Ano de 2019, ano de eleições europeias. Parte I – Grandes planos sobre uma União Europeia em decomposição. 10º Texto: A Europa sob Merkel IV: o Balanço da Impotência – Parte C

Dedico a publicação desta peça a três amigos meus, bem mais conhecedores da realidade alemã do que eu,  António Martins da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Vera Sampayo da Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa e  José Eduardo, meu colega e amigo desde os bancos da escola primária e durante décadas emigrante na Alemanha.

Um texto de Wolfgang Streek, Professor emérito  do Max Planck Institute for the Study of Societies em Colónia. Um texto que nos fala tanto da Europa em geral como da Alemanha, em particular, que  nos fala sobretudo do papel da Alemanha no apodrecimento da Europa,  do apodrecimento da Europa destes duros últimos anos e dos tempos possivelmente ainda mais difíceis  que aí vêm. Deste ponto de vista, esqueçam então o que nos  diz Christine Lagarde  a falar de Portugal.

Júlio Marques Mota

A Europa sob Merkel IV: o Balanço da Impotência – Parte C

(Wolfgang Streeck, Verão de 2018)

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Bem-vindo aos Tempos Difíceis

Não só a Itália em relação à Alemanha e à França, mas também a Alemanha e a França em relação uma à outra, retiram hoje uma força externa da  sua fraqueza interna. A arma mais poderosa de Macron é o medo alemão de que, no final do seu mandato, o seu populismo centrista possa ser ultrapassado pelo populismo da esquerda ou da direita, ou de ambas, acabando ele tão demolido como Renzi. Merkel, por seu lado, pode defender-se das exigências francesas apontando para uma nova política interna, atando as mãos e tornando as promessas alemãs anteriores irrecuperáveis.

E quem quer que governe a Itália pode afastar os apelos alemães e, mais recentemente, franceses à “reforma”, apontando para uma resistência interna invencível e para os danos colaterais para toda a Europa que resultariam de uma saída italiana do euro. O resultado é um equilíbrio não de poder, mas de impotência, prefigurando uma profunda estagnação política, com más surpresas por todo o lado e que se podem transformar em realidades em  qualquer momento.

Para a Alemanha, a hegemonia europeia oculta da última década, a sua retórica idealista-ideológica e os compromissos confidenciais utilizados durante anos para ganhar tempo,  parecem agora pintainhos a regressarem ao galinheiro  para dormir. Já lá vai o tempo em que se podia imaginar que o império seria alcançado gratuitamente, como recompensa pela virtude moral e pela boa gestão interna. Quando os seus credores políticos pedem o que lhes é devido, a Alemanha enfrenta-os de mãos vazias. Não é apenas para com o seu próprio país, mas também para com os seus anteriores aliados do Norte da Europa, que Merkel IV será incapaz de cumprir quando se tratar de tornar novamente grande a integração europeia. Tal como em  França, a ideia de estabilizar o país, fazendo-o sonhar com a Europa como uma Grande França, e assim derrotar a Esquerda e a Direita “eurocépticas”, já está a parecer irrealista. A Alemanha não será integrada numa economia política europeia dominada pela França e o descontentamento económico francês não será ultrapassado pelo entusiasmo “pró-europeu” oficialmente ordenado.

Entretanto, a Itália assemelha-se agora à Grécia, na medida em que não pode esperar a retoma da   sua economia por si só  nem ser salva por outros. Enquanto a Alemanha, em particular, mas também a França, não puderem deixar a Itália sair da UEM em paz – assim como não podem deixar a Grã-Bretanha sair da UE em paz – a Itália não se curará tanto quanto  permanecer presa à zona euro.

Não existe uma reforma institucional politicamente viável, nem a nível europeu nem na própria Itália, que possa assim voltar a pôr o país de pé. Também não há razões para crer que um crescimento económico renovado possa, de alguma forma, salvar a economia política europeia, dadas as incertezas abundantes no ambiente europeu: Protecionismo trumpiano, guerras comerciais sino-americanas, Brexit, os limites da “flexibilização quantitativa”, a inevitável “correção” da bolha bolsista, e assim por diante.

Com as deficiências e incapacidades interligadas dos principais países europeus e as crises de liderança nacional e internacional que lhes estão associadas, devemos esperar uma deriva e decadência institucional contínuas, pontuadas por sucessivas operações de emergência de curto prazo que são profundamente inadequadas para travar a podridão. A democracia e a opinião  pública terão de ser o mais possível marginalizados, enquanto os mercados financeiros terão de ter a certeza de uma política “em conformidade com o mercado” (na formulação de Merkel). (48)  As fricções institucionais serão  intensificadas e o descontentamento social  acumular-se-á na Itália, França, Alemanha e noutros lugares. Como no passado, os interesses nacionais serão vestidos como interesses europeus, para esconder ambições imperiais de diferentes tipos e para removê-las do discurso público e do equilíbrio diplomático. Na bloqueada sociedade emergente da Europa, a política continuará a deteriorar-se em simbolismo ritualístico, seguindo a visão duramente conquistada dos detentores do poder – que a escondem do público tanto quanto possível – segundo a qual  a política não se  pode  opor aos mercados globais e, portanto, não se deve sequer tentar fazê-lo. Neste processo, os símbolos europeus cairão em desgraça à medida que os cidadãos aprenderem que lhes falta o poder mágico para evitar as destruições, supostamente criativas, da economia e da sociedade,  infligidas a muitos pelos  mercados “livres” a travessarem as fronteiras.

Com o passar dos anos de Merkel IV, os “populistas” de todos os tipos, de esquerda e direita, sentir-se-ão confirmados na sua opinião de que as instituições europeias herdadas dos anos 90 neoliberais nunca se converterão em proteções contra as vagas da “globalização” – de facto, estão tão firmemente fechadas no seu caminho histórico que não podem ser convertidas ou “reformadas” seja do e no  que for. Tudo o que aqueles que as dirigem, procurando desesperadamente manter uma aparência de controle, podem fazer é esperar que de alguma forma as coisas acabem em bem, por razões desconhecidas e desconhecíveis. Demonstrações públicas de otimismo inabalável, protestos diários de boas intenções, baseados em “valores” e atividades geradoras de “notícias” agitadas serão usadas para manter viva a confiança dos cidadãos enquanto esperam pelo retorno de algum misterioso equilíbrio auto-restaurador, ou alternativamente para os cidadãos se ajustarem ao fim do governo, nacional e supranacional, e ao advento da governança e, de facto, da governança global.

Enquanto isso, a Alemanha  tornar-se-á ainda mais do que nos últimos anos o alvo do ressentimento internacional, inclusive na França, já que a Kerneuropa franco-alemã (“core Europe”) permanecerá na sua maior parte  simbólica e cerimonial. No final de Merkel IV, podemos estar a olhar  não apenas para o iminente fim de Macron, mas para o que os jornalistas chamarão de Italexit, com ou sem o consentimento franco-alemão. Como resultado, o euro – a pedra angular da prosperidade alemã pós-2008 – mudará para além do reconhecimento ou deixará  de existir. Incapaz política e economicamente de compensar os perdedores da UEM, a Alemanha não pode esperar continuar a ser um ganhador.


Notas:

48. Neste espírito, o novo ministro das Finanças alemão, Scholz, imediatamente após tomar posse, nomeou um dos dois chefes da filial alemã da Goldman Sachs, Jörg Kukies, como secretário de Estado responsável pelos mercados financeiros globais. Ver acima, nota 36.


O próximo texto desta série será publicado amanhã, 20/07/2019, 22h


Tradução de Júlio Marques Mota – Fonte aqui

 

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