A crítica demolidora de Michael Pettis à teoria e à política económica neoliberal – 8. Estará Peter Navarro errado sobre o comércio internacional? (1ª parte). Por Michael Pettis

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Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

8. Estará Peter Navarro errado sobre o comércio internacional? (1ª parte)

michael pettis Por Michael Pettis

Publicado por Carnegie Michael Pettis em 2 de fevereiro de 2017

 

Se o défice atual da balança corrente dos EUA é prejudicial ou não para a economia dos EUA depende das hipóteses que assumimos sobre a escassez de capital. Num mundo inundado com excesso de capital e procura insuficiente, o défice da balança corrente dos Estados Unidos é um obstáculo para o crescimento.

 

1. Iliteracia económica

A escolha feita por Donald Trump de Peter Navarro, um professor de economia da Universidade da Califórnia em Irvine, para dirigir uma recém-formada equipa de conselheiros da Casa Branca sobre questões comerciais fez disparar debates furiosos em todo o país e no mundo sobre algumas questões bastante básicas sobre a teoria do comércio internacional. No seu texto amplamente lido “Scoring the Trump Economic Plan“, um texto publicado algumas semanas antes da eleição e escrito por Peter Navarro e Wilbur Ross, ambos assessores principais de política na campanha de Trump, uma passagem em particular, tem dado origem a uma grande quantidade de comentários e de críticas:

Quando as exportações líquidas são negativas, ou seja, quando um país está perante um défice comercial uma vez que importa mais do que exporta, esse valor subtrai-se ao crescimento… Em 2015, o défice comercial dos EUA em bens foi um pouco menos de $800 mil milhões enquanto os EUA tiveram um excedente de cerca de $300 mil milhões em serviços. Isso deixou um défice geral de cerca de $500 mil milhões. Reduzir este “travão que é o défice comercial” aumentaria o crescimento do PIB. Estes problemas estruturais relacionados com o comércio da economia dos EUA traduziram-se num crescimento mais lento, em menos empregos e numa dívida pública crescente.

Os autores explicam que o crescimento do PIB de qualquer país é a soma do crescimento do consumo, da despesa líquida do governo, do investimento e das exportações líquidas. Isto não é nada mais do que a identidade padrão da contabilidade, identidade bem familiar a qualquer um que aprendeu o básico em economia.

PIB = Consumo + Investimento+ Despesa Pública + Exportações líquidas

Eles realmente dizem que o crescimento do PIB é impulsionado por estes quatro fatores, mas – e eu tenho a certeza que eles sabem disso- temos que ser um pouco cuidadosos ao escrever a identidade desta maneira, uma vez que os quatro fatores estão inter-relacionados de forma complexa e de tal forma que poderia dar‑se facilmente o caso que o aumento de um fator automaticamente faça com que um outro diminua. Nós nunca quereríamos insinuar que podemos automaticamente impulsionar o crescimento do PIB acelerando um ou outro dos quatro fatores citados.

No entanto, isto é o que os autores parecem insinuar, quando eles argumentam que as exportações líquidas negativas (um défice comercial) se subtrai ao crescimento. Isto é o que levou Dan Ikenson, um especialista em política comercial no Instituto Cato, a acusar Navarro de analfabetismo económico. Ikenson é um empenhado defensor da livre troca e na sua resposta escreveu:

Não há nenhuma relação inversa entre as importações e o PIB, como afirma Navarro. Na verdade, há uma forte relação positiva entre variações no défice comercial e variações no PIB. Os dólares que vão para o exterior para comprar bens e serviços estrangeiros (importações) e ativos externos (investimento externo) são contrabalançados quase perfeitamente por dólares que regressam aos Estados Unidos para comprar bens e serviços dos EUA (exportações) e ativos dos EUA (investimento interno). Qualquer défice comercial (saída líquida de dólares) tem como contraponto um excedente de investimento (influxo líquido de dólares). Esse influxo de investimento que sustenta investimento, produção e criação de emprego nos Estados Unidos.

As alterações no défice comercial e no PIB estão, de facto, normalmente correlacionadas positivamente, mas este ponto só é significativo se a única fonte de crescimento do PIB for a exportação líquida, algo que ninguém jamais sugeriu. Na verdade, défice e PIB são suscetíveis de serem positivamente correlacionados independentemente de Navarro estar ou não certo sobre o comércio internacional, e é um pouco hipócrita, pela parte de Ikenson, sugerir o contrário.

Ikenson está claramente errado, no entanto, ao considerar que a saída de dólares devido às importações deve retornar aos Estados Unidos como fluxos de entrada e criar postos de trabalho, quer através do aumento das exportações ou pelo aumento do investimento. Ele não diz bem isso; ele diz que o défice comercial (mais corretamente, o défice da balança corrente) tem como contraponto um excedente de investimento, o que é correto por definição, mas quando ele acrescenta que este influxo de investimento sustenta o investimento, a produção e a criação de emprego, o seu erro é estar a confundir o investimento líquido (isto é, investimento interno menos poupanças internas ) com investimento. Este é um erro que é feito muito frequentemente e eu explicarei mais abaixo no presente texto porque é que é um erro, mas a confusão é baseada numa incapacidade em reconhecer que tanto um investimento mais elevado e como uma poupança mais baixa podem levar a um excedente de investimento.

 

2. Um défice comercial mais elevado não tem que fazer com que os Estados Unidos sejam mais pobres

Antes de continuar, quero primeiro referir-me a uma outra crítica, muito mais precisa, dos pontos de vista de Navarro que foi feita por Noah Smith, um professor de finanças na Stony Brook University. Smith também parece discordar em princípio com Navarro, mas ele tem uma compreensão mais sofisticada da dinâmica comercial. Ele começa por expandir o fator de exportação líquida na identidade contabilística do PIB, de modo que:

PIB = Consumo + Investimento + Despesa Pública + Exportações – Importações

As importações têm um sinal negativo na equação, o que pode, em primeiro lugar, sugerir que quanto mais um país importa mais o seu PIB é inferior, mas ele lembra-nos que subtraímos aas importações apenas para evitar a dupla contagem dos bens importados, que já foi contabilizado seja no consumo ou no investimento. O impacto das importações no PIB é zero, diz ele, porque o valor dos bens importados foi acrescentado ao PIB sob a forma de maior consumo ou de maior investimento e subtraído do PIB sob a forma de importações mais elevadas. “Isto significa que um défice comercial mais elevado não tem que fazer os Estados Unidos mais pobres.”

Esta é a questão: um défice comercial mais elevado não tem que fazer com que os Estados Unidos fiquem mais pobres. Pode fazer o país mais pobre, mas pode igualmente fazer o país mais rico, e acontece que se os Estados Unidos é um país mais rico (isto é, mais produtivo) ou mais pobre depende se o que causa o défice provoca, sim ou não, igualmente um aumento correspondente do investimento produtivo. Isto devia ser tão óbvio que deveria considerar‑se inútil falar disto, mas infelizmente torna-se necessário dizê-lo, e repetidamente. O debate sobre o comércio internacional tende a ter pouco a ver com a lógica e muito a ver com a ideologia. Por um lado, os ideólogos do comércio livre negam que os Estados Unidos possam sempre beneficiar da intervenção comercial e, por outro, os protecionistas parecem pensar que todos os défices são nocivos e que qualquer redução do défice comercial cria empregos.

Ambos os lados estão errados. Os défices comerciais podem, por vezes, conduzir a um crescimento mais elevado e a um menor desemprego e, outras vezes, tendem a reduzir o crescimento e a aumentar o desemprego — o mesmo se aplica aos excedentes comerciais. Face a todos os debates confusos, realmente não é difícil de modo nenhum especificar as condições para que se verifique um caso ou o outro. E só depois de termos identificado estas condições específicas, caso a caso, é que podemos começar a determinar se as políticas comerciais especificamente enunciadas são suscetíveis de beneficiar ou prejudicar a economia. As políticas que forçam uma contração no défice comercial dos EUA, por outras palavras, podem ser uma via que venha a provocar aumento no desemprego e diminuição do rendimento real das famílias, enquanto outras políticas que forçam a uma contração no défice comercial podem fazê-lo com menor desemprego e com maior rendimento real das famílias.

É provavelmente útil começarmos por recordar uma outra identidade contabilística [1]. Para qualquer economia aberta temos:

Excedente na Balança Corrente = Défice na Balança de capital

ou ainda

Exportações – Importações = Poupança – Investimento

Estas equações significam apenas que a economia global é uma economia fechada em que a poupança total é igual por definição ao investimento total. Dentro da economia global, qualquer país que economize mais do que investe deve exportar o excesso de poupança para outro país que investe mais do que economiza, de modo que no mundo como um todo há equilíbrio entre a poupança e o investimento. Esta identidade é muito importante para explicar as origens dos grandes desequilíbrios globais dos últimos anos, como eu explico no meu livro 2013, The Great Rebalancing – O grande reequilíbrio.

Naturalmente, todo o país que poupa mais do que investe também, por definição, produz mais bens e serviços do que pode absorver internamente, e assim deve exportar a produção adicional. É por isso que a balança corrente de um país e a balança de capital (que inclui variações nas reservas do Banco Central) devem sempre equilibrar-se a zero, [ou seja a sua soma é zero, porque iguais em valor absoluto mas algebricamente simétricas]. Para aqueles que acham isso intuitivamente difícil de aceitar, é importante entender que esta é uma identidade contabilística e é verdadeira por definição. Não vou explicar aqui porque é necessariamente verdade, porque é fácil encontrar explicações na maioria dos livros didáticos de introdução à macroeconomia.

 

3. O capital determina as trocas

A identidade contabilística diz-nos que a entrada líquida de capital nos Estados Unidos, também conhecido como o excedente da balança de capital dos EUA — e que consiste na quantidade total de dinheiro estrangeiro investido em ações americanas, obrigações, imóveis, fábricas, empresas e outros ativos de investimento menos a quantidade total de dinheiro americano investido no exterior — é exatamente igual ao défice da balança corrente americana, o que para o objetivo do presente texto tratamos como se fosse idêntico ao défice comercial. As identidades contabilísticas são surpreendentemente simples e, no entanto, parecem criar surpreendentemente uma enormíssima confusão. Uma identidade contabilística é algo que é verdadeiro por definição, e verdadeiro em cada ponto no tempo sem qualquer desfasamento, da mesma forma que dois mais três é igual a cinco.

Qualquer explicação económica que viole uma identidade contabilística pode ser rejeitada porque simplesmente não pode ser verdade. Quando os decisores das políticas económicas declaram, por exemplo, que vão pôr em prática políticas que levam à redução drástica do défice comercial dos EUA, e depois com a promessa próxima de ganhar espaço para atrair investimento estrangeiro, podemos imediatamente rejeitar estas suas promessas não apenas porque improváveis mas porque literalmente são impossíveis. Se um aumento no investimento estrangeiro faz com que o excedente da balança de capital dos EUA cresça, o défice da balança corrente dos EUA também deve crescer exatamente na mesma quantidade.

Uma implicação desta identidade contabilística é que, ao contrário dos países em desenvolvimento que enfrentam constrangimentos em capital no investimento interno e em falta de tecnologia e de competências ao nível da gestão de recursos, os Estados Unidos não beneficiam de aumento do investimento estrangeiro, exceto em muito poucos casos altamente específicos que pessoalmente já discuti noutros textos, incluindo num artigo no Foreign Policy no ano passado, e de um texto num blog um pouco mais extenso (“O emocionante e terrível colapso do dólar[2]). Num outro artigo publicado em Foreign Policy, publicado há cinco anos [em 7 de setembro de 2011][3], também expliquei porque é que os Estados Unidos devem quase sempre responder a um aumento do seu excedente da balança de capital, quer permitindo um aumento insustentável da dívida ou um aumento do desemprego. O que é mau para os Estados Unidos, no entanto, não é necessariamente mau para cada parte do país: se o governador da Carolina do Sul, digamos, convence um fabricante japonês de automóveis a construir uma nova fábrica no seu Estado, ele vai criar empregos locais e aumentar as receitas para a Carolina do Sul, mas a menos que traga com ele uma transferência significativa da tecnologia e de competências ao nível da gestão a que os americanos não teriam de outra maneira tido acesso, a maioria dos benefícios será então obtida à custa de Michigan ou de outros Estados com fábricas de automóveis.

Para voltar ao comércio internacional, o facto de o excedente de investimento ser sempre exatamente igual ao défice comercial não nos diz qual causa qual. Mas isso não significa que os dois lados da igualdade sejam independentes um do outro e que é simplesmente uma feliz coincidência que em cada um dos países do mundo a balança de capital é o anverso exato em todos os momentos da balança corrente [4]. Mudanças num dos lados da identidade força a que haja mudanças no outro lado desta mesma identidade, geralmente, mas não necessariamente de uma maneira em que se reforçam mutuamente.

A relação, no entanto, é tipicamente envolta em confusão por causa de uma hipótese implícita que se baseia muito no nosso modo de pensar sobre a balança de pagamentos. Nós temos tendência a supor que os países têm excedentes comerciais ou défices por causa de diferenças de preço relativas em bens comercializados e também por outros fatores relacionados com o comércio internacional. Assumimos que os Estados Unidos estão numa situação de défice com a China, ou seja, porque os produtos produzidos na China refletem diferenças fundamentais entre as estruturas de custos nos dois países. Se pensarmos sobre a balança de capital isoladamente, assumimos que a balança de capital se ajusta a qualquer nível que seja necessário para equilibrar a balança comercial [ a variável independente, a que tem a primazia, seria então a balança comercial e a variável dependente, a que se ajustaria, seria então a balança de capital].

Dito de outra forma, os fluxos comerciais são assumidos como tendo a primazia, e os fluxos de capital pressupõe-se que se ajustam para equilibrar os fluxos comerciais. Embora isso possa ser verdade em alguns casos, e provavelmente foi verdade durante grande parte da história moderna da humanidade, não é necessariamente verdade, e quase certamente não é verdade hoje, pelo menos para grandes economias como a dos Estados Unidos. Os fluxos de capital cresceram muito mais rapidamente do que os fluxos comerciais e de tal modo que eclipsam os fluxos comerciais, e é em muitos casos fácil demonstrar que os fluxos de capital são determinantes e que são os fluxos comerciais que se ajustam aos movimentos de capitais. (Consulte o Apêndice 1 abaixo para uma discussão mais completa)

(continua)

 

Texto disponível em http://carnegieendowment.org/chinafinancialmarkets/67867

Notas

[1] Ao longo deste ensaio, terei exagerado a diferença entre a balança corrente e balança comercial, simplesmente porque é muitas vezes mais fácil e mais claro referirmo-nos à balança comercial quando realmente me quero referir à balança corrente. Embora tecnicamente as duas balanças não sejam a mesma coisa, para o propósito desta discussão, podemos assumir que são equivalentes sem que seja necessário, de forma alguma, mudar o argumento.

[2] N.E. Texto editado nesta série em 25 e 26 de setembro com o número 3, vd. https://aviagemdosargonautas.net/2018/09/25/a-critica-demolidora-de-michael-pettis-a-teoria-e-a-politica-economica-neoliberal-3-o-emocionante-e-terrivel-colapso-do-dolar-outra-vez-por-michael-pettis/ e seguinte.

[3] An Exorbitant Burden, https://foreignpolicy.com/2011/09/07/an-exorbitant-burden/

[4] Para lembrar os leitores, estou a utilizar o excedente de investimento de forma intermutável com excedente da balança de capital e défice comercial com défice da balança corrente, porque, embora tecnicamente incorreto, fazendo-o isso torna a explicação muito mais fácil de entender, e de nenhuma maneira afeta o argumento geral.

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