois os reembolsos continuam a ser mais elevados do que os novos empréstimos.
O dinamismo dos novos empréstimos à habitação acontece no contexto de um aumento significativo dos preços e do volume das transações neste mercado. A subida dos preços foi particularmente significativa no segundo semestre, passando a taxa de variação anual de 8% para 10,5% entre o segundo e o quarto trimestre de 2017. Em consequência, os preços em termos reais no final de 2017, atingiram os valores observados no primeiro trimestre de 2008. O aumento do volume das transações deverá estar associado ao aumento dos novos empréstimos que, como em 2015 e 2016, aumentaram proporcionalmente ao número total de transações. Apesar de tudo, os novos empréstimos corresponderam em 2017 a menos de metade do total das transações registadas antes da crise.
Segundo o inquérito aos bancos sobre o mercado de crédito, a melhoria da confiança dos consumidores e a redução das taxas de juro estimularam a procura de empréstimos à habitação”.
Vejamos os gráficos do Banco de Portugal:
Note-se a evolução da taxa de crescimento do crédito ao consumo, o que significa que uma parte do crescimento é também devida a uma economia em que um dos fatores de crescimento é o endividamento das famílias. Portanto, um mau presságio.
Um gráfico muito claro:
(continua)