Afinal, o que falta na Grécia?
Por Francisco Tavares, em 28 de agosto de 2018
Obrigado ao Júlio Marques Mota pela revisão do presente texto
Ou o discurso dos que nada aprenderam com o mais repugnante processo de humilhação e empobrecimento de um povo na Europa desde 1945
Vêm as presentes observações, feitas um pouco ao correr da pena, a propósito do texto que reproduzimos abaixo – O que falta na Grécia, de Xavier Vidal-Folch, publicado no El País de 23 de agosto último – texto esse que reflete uma visão típica do neoliberalismo dominante, ainda que travestida de uma certa distância.
O seu autor traz para cima da mesa, mais uma vez, a teoria dos males nacionais, neste caso, as causas das desgraças helénicas devidas exclusivamente às suas “más políticas do passado” [1]. A culpa foi dos países esbanjadores, e a receita para a cura dos males vai no mesmo sentido, isto é, tem de resultar de políticas de austeridade aplicadas no país, ajudadas mais uma vez pela UE, desta vez através de um “apoio bem feito“.
No entanto, a enfermidade de fundo, como foi já demonstrada por numerosos autores, foi gerada no bojo da UEM, com uma Alemanha a praticar uma política de restrição salarial à custa dos seus parceiros da UE (política de beggar thy neighbour) [2] de que resultaram os excedentes da conta corrente alemã, o não investimento da Alemanha e a procura de aplicação para os excedentes financeiros alemães nos outros países da UE, em particular do sul. Os males gregos tais como o clientelismo, a fraude fiscal, a falta de cadastro de propriedades, os sistemas de segurança social públicos, não existiam já, muito antes da crise, há muitos anos? E nos outros países esbanjadores poder-se-iam referir estes ou outros males. Mas a Grécia (e outros países do sul) não deixou de crescer em virtude desses defeitos. Eles estavam lá muito antes da crise financeira de 2007/2008. Entre isso e ver o PIB cair 25% como aconteceu na Grécia, há toda uma diferença!
Diz-nos Xavier Vidal-Folch:
Mas os erros da receita europeia são apenas uma parte do drama. não a sua origem. A enfermidade grega foi gerada a nível nacional. Por culpa do clientelismo dos seus dirigentes e pela inexistência de um Estado moderno: não é um Estado moderno aquele em que a fraude fiscal alcança um valor de 70% do IVA (em Espanha 30%); aquele que não tem um registo cadastral da propriedade (precisamente agora começa a atingir um terço das propriedades); aquele em que proliferam às dezenas os sistemas de segurança social pública, com privilégios segundo o grupo de pressão beneficiário, em vez de ter um, único e universal.
Suponha-se que tudo isto é verdade. E pensamos que é mesmo verdade. Então em vez de destruir as fracas estruturas políticas, sociais, administrativas e fiscais, como o fez a Troika, deveria a UE ter aproveitado a situação para criar um Estado moderno capaz de reorganizar o processo produtivo e capaz pois de poder pagar a dívida considerada justa e legal, depois de ter separado a dívida justa da dívida ilegal e imoral. A UE, porque não conhece outra forma de atuar, preferiu antes arrasar o país e deixá-lo entregue aos predadores, depois de ter salvo os bancos franceses e alemães. Fez a Troika alguma coisa contra a fraude fiscal relativamente a uma longa lista de pessoas que lhe foi entregue? Fez a Troika alguma coisa para cancelar os contratos dos submarinos à Alemanha e das fragatas à França? Nada… e a exigirem austeridade ao povo grego!
E depois vem um argumento também muito utilizado:
… o regresso à moeda nacional não teria evitado a desvalorização (também salarial), o não pagamento teria estigmatizado o país impedindo o seu acesso aos mercados (a curto e a médio prazo) e o apoio solitário do FMI significaria descartar os 280.000 milhões de euros de ajuda direta da UE….
E o que é pior? Não ter moeda nenhuma como é o caso agora – de quem é o euro? a quem serve? – ver o PIB cair em 25%, ter um terço da população na pobreza? E ter grande parte do seu património vendido ou a ser explorado por potências estrangeiras? Ter uma recuperação para as calendas….gregas? E efetivamente o essencial da “ajuda” da UE foi para saldar os incobráveis que bancos alemães e franceses tinham na Grécia, fruto precisamente da “alegre” aplicação de excedentes financeiros desses países em ativos gregos.
Continua depois o autor, dizendo que foi “A incompetência grega, o egoísmo de curto-prazo alemão e a inexperiência da UE (foi o seu 1929) .. ” que impediram uma solução alternativa, a que ele chama um apoio bem feito!
Inexperiência da UE (foi o seu 1929): é preciso ter lata, muita lata mesmo! A Europa conhece bem a experiência de 1929, que veio a desembocar poucos anos depois na Alemanha nazi, entre outras coisas por políticas económicas do tipo das que foram aplicadas à Grécia (e a Portugal, e à Espanha, e à Irlanda). Ou já esqueceu as políticas de austeridade do chanceler Heinrich Brüning (1930-32) de resposta à crise económica, situação que acabou por desembocar na ascensão de Hitler ao poder? Políticas de austeridade que foram precisamente contrárias às políticas do New Deal de Roosevelt. Para o confirmar basta consultar o discurso de Roosevelt em 1 de outubro de 1936 no Forbes Field, Pittsburgh na Pennsylvania [3].
Não tinha experiência a Europa??? E não foi por falta de avisos que a UE seguiu o caminho da austeridade.
Diz-nos ainda o autor:
… o regresso à moeda nacional não teria evitado a desvalorização (também salarial), o não pagamento teria estigmatizado o país impedindo o seu acesso aos mercados (a curto e a médio prazo) e o apoio solitário do FMI significaria descartar os 280.000 milhões de euros de ajuda direta da UE. embora a maior parte fosse para assegurar os juros dos bancos alemães e franceses, nem tudo se esgotou nisso.
O contra exemplo é a Argentina. Foi mais benigno o seu resgate de 2000 do que o grego de 2010? Foi mais duro e mais longo. E recidivante, como ficou demonstrado em maio passado.
Será que o autor diz com isto algo muito diferente do que diz Juncker quando nos diz que nenhuma eleição soberana se pode opor à força dos Tratados? Não. O autor quer dizer a mesma coisa.
E fala-nos da Argentina, onde chegaram a morrer mais de 100 pessoas por dia por fome e para o dizer o quê. Que isto foi pior do que na Grécia e que devemos pois estar reconhecidos à Troika?
É que foram precisamente políticas do tipo das aplicadas pela Troika e a UEM que conduziram a Argentina à gravíssima crise de 2001: políticas de austeridade, privatizações, desregulamentação do mercado financeiro e do mercado laboral, a convertibilidade do peso em 1:1 em relação ao dólar. E, contrariamente ao que diz Vidal-Foch, como se pode observar pelos dados abaixo, a economia argentina teve uma evolução que nada tem a ver com a da Grécia (a da Grécia quiçá bem pior). E a recidiva resulta precisamente de políticas de teor idêntico às aplicadas pela UEM/Troika à Grécia.
Relembremos muito rápida e sumariamente alguns dados sobre a Argentina:
Fontes: Index mundi e Knoema.
Andrés Ferrari e André Moreira Cunha, no seu estudo “As origens da crise argentina: uma sugestão de interpretação” de 2005 [4], procuram indagar as razões que levaram a sociedade argentina a apoiar o modelo económico neoliberal que se implantou a partir de 1989, procuram entender por que razão as vozes críticas não foram suficientes para pôr fim àquele modelo quando os seus resultados (deterioração nos níveis de vida de setores importantes da população) já tinham se manifestado com muita clareza, mesmo antes de sua dramática conclusão em dezembro de 2001. No coração do modelo estavam a lei de conversibilidade e as reformas liberalizantes. No entanto, “a versão contemporânea do liberalismo argentino, em vez de recompor o passado de riqueza, recolocou a problemática do subdesenvolvimento e tornou o país socialmente mais próximo dos vizinhos geográficos” [5] [6] .
A que propósito cita então o autor aquele país?
Será que ele nos quer falar da fuga de muitos milhares de milhões que eram emprestados à Argentina e que ficavam nos bancos americanos alimentando uma corrupção sem limites permitida pela financeirização e pela incontestável liberdade de circulação dos capitais para ficarem “capturados” nos mercados, com predadores da estirpe de Paul Singer a marcarem a politica externa dos Estados Unidos, com um Obama acobardado perante estes mesmos atores-predadores dos mercados. Será isso, será então que a Grécia seria um mal menor e devemos dar graças a Deus por isso mesmo?
Mais adiante diz o autor do texto:
A incógnita é, conseguirá a Grécia cumprir as projeções de crescimento e saneamento assumidas? São muito exigentes. Supõem que até 2060 deverá ter um superavit orçamental primário (sem juros da dívida) de 2%. E até 2022, de 3,5%! Embora qualquer revés o possa impedir, os dados de 2017 prometem: alcançou uns meritórios 4,2%.
Ou seja, a Grécia está no bom caminho (uma tese muito propalada também em relação a países como Espanha ou Portugal): o país está de rastos, perdeu 25% do seu produto, e com um “luminoso” crescimento ao estilo de 2017 – 1,4% – estará de regresso ao seu nível de antes das políticas de austeridade lá para 2035…. daqui por uns 20 anos mais ou menos! E não se vê como mesmo assim irão pagar a dívida! Haverá talvez que fazer desaparecer o Estado grego, substituindo-o pela iniciativa privada…. os mercados.
De resto esquece o autor de nos dizer que se trata de uma saída bem suja, em que se sujeita a Grécia à continuação do programa de austeridade anterior, que deve continuar, e continuar sob vigilância reforçada da EU.
E a finalizar: “Para consolidar este caminho é imprescindível reforçar desde o exterior o crescimento [desde a UE]…”.
E o caminho, a receita, continua o mesmo: um plano de investimentos adiado. E investimento em quê? Para privatizar o Estado grego? Mas, sobretudo, silêncio sobre as sacrossantas políticas de austeridade. Reforço desde o exterior, nada de mexer nas políticas do interior, que afinal são do exterior, são da UE/Troika!
Notas
[1] Vd. a este propósito o excelente artigo de Viriato Soromenho Marques, “Altos cargos e pequenos homens“, in Diário de Notícias, 26 de agosto de 2018, https://www.dn.pt/edicao-do-dia/26-ago-2018/interior/altos-cargos-e-pequenos-homens-9753140.html
[2] Vd. o artigo de Heiner Flassbeck, Gritos de que a crise terá passado, mas os grandes problemas estão para chegar (Cry Wolf but do not ignore Tomorrow’s Tigers), escrito em março de 2010, que será editado amanhã aqui na Viagem dos Argonautas.
[3] Vd. http://www.presidency.ucsb.edu/ws/?pid=15149
[4] Vd. Economia e Sociedade, Campinas, v. 17, n. 2 (33), p. 47-80, ago. 2008, em http://www.scielo.br/pdf/ecos/v17n2/a03v17n2.pdf
[5] Op. cit. pág. 73 e segs.
[6] Veja-se também Argentina: crise sem fim, de Horacio Rovelli, em Carta Maior, 24/07/2018, em https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Pelo-Mundo/Argentina-crise-sem-fim/6/41039
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O que falta na Grécia
Por Xavier Vidal-Folch
El País, em 23 de agosto de 2018
A austeridade agravou a crise, não a criou. Que a UE assegure agora um maior investimento
Que a austeridade indiscriminada agravou a crise da Grécia desde 2010 é pouco discutível. Que a sua exclusão dos mercados financeiros durasse oito anos e confirmasse o erro pro-cíclico recessivo é óbvio. Que a brutal extensão da crise socio-política resultante podia ter sido evitada parece ser a consequência lógica de tudo isso.
Mas os erros da receita europeia são apenas uma parte do drama. não a sua origem. A enfermidade grega foi gerada a nível nacional. Por culpa do clientelismo dos seus dirigentes e pela inexistência de um Estado moderno: não é um Estado moderno aquele em que a fraude fiscal alcança um valor de 70% do IVA (em Espanha 30%); aquele que não tem um registo cadastral da propriedade (precisamente agora começa a atingir um terço das propriedades); aquele em que proliferam às dezenas os sistemas de segurança social pública, com privilégios segundo o grupo de pressão beneficiário, em vez de ter um, único e universal.
Além disso, não se esqueça que se desenvolveram num contexto de Grande Recessão e de abundante especulação nos mercados.
Visto agora, a posteriori, haveria outras alternativas? Algo, hipotético, impossível de ser verificado, ainda que defensável. Mas houve: a do pau e aguenta-te dos economistas de ultra direita como o alemão Hans Werner Sinn. E a de profetas duvidosamente progressistas como Nouriel Roubini, a saber, a saída forçada da Grécia do euro, o regresso ao dracma, o não-pagamento da dívida (cancelamento global) e a sua entrega ao FMI.
Pequeno detalhe: o regresso à moeda nacional não teria evitado a desvalorização (também salarial), o não pagamento teria estigmatizado o país impedindo o seu acesso aos mercados (a curto e a médio prazo) e o apoio solitário do FMI significaria descartar os 280.000 milhões de euros de ajuda direta da UE. embora a maior parte fosse para assegurar os juros dos bancos alemães e franceses, nem tudo se esgotou nisso.
O contra exemplo é a Argentina. Foi mais benigno o seu resgate de 2000 do que o grego de 2010? Foi mais duro e mais longo. E recidivante, como ficou demonstrado em maio passado.
Mas havia outra alternativa: o mesmo apoio europeu, mas bem feito. Empréstimos iguais aos de 2010, 2012 e 2015 mas em melhores condições (juros mais baixos e prazos de amortização longos) do terceiro resgate.
A incompetência grega, o egoísmo de curto-prazo alemão e a inexperiência da UE (foi o seu 1929) impediram-no.
O fim do resgate grego não é o fim da sua dívida (passou de 146,2% do PIB para 178,6%), nem das disparidades sociais (um terço da população na pobreza), nem o saneamento dos seus bancos (48% de créditos tóxicos ou de duvidosa cobrança): o auto resgate continuará por decénios. Mas sim, voltou ao crescimento (1,4% do PIB em 2017) e ao superavit orçamental (0,8% do PIB), requisitos para tudo isso.
A incógnita é, conseguirá a Grécia cumprir as projeções de crescimento e saneamento assumidas? São muito exigentes. Supõem que até 2060 deverá ter um superavit orçamental primário (sem juros da dívida) de 2%. E até 2022, de 3,5%! Embora qualquer revés o possa impedir, os dados de 2017 prometem: alcançou uns meritórios 4,2%.
Para consolidar este caminho é imprescindível reforçar desde o exterior o crescimento. E, portanto, o investimento. Uma adaptação do plano Juncker, ou os planos mais avançados (e adiados) de reforçar o euro mediante um fundo de investimento para os países mais vulneráveis são urgentes. Deveriam começar pela Grécia. E assim, além disso, a UE resgatar-se-ia dos seus próprios erros.