Seleção de Júlio Marques Mota e tradução de Francisco Tavares
Genes, povos e línguas (1ª parte)
Por Luigi Luca Cavalli-Sforza
janeiro de 1992
As árvores genealógicas que relacionam povos e línguas sobrepõem-se. Ambos, povos e línguas, remetem para correntes migratórias. As provas biológicas situam em África a nossa origem
Há mais de 40 anos o laboratório de Sir Ronald A. Fisher na Universidade de Cambridge, aonde eu tinha ido para especializar-me em genética bacteriana, estava cheio de matemáticos teóricos. Compreende-se, pois, que, nessa atmosfera, eu começasse a dar voltas a um projeto tão ambicioso que roçava a loucura: reconstruir a origem das populações humanas e os caminhos que elas seguiram na sua dispersão pelo amplo mundo. O trabalho, pensei, poderia abordar-se medindo o parentesco entre as populações atuais e, conhecido este, criar a árvore genealógica da humanidade.
A utopia está a ponto de converter-se em realidade. A anáIise exaustiva de dados genéticos recolhidos nos últimos 50 anos e de outros obtidos com técnicas de desenvolvidas recentemente permitiram-nos cartografar a distribuição mundial de centenas de genes. A partir desse mapa deduzimos as Iinhagens das populações de todo o mundo. A nossa árvore concorda com outra, mais pequena, baseada em dados genéticos de índole muito diferente. Além disso, a nossa reconstrução tem surpreendentes paralelismos com uma recente classificação das línguas. Genes, povos e línguas diversificaram-se, pois, ao mesmo tempo, no decurso de uma série de movimentos migratórios que, segundo todos os indícios, começaram em África e se propagaram, através da Ásia, pela Europa, o Novo Mundo e o Pacífico.
A noção de árvore genealógica é decisiva para situar tais episódios numa sequência cronológica. Com tudo o resto constante, quanto maior for o tempo transcorrido desde a separação de duas populações tanto maior será a diferença genética entre as mesmas. Este tipo de análise pode aplicar-se depois a casos mais complexos, que impliquem três ou mais populações. (a diferença genética equivale nesse contexto à distância genética.)
Costumamos falar de grupos étnicos ou raças para designar as populações humanas, ainda que o uso pervertido do segundo termo aconselha a sua omissão. Não é fácil definir as populações de uma maneira rigorosa e útil ao mesmo tempo, porque os seres humanos agrupam-se de forma desconcertante, por vezes com sobreposições e, mudando sempre. As línguas, no entanto, dão-nos uma pequena ajuda.
Durante um longo trecho da sua história, a espécie humana organizou-se em tribos ou grupos de pessoas ligadas por laços estreitos. A filiação tribal continua a ser de grande importância nas sociedades tradicionais. E não é raro comprovar, além disso, uma correspondência exata entre língua e tribo. As línguas constituem, portanto, um ponto de referência para as tribos; as filiações tribais, quando se conhecem, ajudam a esboçar um guião classificador das populações.
Nas sociedades metropolitanas a situação reveste maior complexidade. Por isso reduzimos os problemas práticos centrando o nosso estudo nas populações aborígenes, isto é, nas que já ocupavam os seus territórios atuais antes de que se produzissem as grandes vagas migratórias que se seguiram às viagens de exploração no Renascimento. As distâncias entre esses grupos aborígenes não podem ser calculadas pela mera presença ou ausência de um simples caractere hereditário, ou do gene que o expressa, já que todos os grupos comportam praticamente todos os genes humanos existentes. O que sim varia é a frequência com que os genes aparecem.
Temos um bom exemplo disso no fator Rh, um antigene sanguíneo humano que pode encontrar-se sob duas formas, positivo e negativo, e sobre o qual se acumulou abundante informação. O caratere, que se herda de uma maneira simples, foi estudado em milhares de populações por razões de saúde pública. Os médicos devem identificar as mulheres Rh negativas grávidas que transportem fetos Rh positivos, para lhes administrarem um tratamento imunológico imediatamente após o parto. O tratamento impede que o corpo da mulher fabrique anticorpos que afetem o fruto de uma segunda gravidez. Os genes Rh negativos, frequentes na Europa, escasseiam em África e na Ásia ocidental e são praticamente inexistentes na Ásia oriental, assim como entre as populações aborígenes da América e da Austrália.
É possível estimar o grau de parentesco, por exemplo, entre ingleses (16 por cento de indivíduos Rh negativos) e bascos (25 por cento) subtraindo ambas percentagens (nove pontos). Entre ingleses e asiáticos orientais essa diferença é de 16 pontos, distância maior que implica, certamente, uma separação muito anterior. Não há, pois, nada de esotérico na noção de distância genética.

Na realidade, para que as distâncias forneçam a maior quantidade de informação possível sobre as histórias evolutivas costumamos recorrer a fórmulas ligeiramente mais complicadas que a pura subtração. Se dentro de uma mesma população se isolam de forma absoluta uns grupos de outros, acabarão por diferenciar-se, mesmo que não se tenham produzido mutações nem contássemos com a seleção natural. O acaso favorece a alteração das respetivas frequências génicas num processo de dispersão.
Em igualdade de condições, a distância genética aumenta simples e regularmente com o tempo. Quanto maior seja o tempo que duas populações levem separadas, tanto maior será a sua distância genética. Poderíamos assim imaginar a distância à laia de um relógio que marcasse as etapas da história evolutiva. Mas as leis da estatística demonstram-nos que não devemos esperar que um simples gene como o do Rh proporcione uma cronologia exata. É fundamental utilizar valores médios de muitos genes no cáIculo das distâncias genéticas; o ideal seria contrastar conclusões com diferentes conjuntos de genes. Felizmente já se conhecem milhares de genes, embora só poucos tenham sido analisados em muitas populações.
São muitos os princípios em que nos apoiamos para reconstruir árvores de distâncias genéticas. Sirva-nos de exemplo a árvore que publiquei há 27 anos, juntamente com Anthony W. F. Edwards, atualmente em Cambridge, e que relacionava 15 populações. A genealogia baseava-se em distâncias genéticas calculadas a partir das informações genéticas de que então dispúnhamos, e de acordo com a fórmula do “caminho genético mais curto”, proposta por Edwards. Tratava-se de construir a árvore que tivesse a mínima longitude de ramificação. Quando se projeta a árvore sobre un mapamundi, com os ramos descansando sobre os assentamentos atuais das populações, o resultado coincide com as reconstruções antropológicas das migrações da antiguidade.
Mas faltam-nos provas sólidas que confirmem que o caminho genético mais curto seja a melhor forma de ajustar a árvore aos dados. Outros métodos dendrológicos poderiam acertar mais quando se trata de relacionar a longitude dos ramos com o passar do tempo e encontrar uma data para a “raiz” da árvore. Nos casos em que é possível, a raiz permite estabelecer uma relação entre as populações e um grupo distinto: por exemplo, os chimpanzés, que se dividiram da linha que conduziu ao homem há uns 5 ou 7 milhões de anos. Se admitirmos uma taxa constante de mudança evolutiva para todos os ramos, podemos equiparar as suas longitudes com o tempo transcorrido desde que se produz a divergência. Mas também essas árvores enraizadas podem estar sujeitas a enviesamentos, se uns ramos tiverem sofrido mudanças evolutivas mas rápidas que outros.
As técnicas matemáticas da genética de populações reduzem ao mínimo os enviesamentos com previsões corretas das taxas evolutivas. O modelo evolutivo que utilizamos é o mais simples. Prevê que os ramos evoluíram com idêntica celeridade, na condição de que a principal causa de mudança resida na dispersão e o tamanho das populações seja o mesmo, em média. A primeira condição é confirmada por observações de distintas fontes; a probabilidade da segunda condição reforça-se com uma criteriosa seleção das populações. Não é raro que as taxas de evolução sejam constantes se as populações alcançam determinadas dimensões e tenham colonizado territórios que abarcam continentes durante um intervalo de tempo que se prolonga até ao assentamento original.

Com os meus colegas Paolo Menozzi e Alberto Piazza, das universidades de Parma e Turim, respetivamente, desenhei um sistema analítico comum para abordar a história e a geografia dos genes humanos. Dedicámos 12 anos ao estudo do corpo de dados genéticos que se havia acumulado nos últimos 50 anos: mais de 100 caracteres hereditários distintos procedentes de aproximadamente 3.000 amostras, tomadas de 1.800 populações. A maioria das amostras incluíam centenas ou milhares de indivíduos. Este conjunto de dados, o nosso conjunto clássico, deriva indiretamente das proteínas expressas pelos genes.
Trabalhámos, além disso, com um segundo conjunto inteiramente novo: dados moleculares estudados diretamente a partir das sequências de ADN presentes no núcleo celular. A maioria dos dados moleculares que utilizámos foram recolhidos num programa de investigação que durou sete anos, no qual intervieram o meu laboratório da Universidade de Stanford e a equipa de Kenneth K. e Judith R. Kidd, do departamento de genética da Universidade de Yale. Embora estes dados sejam em muitos aspetos de superior qualidade do que os baseados nos produtos génicos, de momento só cobrem uma centésima parte das populações. Não obstante, até onde foram comparados, os dados moleculares concordam muito bem com os dados clássicos.
Os nossos primeiros resultados apoiam uma conclusão que se extrai dos estudos de restos humanos físicos e culturais: a origem africana da nossa espécie. Comprovámos que as distâncias genéticas entre africanos e não africanos é muito superior à distância que possamos inferir de qualquer outra comparação intercontinental. E isso é o que seria de esperar se a separação africana fosse a primeira e mais antiga na árvore genealógica humana.
A distância genética entre africanos e não africanos é o dobro da distância entre australianos e asiáticos; esta última separação, por sua vez, é o dobro da distância que existe entre europeus e asiáticos. Os tempos de separação sugeridos pela paleoantropologia apresentam uma relação muito similar: 100.000 anos para a divisão entre africanos e asiáticos, uns 50.000 anos para a separação entre asiáticos e australianos, e de 35.000 a 40.000 para a diversificação entre asiáticos e europeus. Nestes casos, ao menos, as nossas distâncias comportam-se como um relógio exato
Um relógio bastante distinto, embora elegante, foi criado por quem investigou um tipo de dados genéticos de índole diferente dos nossos. Os seus descobrimentos mais interessantes chegaram-nos quando a nossa análise estava a ponto de terminar; mas, apesar da disparidade de origem, confirmavam os nossos resultados em todos os pontos essenciais. O estudo em questão centra-se nos genes presentes no ADN das mitocôndrias, orgãos celulares que metabolizam energia. Nós, em Stanford, tínhamos iniciado essa linha de trabalho, mas a metodologia que desenvolveram Allan C. Wilson e os seus colegas da Universidade da California em Berkeley conseguiu una resolução maior. (Quero aproveitar este momento para render tributo às muitas contribuições realizadas por Wilson à evolução molecular. Morreu de leucemia aguda em julho do ano passado, com a idade de 56 anos.)
Os genes mitocondriais diferem dos genes do núcleo em vários aspetos fundamentais. Os genes nucleares herdam-se, mais ou menos equitativamente, do pai e da mãe; os mitocondriais transmitem-se à descendência através, quase exclusivamente, da mãe. Este modo de herança simples converte os genes mitocondriais numa ferramenta valiosa para o cálculo das distâncias genéticas. Superam também os genes nucleares na sua taxa de mutação; essa cadência mais alta poderia induzir a alterar em parte a determinação estatística das distâncias génicas, que não se calculariam de acordo com as frequências génicas mas antes baseando-se nas mutações dos próprios genes. O relógio mitocondrial fundamenta-se no número de mutações acumuladas, não nas mudanças das frequências génicas. A nossa hipótese girava em torno da ideia de uma evolução, a ritmo constante, das frequências génicas; Wilson e o seu grupo pediam o mesmo para os genes mitocondriais, mas centrando-se na taxa constante de mutação destes. Pela própria natureza dos dados, resulta mais fácil colocar uma raiz a uma árvore mitocondrial que a uma nuclear. Basta cotejar a árvore que criámos com qualquer grupo externo -Wilson acudiu aos chimpanzés- cuja data ou intervalo de datas de separação seja conhecida.
Com essas distâncias, o grupo de Wilson construiu uma árvore genealógica que revelava mais diferenciação em África que em qualquer outra parte. O descobrimento indicava que era em África onde o ADN humano mitocondrial tinha evoluído durante um período de tempo mais longo, e que podia seguir-se a sua pista até uma única mulher africana. Além disso, os investigadores puderam datar os pontos de ramificação da árvore comparando o ADN de humanos com o de chimpanzés, cujas linhagens se sabe que se separaram há uns cinco milhões de anos. Calibrada a árvore, o grupo de Wilson dispôs-se a deduzir as datas das últimas ramificações. E o que é mais importante, calculou que essa mulher africana viveu há uns 150.000 ou 200.000 anos. Confirmavam-se assim as nossas conclusões por outra via, completamente independente.

A equipa de Wilson aproximou algo mais o tempo estimado, embora a sua mulher africana todavia é anterior à data que nós mesmos atribuímos para a separação entre as populações asiáticas e africanas. De facto, tem que ser mais antiga, já que as duas datas se referem a acontecimentos distintos, o nascimento de uma mulher determinada e a bifurcação de uma população a que ela pertencia. Os meios de comunicação confundiram a questão, dando-lhe ampla difusão a essa mulher, com o nome de “Eva”. No entanto, não temos provas de que tenha havido alguma vez um momento em que houvesse apenas uma mulher viva sobre a terra. Muitas outras mulheres puderam ter vivido ao mesmo tempo; simplesmente, extinguiram-se as suas linhagens mitocondriais.
Algumas destas conclusões continuam a levantar controvérsia. Embora os paleoantropólogos aceitem que o género Homo apareceu em África há uns 2,5 milhões de anos e que as provas fósseis do anatomicamente moderno H. sapiens sejam datadas apenas de uns 100.000 anos, em África ou sua vizinhança, nem todos aceitam a teoria “africana”. Há quem advogue uma maior antiguidade e muitas populações do Velho Mundo simultaneamente. Não nos limitámos a situar em África os primeiros humanos modernos. Também recolhemos provas de vagas migratórias. Essas pistas e padrões de migração lançam bastante luz sobre a origem das populações atuais. Um trabalho, além do mais, que, quando se o compare com as descobertas de filólogos e arqueólogos, aumentará o seu valor e potencial informativo.
(continua)
Texto original em http://evolucion.fcien.edu.uy/Lecturas/genes_pueblos_y_lenguas.pdf
LUIGI LUCA CAVALLI-SFORZA (1922-2018), ensinou genética na Universidade de Stanford desde 1971. Doutorou-se em medicina pela Universidade de Pavía. Estudou genética bacteriana em Itália e, de 1948 a 1950, no laboratório de Sir Ronald A. Fisher, na Universidade de Cambridge. Em 1952 mudou o seu interesse para a genética de populações humanas. Desde então estudou os fenómenos de consanguinidade, dispersão genética e forma de a prever mediante observações demográficas, as relações recíprocas entre evolução biológica e cultural, o significado cultural de nomes e apelidos, e a reconstrução da evolução humana. Dirigiu trabalhos de campo entre os pigmeos africanos e aplicou técnicas moleculares na análise de genes e a persistência no tempo de material genético procedente de populações aborígenes. Membro emérito da Pontifícia Academia das Ciências e da Academia Francesa de Ciências. Prémio Balzan em 1999.
Obras:
- CAVALLI-SFORZA, Luigi Luca (2003). Genes, Povos e Línguas. Companhia das Letras. [S.l.: s.n.]
- CAVALLI-SFORZA, Luigi Luca; Bodmer, Walter F. (1981). Genética de las poblaciones humanas. Ediciones Omega. [S.l.: s.n.]
- CAVALLI-SFORZA, Francesco; Cavalli-Sforza, Luigi Luca (1998). La ciencia de la felicidad. Grijalbo. [S.l.: s.n.]
- CAVALLI-SFORZA, Luigi Luca (2007). La evolución de la cultura. Editorial Anagrama. [S.l.: s.n.]
- CAVALLI-SFORZA, Luigi Luca; Cavalli-Sforza, Francesco (1999). ¿Quiénes somos?: historia de la diversidad humana. Editorial Crítica. [S.l.: s.n.]
- “La transizione neolitica e la genetica di popolazione in Europa” 1986, com A.J. Ammerman, Bornighieri
- “The History and Geography of Human Genes” 1993, com Alberto Piazza e Paolo Menozzi, Adelphi
- Il caso e la necessità, Di Renzo Editore, 2007