Seleção e tradução de Júlio Marques Mota
Entrevista conduzida por Marion Beauvalet
Publicado por em 28 dezembro de 2018 (ver aqui)

Sarah Abdelnour é socióloga do trabalho e professora no laboratório de investigação IRISSO da Universidade de Paris-Dauphine, especializada na transformação das formas de trabalho e de emprego. Entre outros trabalhos, é autora do livro Les nouveaux prolétaires, publicado em 2012.
____________________________________________________
LVSL – Ao ler os seus artigos, entendemos que o autoempreendedorismo tem como causa e consequência a destruição do modelo de Estado-Providência. Pode dar-nos uma cronologia dos acontecimentos e das opções políticas que nos conduziram de um Estado protetor a um Estado responsabilizador? De que forma é que o Estado, ao redefinir o seu campo de ação desde os anos 80, incentivou esta transformação?
Sarah Abdelnour – Um ponto de viragem, reconhecido por muitos historiadores e sociólogos, é geralmente identificado entre o final dos anos 1970 e início dos anos 1980. Trata-se de uma mudança liberal associada à “crise” e ao aumento do desemprego. Se olharmos para o prisma específico de encorajar a criação de empresas, o ponto de viragem deu-se em 1976. Isto ocorre após três décadas de construção salarial e de expansão do Estado-Providência, com uma quebra na tendência e uma mudança para uma leitura muito mais liberal centrada no assumir pelo sujeito individualmente considerado das dificuldades sociais. Em 1976, com Raymond Barre e Alain Madelin, foi criado o primeiro programa de assistência à criação de empresas para os desempregados, o ACCRE.
A partir daí, estas ajudas serão integradas no arsenal das políticas públicas de emprego e luta contra o desemprego. Esta ajuda tornou-se uma ferramenta consensual utilizada tanto pela direita como pela esquerda no governo, sem qualquer distinção entre elas. Esta dimensão consensual é vista através do estabelecimento de uma retórica empreendedora que pertence à família económica e política do liberalismo, mas também, muitas vezes, de um argumentário social que nela é enxertado. O argumento consiste em afirmar que a criação de empresas seria benéfica para as populações que têm dificuldade em aceder ao emprego, particularmente por causa dos baixos níveis de educação. Este ponto de viragem verifica-se não só em França, mas em muitos outros países e este quadro continua até hoje, como o demonstra a persistência do sistema ACCRE.
“A viragem para o auto-empreendorismo é uma nova etapa: cabe aos desempregados isolados tomarem conta das suas próprias vidas e criar os seus próprios empregos”.
Um novo passo foi dado na década de 2000, com a figura do empresário a tornar-se mais popular. Na década de 1970, o foco situava-se mais nos executivos desempregados ou trabalhadores qualificados que se acreditava terem os recursos para montar uma empresa, entendida esta como uma empresa que contrata pessoas. A mudança para o empresário por conta própria constitui uma nova etapa: cabe aos desempregados isolados tomarem conta da sua própria vida e criarem o seu próprio emprego, pelo menos criar a sua fonte de rendimento, para que não dependam da Segurança Social. Trata-se de uma alternativa à lógica assistencial. Para deixar de depender de subsídios, seria necessário criar uma empresa, partindo da ideia de que existe um gosto pelo empreendedorismo nas classes trabalhadoras. Por extensão, assiste-se a uma mudança nos alvos dos dispositivos que antes eram destinados a um público mais confidencial.
Alargam-se os regimes a todos aqueles que necessitam de um rendimento adicional. Com Anne Lambert, que trabalha nos mecanismos de acesso à propriedade imobiliária, tínhamos identificado a mesma cronologia nesta área. Após algumas décadas de planeamento, com edifícios sob a égide do Estado, observa-se um ponto de viragem na década de 1970, quando as pessoas começaram a elogiar a pequena propriedade individual.
Na década de 2000, foi dado um novo passo: a propriedade estaria agora acessível mesmo com rendimentos muito baixos, através de empréstimos sem juros, em zonas onde a habitação não é muito cara. Passa-se de uma lógica coletiva para um modelo mais individual para populações específicas. A partir de 2005, isso estende-se a toda a gente por causa das dificuldades de inserção no mercado de trabalho e passamos a defender como um todo o que é um outro modelo de integração social, o “estilo americano”, através do empresário por conta própria.
LVSL – Porquê e em que medida é que as empresas têm interesse no desenvolvimento do empreendedorismo em detrimento do modelo salarial tradicional?
Sarah Abdelnour – Isto não foi apresentado oficialmente como uma ferramenta ao serviço das empresas, mas como uma ferramenta de poder de compra e de liberdade empresarial. Na prática, tomamos consciência de que se está a tornar uma ferramenta muito útil que as empresas podem usar para contratar e despedir sem passar pelas formalidades ligadas à contratação, como o pagamento de indemnizações ou o pagamento de contribuições patronais. A mão-de-obra pode circular muito rapidamente. As contribuições para a Segurança Social são parcialmente pagas pelos trabalhadores. No entanto, com as ajudas, nomeadamente do ACCRE, quase não pagam contribuições durante vários anos, o que significa menos receitas para o Estado. As contribuições patronais são claramente suprimidas.
O facto de se poder evitar o direito do trabalho constitui nos dias de hoje uma estratégia lucrativa, pelo menos a curto prazo. A história da economia mostra que não há um resultado teórico estável assente no facto de que é melhor ter uma força de trabalho que circula facilmente e que não seja cara. Os economistas afirmam também, por fases, que oferecer estabilidade de emprego é uma coisa boa para as empresas poderem ter trabalhadores qualificados e experientes.
“Quando as novas plataformas são criadas, como é o caso em todos os países, elas primeiro têm políticas para atrair e incentivar a força de trabalho a trabalhar regularmente para elas”.
Não há nenhum juízo de valor quanto a isso: a lógica salarial também deu origem a um modelo paternalista com relações muito assimétricas entre trabalhadores e empregadores. De qualquer modo, a teoria económica não está estabilizada, ela acompanha o que está a acontecer. Quando a empresa externaliza, ela é valorizada, e inversamente. A economia ainda não decidiu, de modo que há ciclos históricos de externalização e depois de integração. Além disso, uma plataforma nos Estados Unidos é agora apresentada como anti-Uber: estabiliza a força de trabalho, estimando que será mais eficiente sem que com isso se torne mais cara. As outras plataformas conseguem gerir ambas, ou seja, implementar políticas de retenção de mão-de-obra, evitando simultaneamente as contribuições para a Segurança Social.
Quando são criadas novas plataformas, como é o caso em todos os países, elas primeiro têm políticas para atrair e incentivar a força de trabalho a trabalhar regularmente para elas. Há sempre sistemas de bonificações no início, dependendo do número de viagens feitas durante o dia e do número de viagens feitas durante a semana. Trata-se claramente de uma política de fidelização, posicionando-se de forma ultra-agressiva no mercado. É isto que os torna tão espertos: conseguem tirar partido da lealdade sem estar a respeitar o direito do trabalho.
LVSL – Ouvimos frequentemente dizer que o trabalho por conta própria é uma nova liberdade para o indivíduo, uma liberdade de trabalhar para além dos constrangimentos induzidos pelo trabalho. Na sua opinião, não há aqui uma contrapartida ou um paradoxo? Robert Castel explicou que o resultado máximo dos objetivos do neoliberalismo verifica-se quando o trabalho passa a ter uma influência total sobre a vida das pessoas, o que é que acha?
Sarah Abdelnour – Em primeiro lugar, convém recordar que este estatuto é apresentado como uma libertação das restrições laborais, nomeadamente das grandes empresas. No entanto, uma grande percentagem de empresários por conta própria nunca esteve num processo de criação de empresas, nunca teve um projeto ou uma ideia de criar uma empresa. Estão à procura de trabalho e dizem-lhes “pode fazer este trabalho para nós, mas é mais fácil se lhe pagarmos como empresário independente”.
Isto diz respeito a mais de metade das pessoas que entrevistei: estão numa situação de procura de emprego. Das trinta pessoas que pude conhecer, apenas duas tinham um projeto de criação de empresas. Uma delas criou o seu próprio negócio de gabinete de estética em casa. Na verdade, essa pessoa trabalha para si-própria, ela procura os seus clientes. Aquele que faz o serviço de cabeleireiro ao domicílio tem uma atividade reduzida.
Eu também entrevistei um professor de teatro para uma prefeitura, ele nunca quis montar a sua própria companhia, aliás ele é também ator e está a tentar obter o estatuto de intermitente [1]. Isto equivaleria a terem-lhe sido dados períodos de trabalho com intervalos para férias, sem ocupação. Há, portanto, muito pouca criação de empresas com um projeto e uma ideia. No entanto, existe uma forma de autonomia no trabalho que pode estar presente, incluindo numa situação de assalariado disfarçado. Há menos controlo sobre os horários, a presença física é menos necessária…. Está muito presente nos comentários dos empresários por conta própria.
“Todo e qualquer período de tempo de não-trabalho é tempo que não é pago. É a lei do trabalho independente “.
Paradoxalmente, eles sentem-se mais livres para organizarem o seu trabalho como desejarem, sendo pagos à tarefa. Isso é interessante porque todos os meus entrevistados me disseram: “Eu posso organizar-me como quiser”. Isto é muito falso, no sentido de que, quando lhes é perguntado como é que decorreu a sua semana, verifica-se que são muito constrangidos pelos horários das empresas com quem estão em relação de prestação de serviços, devido ao facto de, uma vez que são pagos pela quantidade de trabalho, se sentirem obrigados a trabalhar muito. Encontramos o que Foucault diz com as empresas que passaram de uma ordem organizada pelo Estado para uma outra ordem em que são as empresas a fazerem o seu próprio controlo. Um dos meus inquiridos disse-me que “se não se autodisciplinasse chocaria diretamente contra a parede.”
Quando ele me disse que estava a organizar-se como queria, perguntei-lhe se em certos dias não se dizia a si-mesmo que não ia trabalhar, a que respondeu de forma negativa. Esta é uma internalização real do constrangimento. Isto tem o efeito de uma imersão bastante permanente numa lógica de mercado, ou seja, todo e qualquer período de tempo de não-trabalho é tempo que não é pago. É a lei do trabalho independente. É a lei do trabalho por conta própria.
A remuneração está mais estritamente indexada ao tempo de trabalho do que ela está na relação de assalariado, o que pode ser entendido como a invenção de uma ligeira separação entre o tempo de trabalho e a remuneração, com, por exemplo, as férias pagas. Não se trata de emprego assalariado na sua essência, porque não era esse o caso no tempo de Marx, mas no que se tornou: o fundamento para a proteção social, dos direitos, do direito às férias e feriados. Um empregado é pago também pelos fins-de-semana! E é isso que os trabalhadores independentes estão em vias de perder hoje em dia: as pessoas que poderiam estar numa situação de emprego assalariado mas que são trabalhadores independentes estão a perder essa pequena distância e estão permanentemente colocados no cálculo económico e na mercantilização do tempo.
Robert Castel tinha notado que o sistema salarial permitia não se estar constantemente inquieto para ganhar dinheiro, que podia haver um pouco de serenidade. A estrita separação entre tempo de trabalho e tempo de descanso desaparece e o trabalhador é submetido a um modelo que evoca o século XIX e a estrita indexação do que eles recuperam do seu trabalho sobre o seu sofrimento no trabalho. Eles não podem mais separar uma coisa da outra. Estamos atualmente a trabalhar com colegas [como Pauline Barraud de Lagerie e Luc Sigalo-Santos] em plataformas online e de micro-trabalho: é algo que se infiltra nos pequenos espaços da vida quotidiana. Um entrevistado gasta suas viagens de metro a fazer pequenos trabalhos para ganhar alguns cêntimos.
Há uma capacidade de mercantilizar todo os intervalos de tempo. Este é o diagnóstico que também foi feito sobre o Airbnb: se qualquer um de nós sair do seu apartamento uma noite que seja, tentar-se-á ainda torná-lo rentável. O Airbnb tornou-se certamente cada vez mais profissional, os grandes proprietários que possuem grandes edifícios mantêm-nos em funcionamento, por isso é também um negócio de hotelaria informal. No entanto, encontramos estes incentivos a mercantilizar os tempos mortos do mercado, a transformar qualquer objeto não utilizado numa potencial fonte de rendimento. O mercado está muito presente entre os empresários por conta própria. Os condutores de VTC dizem-nos que é difícil parar, que enquanto estiverem ligados à aplicação, veem potenciais fontes de dinheiro que estão a ser ativadas…
“A teoria de Marx ainda tem algumas virtudes para pensar sobre os mecanismos de trabalho atuais, especialmente quando se trata da noção de valor. “
Alguns condutores dizem-nos que estão doentiamente agarrados aos seus telefones, que esperam uma boa viagem durante todo o dia, que têm dificuldade em desligar-se porque estão à espera de uma viagem para um aeroporto quando só tiveram pequenas viagens. O que as regras têm de virtuoso é que elas são estabelecidas coletivamente, que o tempo de trabalho é regulado. Isso obriga-nos a distanciarmo-nos da procura constante de dinheiro. Não se trata de correr atrás de muito dinheiro, apenas de cêntimos: por exemplo, cinco cêntimos para preencher um questionário online. Estes cinco cêntimos constituem um salário por hora muito baixo, muito abaixo das conquistas do direito do trabalho, é simples.
LVSL – A senhora tem sido ouvida frequentemente sobre Marx, especialmente numa entrevista concedida ao Libération onde mencionou “Marxismo 2.0”. Como a associação entre empresários por conta própria e Marx não é óbvia, como é chegou a fazer uma tal análise na sua investigação?
Sarah Abdelnour – A teoria de Marx tem virtudes para pensar sobre os mecanismos de trabalho atuais, especialmente quando se trata da noção de valor: como é que se produz o valor e como é que este é distribuído. Este debate é frequentemente esquecido quando se trata de condutores de VTC. A retórica política atual é dizer que Uber “lhes oferece trabalho”, especialmente aos jovens das cidades. Este é um discurso presente na França, que também tem sido muito popular nos Estados Unidos. Da mesma forma, Macron declarou durante a campanha presidencial que isso permitiu que esses jovens adquirissem “dignidade através do trabalho”.
O trabalho é, afinal, apresentado como um “presente” que as empresas dão aos trabalhadores. É muito fácil ser tentado por este tipo de discurso, que define uma determinada “ordem de trabalho”. Mas não esqueçamos como o lucro gerado por este trabalho é distribuído. O interesse de mobilizar Marx é voltar a colocar as coisas nos trilhos da produção, da geração do lucro através do trabalho e da distribuição desse lucro. Quando vemos a riqueza do homem mais rico do mundo, Jeff Bezos, e quando este utiliza o micro-trabalho à escala internacional, isso levanta questões. É curioso ver essas tarefas pagas a 5 cêntimos por um trabalho solicitado pela empresa, e que requer esforços.
Sabemos que, desde a década de 1980, as desigualdades na distribuição do valor entre capital e trabalho voltaram a aumentar de forma bastante acentuada. Além disso, o último trabalho de Piketty mostra que o património global está cada vez mais a mudar do setor público para o setor privado. Estas são as coisas que nós devemos ter sempre bem presentes.
LVSL – Se olharmos para a prática e para a investigação da sociologia, até que ponto o surgimento do empresário por conta própria nos últimos trinta anos abalou as práticas dos sociólogos?
Sarah Abdelnour – Estamos em face de uma nova geração de trabalhadores autónomos que estão a ser gradualmente identificados, mas que estão a levantar algumas questões. Tivemos anteriormente estudos sociológicos sobre os trabalhadores por conta própria, mas era muito diferente. Eles foram abordados através do prisma familiar e da herança porque muitas empresas estavam a ser transmitidas por herança, enquanto que os auto-empreendedores muitas vezes não vêm de famílias independentes. Por conseguinte, é verdade que temos de modificar o nosso quadro e a nossa grelha analítica. Os sectores de atividade já não são exatamente os mesmos, nem as famílias de origem. Por outras palavras, as características sociais e as condições de vida e de trabalho destes novos trabalhadores independentes não são as mesmas que as dos seus antecessores.
Tudo isso primeiro questiona as nossas práticas de investigação em relação a uma sociologia do trabalho que costumava posicionar-se nas empresas. Agora é muito mais fragmentado. Nem sempre sabemos onde ver, observar, conhecer esses empresários independentes, esses auto-empreendedores. Isto levanta uma questão um pouco mais “teórica” sobre o que é ser-se assalariado. Devemos falar do sistema salarial como um “modelo perdido”? Isso seria bastante normativo. Há um debate entre os sociólogos que trabalham sobre os trabalhadores por conta própria. Será que existe ainda, no trabalho independente, uma certa forma de emancipação relativamente ao assalariado?
Se aceitarmos uma definição marxista “original” de assalariado, este define-se essencialmente como uma relação de desigualdade e dominação entre o trabalhador e o empregador. Mas devemos manter isto como a principal base para definir assalariado? Retomando esta definição marxista clássica (e não atualizada) de assalariado, alguns sociólogos dirão então que o trabalho independente pode constituir uma espécie de emancipação. Mas esses sociólogos olharão mais para o trabalho independente relativamente qualificado e “organizado”. Por exemplo, as cooperativas de atividades e de emprego, que podem ser espaços de reinvenção face a uma base de assalariado considerada demasiado vertical.
Pessoalmente, mesmo que eu seja sensível a estas questões, tenho tendência a situar-me numa abordagem diferente, como a de Robert Castel, que diz que o mercado de trabalho assalariado mudou significativamente. Já não é exatamente o local da exploração, como dizia Marx. Ao longo do século XX, o assalariado também se tornou um campo de conquistas sociais, o centro em torno do qual a nossa proteção social foi organizada. Perder o assalariado é também perder tudo isso. Por vezes, as duas abordagens contradizem-se desta forma. As leituras de Castel e Friot, que me alimentaram, têm também algumas lacunas: continuamos a defender um velho modelo, sobretudo devido às relações políticas atuais, enquanto, apesar destas conquistas, o mercado de trabalho assalariado continua a ser uma fonte de desigualdade. Não devemos, portanto, continuar a defender o trabalho assalariado como o modelo mais emancipatório e permitir-nos conceber outra coisa.
Precisamos de uma solução que combine o facto de proteger um pouco mais os trabalhadores das relações de dominação direta que podem existir no assalariado, enquanto pensamos em algo que surge mais de um capitalismo que tem uma divisão muito estrita e frequentemente desigual da distribuição do valor e da tomada de decisões.
Temos, portanto, de proteger as conquistas do assalariado, sem cair na visão anacrónica do assalariado de Marx, que hoje sobrevalorizaria o trabalho independente. Considerar que é pelo controlo no e do seu processo de produção que este se emanciparia seria uma leitura errónea do que está a acontecer agora. O aumento de importância do trabalho independente está assim ao serviço das empresas que dele abusam, pelo que seria um erro valorizar a “autonomia” dos trabalhadores independentes.
LVSL – Qual é o papel da CEE/UE na disseminação de tais modelos? As iniciativas foram mais endógenas à França ou impostas pela Comissão?
Sarah Abdelnour – O empreendedorismo é claramente uma palavra de ordem europeia para combater o desemprego e a crise do poder de compra. No entanto, o quadro europeu não é – à primeira vista – absolutamente necessário para compreender o que aconteceu em França. O que aconteceu em 1976 em França (recorde-se que esta é a data em que começou o desenvolvimento de dispositivos de auto-empreendedorismo) não parece ter resultado de injunções comunitárias. O modelo do auto-empreendedorismo, e mais amplamente do pequeno comércio, são ideias historicamente ancoradas na direita liberal francesa. A isto pode acrescentar-se o desejo de criar um modelo “ao estilo americano”, particularmente no contexto da Guerra Fria e da oposição entre este modelo e o do bloco soviético.
Admito, no entanto, que não fui investigar a nível europeu e que poderia ter uma resposta um pouco diferente se estudasse este quadro. Em todo o caso, não observei uma omnipotência da Europa sobre as políticas de auto-empreendedorismo conduzidas em França durante a realização das minhas entrevistas. Não senti qualquer controlo por parte da UE, quer em termos de controlo, quer de incentivos, sobre as políticas seguidas em França nesse sentido.
“Se não se trata de uma intenção de regressar ao assalariado, há uma procura real de regulação e de regresso a uma certa ordem económica.”
No entanto, existe uma certa homogeneidade em muitos países europeus. Tem havido esquemas semelhantes noutras partes da Europa, na Alemanha ou em Espanha, por exemplo, mas é mais através do instrumento de referência, benchmarking, e de outras técnicas de harmonização que os países da União se aproximaram gradualmente deste ponto de vista. Além disso, existe provavelmente a presença de afinidades eletivas entre os países membros e a Comissão que podem funcionar. Mas mantenho que não acho que a minha resposta seja muito clara sobre este assunto.
Acima de tudo, na minha opinião, há algo de mais difuso e simbólico, como a formação homogénea de uma elite política e económica, que faz com que estas políticas sejam aplicadas por todo o lado, mais do que por constrangimentos “diretos” impostas pela UE.
LVSL – Numa perspetiva marxista, que meios ou reformas permitiriam a esses novos proletários emanciparem-se?
Sarah Abdelnour – Apesar de tudo, os trabalhadores de plataformas têm vindo a organizar-se desde há já há alguns anos e tomaram medidas coletivas. Isto é interessante porque aconteceu rapidamente, embora a organização do trabalho nos empresários independentes pudesse ter-nos levado a pensar o contrário. Este é fragmentado, muitas vezes jovem, de fraca compensação e sem espaço para discussão ou regulação coletiva. Nos Estados Unidos, por exemplo, no “Amazon Mechanical Turk”, que é uma enorme plataforma de micro-trabalho da Amazon, houve mobilizações, particularmente para serem pagos em intervalos mais regulares. Existem também aplicações para a classificação de plataformas pela parte dos trabalhadores, que permitem punir os infratores.
Com Sophie Bernard (socióloga do trabalho), estudámos as mobilizações dos condutores de VTC. Os movimentos foram realmente estruturados e observou-se mesmo que tinha havido algumas ligações entre uma organização de condutores e a UNSA, e uma outra com a Force Ouvrière. Por conseguinte, houve também apelos para que os sindicatos tradicionais apoiassem os condutores VTC. A primeira associação profissional VTC aderiu imediatamente à UNSA, apesar de ser um sindicato bastante “autónomo” que difere dos sindicatos mais antigos.
Nos argumentos dessas associações de motoristas profissionais, há até um discurso próximo do sindicalismo assalariado, como a defesa de um Estado social, a crítica de que a Uber não paga os seus impostos em França e uma crítica à destruição do Estado protetor. Ainda que não seja algo que antes tenha sido frequentemente encontrado no trabalho por conta própria.
Há, portanto, a defesa de um modelo social por parte destes movimentos de motoristas, enquanto a ciência política mostra tradicionalmente que as associações de trabalhadores independentes criticam o Estado Providência, que lhes imporia demasiados impostos e contribuições.
Mas as coisas são mais ambivalentes, esses motoristas não querem todos eles ser assalariados. Florence Weber mostra que existe uma aspiração de independência entre algumas classes populares. Porque o trabalho assalariado que poderiam encontrar é difícil, árduo e o autoemprego é percebido como um meio de promoção social e de controlo do trabalho pelo próprio trabalhador. O trabalho por conta própria pode ser sentido como menos extenuante e também mais gratificante, o que é um ponto importante. Esta retórica é encontrada entre os condutores de VTC. As coisas são, portanto, ambíguas.
Além disso, graças a esta lógica de discussão com os sindicatos, os mobilizados têm um pouco mais de esperança no diálogo com o Estado do que com as plataformas. Os VTCs estão conscientes de uma espécie de cinismo económico destas plataformas e resignam-se aos desafios económicos destas plataformas. Poder-se-ia quase dizer que eles têm uma análise marxista! Afirmam que as plataformas não “têm interesse” em lhes pagar mais e dizem que é normal, na sua lógica de lucro, que não lhes ofereçam melhores condições de trabalho. Os condutores acreditam realisticamente que enquanto houver pessoas dispostas a trabalhar sob tais condições, como uma espécie de “exército de reserva”, as plataformas não têm interesse em melhorar as suas condições de trabalho.
No entanto, os condutores tentam, por vezes em vão, boicotar certas práticas, como as das corridas coletivas (Uber pool), que na realidade são ainda menos lucrativas do que outras. Pode haver práticas de denúncia entre eles, alguns condutores culpam outros por trabalharem em tipos de corridas como as de Uber pool.
Por conseguinte, os sindicatos estão lá também para tentar chegar a um acordo entre os motoristas. Estão a tentar fazê-lo; mesmo que os motoristas tenham mais esperança em negociar com o Estado do que em alcançarem um boicote coletivo. Eles gostariam de voltar a um modelo que é um pouco como um táxi, mas com tarifas decididas coletivamente, e que não andem a mudar permanentemente. Isto também é evidenciado pelos poucos casos em que os tribunais do trabalho dos motoristas tiveram de ver reconhecido o seu estatuto de assalariado. Os condutores não querem necessariamente que todos sejam reconhecidos como assalariados, mas aqueles que trabalham exclusivamente para uma plataforma devem sê-lo.
Por fim, há um desejo efetivo de regulação, com tarifas mínimas, às vezes até mesmo pedindo um modelo que seja mais “alto de gama ” que os táxis. Se não se trata de um desejo de regresso ao assalariado, há uma procura efetiva de regulação e de um regresso a uma determinada ordem económica. As críticas às práticas fiscais e jurídicas da Uber France estão omnipresentes, assim como o facto de a Uber France alegar, em sua defesa perante os tribunais, ser uma filial da Uber especializada em marketing e não em transporte. Assim, os motoristas sentem que da Uber não há que esperar nenhuma mudança para com eles, daí a preferência de quererem passar pelo Estado em vez de passar pela negociação interna.
Nota
[1] N.T. Um intermitente de espetáculo em França é um artista ou técnico profissional que trabalha para empresas de artes do espetáculo, cinema e audiovisual e que, de acordo com os critérios do número de horas trabalhadas, e após uma contribuição adicional aplicada apenas a esta categoria socioprofissional, recebe prestações de desemprego. (https://fr.wikipedia.org/wiki/Intermittent_du_spectacle)