Da crise atual à próxima crise, sinais de alarme – O acordo franco-alemão que poderá fazer descarrilar a política de concorrência da Europa. Por Rochelle Toplensky e Alex Barker

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Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

O acordo franco-alemão que poderá fazer descarrilar a política de concorrência da Europa

Por Rochelle Toplensky e Alex Barker em Bruxelas

Publicado por FTimes em 14 de junho de 2018

Republicado por Gonzalo Raffo News Gonzallo Rafo

 

A proposta de fusão das empresas ferroviárias da Siemens e da Alstom destina-se a combater a concorrência da China

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Poucos negócios de fusão de empresas se poderão vangloriar de serem feitos com a ajuda de um presidente francês ou de serem promovidas como sendo uma visão do futuro da Europa por um Chanceler alemão. Mas a proposta de fusão das atividades ferroviárias da Siemens e da Alstom para criar um campeão europeu sempre foi mais do que simples senso empresarial.

“Se quisermos ser capazes de enfrentar a concorrência com os gigantes chineses, temos de reunir as forças europeias”, disse Bruno Le Maire, Ministro das Finanças francês, ao Financial Times. “A melhor solução é esta fusão.”

Isto é, se Bruxelas concordar. Um dos exemplos mais puros de poder centralizado da UE é que esta pode opor-se à formação deste campeão europeu através do braço antitrust da Comissão Europeia, liderado por Margrethe Vestager.

Desde há mais de 25 anos que tem analisado todas as grandes fusões transfronteiriças na Europa, com poderes para bloquear acordos anticoncorrenciais. Institucionalmente desconfia – se não mesmo mostra alergia – aos argumentos de que precisamos de criar ou apoiar a formação de “Campeões”. Orgulha-se de ser a instituição mais rigorosa do mundo – e independente – no sentido de garantir a aplicação das regras da livre concorrência. E com a Siemens-Alstom formalmente a solicitar a aprovação da UE para o acordo na passada sexta-feira, a polícia para as fusões de Bruxelas sabe que se trata de um teste determinante que lhe está a ser apresentado.

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Raramente, ou mesmo nunca, se pediu à Comissão para se pronunciar sobre um acordo de grandes empresas abençoado com um tal efusivo apoio político franco-alemão, nem de um que concentra ainda mais o que é já um duopólio eficaz em alguns dos mercados ferroviários da Europa — o grupo combinado tem receitas na ordem dos € 16 milhares de milhões.

Mas o novo fator que pode fazer mudar o cálculo é a ameaça iminente do grupo CRRC da China, o maior fabricante de comboios do mundo. Com efeito, o acordo Siemens-Alstom aparece num momento de profunda reflexão nas capitais ocidentais sobre a ameaça competitiva da China e das suas empresas apoiadas pelo Estado.

As políticas que rodeiam tais acordos já estão a mudar, suavizando as reservas nacionais que há muito dificultavam acordos transfronteiriços como o agora apresentado pela Siemens-Alstom

O governo francês parece disposto a enfrentar os adversários, de esquerda e de direita, que retratam o negócio como uma venda ao desbarato de uma das jóias da coroa à Alemanha e em que se colocam postos de trabalho em risco. Defensores do acordo como Le Maire veem a fusão destas duas empresas como sendo a abertura de uma nova era também em Bruxelas, onde o dogma da concorrência dá lugar ao bom senso industrial e um outro Airbus bem sucedido seria criado – um “Railbus” pan-europeu capaz de avançar taco a taco com o grupo CRRC da China.

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Um grupo combinado constituído por Siemens e Alstom controlaria 9 por cento do mercado ferroviário global, a seguir imediatamente ao grupo CRRC da China

 

“Isto é a linha vermelha entre aqueles que acreditam na Europa, e aqueles que acreditam nas forças nacionais”, disse Le Maire. “É justo que a política europeia de concorrência ajude os campeões europeus a surgirem.”

Angela Merkel também está a pressionar a favor da mudança. “Precisamos de campeões globais em várias indústrias e as nossas regras de concorrência não nos ajudam a construir esses campeões”, disse a Chanceler alemã numa reunião em Munique na semana passada. “Precisamos de refletir.”

Os advogados veteranos sediados em Bruxelas veem Vestager capturada num cerco político.

“Este acordo devia ser um candidato claro para a proibição, mas dado o contexto político, o leitor tem que apostar que vai passar “, diz um advogado envolvido no caso, observando a importância das condições que provavelmente serão ligadas à fusão. “A questão é o quão duro cai o machado em diferentes partes do acordo. Será que então ainda continuará a ser um campeão?”, pergunta ele.

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O presidente francês Emmanuel Macron insiste que os campeões europeus são necessários para tornar as empresas do continente competitivas mundialmente © AFP

 

Telecomunicações, aço, bolsas de valores, fabricantes de memórias, processadores e outro material informático, de camiões: quase que não há setor algum que não tenha sido promovido, em algum momento, como campeão europeu material.

Na prática, porém, poucos emergiram. Como disse o veterano jornalista francês de negócios Jean-Michel Quatrepoint: “a política industrial europeia é como um OVNI, muito discutida, mas impossível de descrever.”

Os sucessivos Presidentes franceses acusaram o regime de concorrência demasiado rigoroso de Bruxelas. No entanto, como a história da Alstom mostra, as reservas nacionais também são um fator. Quando o grupo francês estava perto de uma falência em 2003 e a Siemens estava pronta a lançar-se sobre Alstom, Paris bloqueou qualquer venda de ativos para um grupo alemão, preferindo antes uma ajuda estatal.

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O cálculo político sobre um potencial acordo Siemens-Alstom mudou depois de ter surgido um campeão estatal diferente na Ásia. Em 2015, Pequim apoiou a fusão do grupo CNR e do Grupo CSR, criando o maior fabricante de comboios do mundo, com quase 180.000 funcionários, US $33 mil milhões em receitas no ano passado e 12 por cento do mercado ferroviário global de comboios, serviços e sinalização.

Se o acordo for aprovado pelas instâncias europeias, um grupo constituído por Siemens-Alstom geraria apenas metade desse volume de negócios e representaria 9 por cento do mercado, com a Bombardier, o grupo canadiano, a representar mais 4 por cento, de acordo com os dados de Sci Verkehr.

No mesmo dia de setembro passado em que que o acordo foi anunciado, o Presidente francês Emmanuel Macron fez um discurso a uma audiência compacta na Sorbonne, onde disse que a Europa encontraria força no “poder industrial” e que uma mais forte consolidação tornaria as empresas da região competitivas a “uma escala global”.

Os acordos mais controversos da Europa – bebidas

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Bruxelas aprovou a junção no valor de £ 71 mil milhões entre o fabricante de cerveja AB Inbev e a sua rival cotada na Bolsa em Londres SABMiller em 2016, criando o maior produtor cervejeiro do mundo com uma quota de mercado de cerca de um terço do mercado global de bebidas. As empresas concordaram em vender aproximadamente US $7 mil milhões em ativos, incluindo muitas marcas de cerveja de nomes familiares para garantir a aprovação da UE relativamente a este acordo.

Tal como outros sectores, como o aço e os painéis solares, a perspetiva de um rival avarento financiado por Pequim está a representar um grande desafio para os operadores europeus.

CRRC é o fornecedor dominante no protegido mercado ferroviário chinês, o maior no mundo; a empresa é parte integrante do projeto de Pequim “Iniciativa de Cintura Industrial e Rodoviária”; e goza de apoio operacional, político e estratégico do governo.

Para uma indústria que já enfrenta um problema de “excesso dramático de capacidade”, nas palavras de um relatório de 2016 da McKinsey, o perigo é ainda mais grave. As fábricas de produção de material circulante na Ásia estão subutilizadas em 60 por cento, com os seus equivalentes europeus e norte-americanos com 40 por cento de subutilização.

Assinalando a posição na Europa, nos Estados Unidos e no resto do Mundo

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O panorama global em clara mudança e o desafio da concorrência da China estão a dar aos defensores do acordo Siemens-Alstom a confiança de que será aprovada a fusão pela UE.

“Estamos perante um mercado global e um mercado global segue as regras globais”, diz Joe Kaeser, CEO da Siemens.

Em toda a Europa das grandes empresas, o argumento sobre a necessidade de mais rendimentos de escala está sendo feito com força, inclusive pelos bancos, pelos media e pelas empresas de defesa e pelo setor de telecomunicações, onde quatro operadores americanos se confrontam com cerca de 150 em toda a UE.

Os acordos mais controversos da Europa — telecomunicações

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A aquisição pela Telefónica da E-Plus, por € 8.6 de milhares de milhões, em 2014, criando o maior operador móvel da Alemanha em termos de clientes, tornou-se um caso de teste para a consolidação, que a indústria defende ser essencial para robustecer as margens de lucros. Mas uma abordagem mais dura conduzida por Margarida Vestager levou à retirada da fusão de Telenor e TeliaSonera na Dinamarca e a um veto sobre a tentativa da CK Hutchison comprar a O2, por £ 10.5 mil milhões, na Grã-Bretanha.

 

A Siemens e a Alstom podem estar otimistas quanto às hipóteses de obterem aprovação do acordo. Mas os investigadores das práticas de concorrência da Comissária Vestager raramente se convenceram de que os mercados são verdadeiramente globais, em vez de nacionais ou regionais.

Na opinião de Bruxelas, as empresas não devem ser autorizadas a dominar os mercados nacionais à custa dos consumidores, apenas para que possam ter sucesso no estrangeiro. As eficiências que vêm de maior escala são tidas em conta, mas ainda não deram prova de influência decisiva nas aprovações.

Muitos advogados tentaram convencer a Comissão a que passasse a ter uma visão mais ampla dos mercados. Mas, como Carles Esteva Mosso, chefe de fusões na Direção da Concorrência da Comissão, afirmou em 2014: “Não podemos escolher as definições de mercado como nos apetece, do mesmo modo que não podemos mudar as condições meteorológicas em Bruxelas.”

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Um protótipo de comboio, construído na China por CRRC, o maior grupo ferroviário do mundo, é ensaiado na cidade de Hizhou na província de Hunan.

 

Em anteriores fusões ferroviárias, por exemplo, os funcionários da UE analisaram nove mercados diferentes só no que diz respeito ao material circulante. Havia também três mercados distintos para o equipamento das vias férreas, dois para a sinalização e nove para os outros sistemas e serviços.

Fundamentalmente, a análise da Comissão é tipicamente feita a nível nacional, em vez de regional ou global. A indústria ferroviária europeia continua a ter a marca dos antigos monopólios estatais, o que tornou difícil para os novos operadores invadirem e ganharem contratos. A Siemens e a Alstom continuam a ser concorrentes diretos entre si em muitos desses mercados na Europa Ocidental; A CRRC da China, entretanto, ainda não ganhou nenhum grande contrato na Europa.

Os defensores do acordo argumentam que as estatísticas de quotas de mercado são de utilização limitada, porque muitas vezes se transformam em grandes e pouco frequentes propostas para projetos de vários anos. Mas a presença da Siemens-Alstom é inequivocamente forte em algumas áreas, com a sinalização a representar um dos desafios mais difíceis da concorrência.

O grupo tem uma quota de 60 por cento do mercado europeu e uma quota de 55 por cento na América do Norte, segundo a Sci Verkehr. A nível nacional na Alemanha, na Dinamarca e na Áustria, a Siemens-Alstom seria virtualmente um monopólio.

“O departamento de sinalização da nova Siemens-Alstom parece ser muito forte”, diz Maria Leenen da Sci Verkehr, “pode ser muito provável que eles tenham de vender algumas partes no que diz respeito à sinalização.”

Os fabricantes de comboios, tais como o espanhol TALGO, consideram que a questão da “concorrência desleal” vai para além da sinalização, com a Siemens-Alstom cimentando uma posição protegida nos seus mercados de origem.

 

Os negócios mais controversos da Europa — aeroespacial

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Em 1991, a Comissão exerceu o seu poder para bloquear uma fusão pela primeira vez, impedindo a aquisição de Havilland, uma divisão canadiana da Boeing, pela Aerospatiale da França e Alenia da Itália. Os defensores da aquisição esperavam que isso impulsionasse o desenvolvimento da indústria aeroespacial da Europa, mas a Comissão receava que isso criasse uma posição dominante nos mercados dos aviões de médio porte.

“Como concorrente europeu, preocupa-nos que esta longa situação protecionista possa ser agora exacerbada, para que uma única empresa possa controlar todas as oportunidades de contratos de alta velocidade na Alemanha e na França”, diz a empresa.

Outras questões potenciais ligadas a este acordo incluem o acesso de concorrentes a serviços de manutenção e dados conexos, e a questão de saber se o grupo combinado poderia cortar nas despesas de investigação e desenvolvimento a um nível que ameace a inovação.

Apoiantes do acordo consideram que levantar estes argumentos significa perder de vista o quadro geral. Florent LaRoche, um perito em transportes da Universidade de Lyon, considera que o legado tecnológico dos operadores históricos tem restringido seriamente o acesso aos mercados ferroviários. Mas argumenta igualmente que essa fragmentação só pode ser superada por um grande operador que impulsione a padronização.

“A indústria Europeia precisa de um campeão europeu”, diz ele.

Os altos funcionários da concorrência ficam irritados com a sugestão de que as regras de concorrência excessivas têm atrofiado a Europa empresarial. Muitas das maiores empresas da Europa atingiram a sua dimensão atual através de fusões aprovadas pela Comissão, de Vivendi e Daimler até ao BNP Paribas e Vodafone.

De quase 7.000 acordos notificados desde 1990, apenas 27 foram bloqueados. Quando se trata de uma operação suscetível de prejudicar a concorrência, a abordagem habitual é a de procurar soluções específicas, tais como vendas de ativos ou promessas para restringir as práticas empresariais.

Tais compromissos foram exigidos por Bruxelas em mais de 120 acordos, com diferentes graus de severidade. Os concorrentes esperam que a Siemens-Alstom enfrente tais exigências, particularmente no que diz respeito às atividades de sinalização das linhas.

“Isto será aprovado, não há dúvida”, diz outro advogado a trabalhar no caso. “Uma das empresas terá que ser vendida.”

Os acordos mais controversos na Europa – a finança

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A Comissária Vestager bloqueou a fusão do grupo de bolsas de Londres e da Deutsche Börse em 2017, depois que os grupos se recusaram a vender alguns ativos de compensação de rendimento fixa para dissiparem as suas preocupações sobre o acordo que criava um monopólio de facto. A fusão proposta foi a terceira tentativa em 17 anos para criar uma bolsa anglo-alemã para rivalizar com os concorrentes dos EUA e da Ásia.

Vendas de ativos, se necessário, cria um dilema separado. Qualquer leilão pode dar à CRRC uma oportunidade desde há muito tempo procurada para se estabelecer na Europa – o que derrotaria o raciocínio de vencer a China que está detrás da defesa da fusão. “Isto parece um golo na própria baliza “, diz o advogado. “Em termos de concorrência pura, porque não? Mas seria louco para qualquer um que tenha dois dedos de testa.”

Isto realça um desafio mais vasto que a Comissão enfrenta. Um dos seus papéis é a de vigiar os limites das ajudas estatais dos países europeus, limites estes que são os mais rigorosos do mundo. No entanto, na hora de avaliar as fusões não é capaz de ter em conta a ameaça competitiva colocada pelas empresas que contam com o apoio estatal de países não comunitários, como acontece com a China.

Com forte apoio franco-alemão, a UE está a analisar reformas para permitir um rastreio muito mais rigoroso dos investimentos estrangeiros em sectores estratégicos. Mas, embora possa bloquear a expansão das indústrias chinesas no mercado europeu, ela não flexibiliza o regime de concorrência a que os campeões europeus se têm de adaptar relativamente às suas ambições.

“Quando se adotou a regulação sobre fusões da UE em 1989, a principal preocupação, sobre as aquisições estrangeiras, se as havia, não era sobre a China, mas sim sobre o Japão”, diz Sir Philip Lowe, o ex-chefe da Divisão da Concorrência na Comissão. “Há sempre algum país lá fora que as pessoas pensam que está prestes a invadir todo o mercado europeu.”

 

Texto original em https://www.ft.com/content/153a4d84-6d73-11e8-852d-d8b934ff5ffa

Republicado por Gonzalo Raffo News THE FRANCO-GERMAN DEAL THAT COULD DERAIL EUROPE´S COMPETITION POLICE / THE FINANCIAL TIMES

 

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