MARRINER ECCLES, um homem muito à frente do seu tempo (anos 30) e do nosso também – 6. De uma crise a outra, da crise dos anos 30 à crise dos anos de 2010-2020 – 6.4. Três presidentes do FED versus Marriner Eccles: 6.4.2. O canto de sereia da austeridade. Uma montagem com base em texto de J. Bradford Delong

A good many people believe Marriner Eccles is the only thing standing between the United States and disaster.” – TIME Magazine, 1936

Nota de editor:

Iniciámos no passado dia 1 de Fevereiro uma longa série – de mais de 50 textos – cuja última parte está ainda em preparação. A publicação de hoje ”O canto de sereia da austeridade”, de J. Bradford Delong, é o quinto texto da 6ª parte da série – 6. De uma crise a outra, da crise dos anos 30 à crise dos anos de 2010-2020, parte que é composta por 11 textos.

Esta série é, desde logo, o resultado do labor incansável e da mais elevada competência do seu autor, Júlio Marques Mota, e, como o próprio refere, é um trabalho que leva mais de um ano em preparação e “não foi um trabalho fácil porque, partindo do zero quase absoluto, tivemos de andar a deambular de texto em texto, aceitando uns, rejeitando outros, de referência bibliográfica em referência bibliográfica, cruzando textos e referências bibliográficas”.

É com grande satisfação e orgulho que publicamos na língua portuguesa estes textos em torno das ideias e ações de Marriner Eccles, o mais brilhante de todos os Presidentes do Conselho de Governadores do FED nas palavras de Michael Pettis (e que fazemos nossas). Como diz Júlio Mota, “Marriner Eccles é um dos maiores símbolos intelectuais da oposição fundamentada feita contra os teóricos criadores de catástrofes e os seus vassalos” e cujas ideias e ação, segundo a Time referia em 1936, “protegeram a América do abismo. Trata-se de ideias que na primeira metade do século XX ajudaram a fazer da América um grande país, e que vão contra as ideias destes falcões monetaristas (…) que querem fazer da Europa um insignificante continente”. E como conclui Júlio Mota os “… tempos de ontem, afinal, não diferem muito dos tempos de hoje, a lembrar a frase de Peter Kenen: o mundo mudou muito, mas os problemas são os mesmos. Os problemas são os mesmos e os políticos, pelo que se vê, são também os mesmos. É exatamente isto que confere uma extrema atualidade aos textos que iremos apresentar em torno da obra de Marriner Eccles.”


6. De uma crise a outra, da crise dos anos 30 à crise dos anos de 2010-2020

6.4. Três presidentes do FED versus Marriner Eccles:

Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

12 m de leitura

6.4.2. O canto de sereia da austeridade

Uma montagem a partir do texto com o mesmo título de J. Bradford Delong publicado por  em 19 de Novembro de 2020 (original aqui) (republicado por  em 6 de Dezembro de 2020, aqui)

Scan Gladwell/Getty Images

 

Entre as muitas lições da crise financeira de 2008 e as suas consequências nos Estados Unidos está uma, a de que não há nenhuma razão para nos preocuparmos com a dívida quando o desemprego continua alto e as taxas de juros baixas. A adopção apressada da política de austeridade fez descarrilar a última recuperação, e não deve ser permitido fazê-lo novamente.

 

BERKELEY – Dez anos e dez meses atrás, o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, anunciou no seu discurso sobre o Estado da União de 2010 que era hora de austeridade. “Famílias em todo o país estão a apertar o cinto e a tomarem decisões difíceis”, explicou ele. “O governo federal deveria fazer o mesmo.”

Sinalizando a sua disposição de congelar os gastos do governo por três anos, Obama argumentou que: “Como qualquer família sem dinheiro, trabalharemos dentro de um orçamento para investir no que precisamos e sacrificar o que não precisamos”.

A perceção da necessidade de austeridade era tão grande que ele até jurou “impor essa disciplina por veto”, apenas para o caso de os congressistas democratas terem algo diferente em mente.

Disse Obama:

“(…) No início da última década, no ano 2000, a América tinha um excedente orçamental de mais de 200 mil milhões de dólares. (Aplausos.) Quando tomei posse, tínhamos um défice de mais de 1 milhão de milhões de dólares e défices previstos de 8 milhões de milhões de dólares para a década seguinte. A maior parte disto foi o resultado de não pagar duas guerras, dois cortes fiscais, e um dispendioso programa de medicamentos prescritos. Para além disso, os efeitos da recessão abriram um buraco de 3 milhões de milhões de dólares no nosso orçamento. Tudo isto foi antes de eu entrar pela porta da Presidência. (Risos e aplausos).

Agora – apenas constatando os factos. Agora, se tivéssemos tomado posse em tempos normais, nada me teria gostado mais do que começar a reduzir o défice. Mas tomámos posse no meio de uma crise. E os nossos esforços para evitar uma segunda depressão acrescentaram mais um milhão de milhões de dólares à nossa dívida nacional.  Isso também é um facto.

Estou absolutamente convencido de que essa era a coisa certa a fazer. Mas as famílias de todo o país estão a apertar o cinto e a tomar decisões difíceis.  O governo federal deveria fazer o mesmo. (Aplausos.) Assim, esta noite, proponho medidas específicas para pagar o milhão de milhões de dólares que foram gastos para salvar a economia no ano passado.

A partir de 2011, estamos preparados para congelar as despesas do governo durante três anos. (Aplausos.) As despesas relacionadas com a nossa segurança nacional, Medicare, Medicaid e Segurança Social não serão afetadas.  Mas todos os outros programas governamentais discricionários sê-lo-ão. Como qualquer família sem dinheiro, trabalharemos dentro de um orçamento para investir no que precisamos e sacrificar o que não precisamos. E se eu tiver de impor esta disciplina através de veto, fá-lo-ei. (Aplausos.)

Continuaremos a percorrer o orçamento, linha por linha, página por página, para eliminar programas que não podemos pagar e que não funcionam. Já identificámos 20 mil milhões de dólares em poupanças para o próximo ano. Para ajudar as famílias trabalhadoras, vamos alargar os nossos cortes nos impostos da classe média (…)”. Fim de citação do discurso de Obama em 27/01/2010.

 

Imediatamente após essas observações, que pareciam contrariar o bom senso económico, alguns membros do governo Obama tentaram-me convencer de que o presidente estava apenas a envolver-se mais em espetáculo do que em conteúdo.

A implicação era que o governo, é claro, continuaria a usar a política orçamental para reduzir o desemprego por meio de cortes de impostos e com despesa pública em itens que estavam isentos do congelamento: “Segurança Nacional, Medicare, Medicaid e Segurança Social”.

Mas o teatro político pode ter um efeito poderoso nos debates políticos, determinando quais argumentos podem e quais não podem obter amplo consentimento na esfera pública. Após a crise financeira de 2008, eu e outros argumentámos que em ambiente de desemprego ainda alto e taxas de juros extremamente baixas, o custo dos empréstimos e gastos contínuos do governo seria trivial em comparação com os benefícios. No entanto, a retórica de Obama conferiu à austeridade o brilho bipartidário de que precisava para prevalecer.

Não importa que a taxa de emprego da população ativa [1] nos Estados Unidos ainda fosse de uns tristes 75,1%, tendo caído dos 80% que tinha no início de 2007 (e de quase 82% em meados de 2000).

Devido à adoção da austeridade, a taxa de emprego ainda era de apenas 75,6% quando Obama proferiu o seu segundo discurso inaugural em Janeiro de 2013.

Quase três anos depois, permanecia em 77,4% – representando menos da metade da perda desde 2007, e apenas um terço da perda desde 2000. No entanto, a então presidente do Federal Reserve, Janet Yellen, anunciou em dezembro de 2015 que a economia estaria em breve “demasiado aquecida”, a menos que as taxas de juros fossem aumentadas.

[Com efeito diz-nos a Bloomberg

O comité de definição de políticas do banco central dos EUA aumentou o intervalo da sua taxa de juro de referência em um quarto de ponto percentual para entre 0,25% e 0,50%, pondo fim a um longo debate sobre se a economia era suficientemente forte para resistir a custos de empréstimo mais elevados.

“Com o bom desempenho da economia e a expectativa de continuar a fazê-lo, o comité considera que um modesto aumento da taxa de fundos federais é apropriado”, disse a Presidente da Fed Janet Yellen numa conferência de imprensa após a decisão da taxa ter sido anunciada. “A recuperação económica percorreu claramente um longo caminho”.

A declaração política do Fed registou a “melhoria considerável” no mercado de trabalho dos EUA, onde a taxa de desemprego caiu para 5 por cento, e disse que os decisores políticos estão “razoavelmente confiantes” de que a inflação subirá a médio prazo para o objetivo de 2 por cento do Fed.

A lógica desta política conduzida por Obama-FED terá tido como resultado a chegada ao poder de Donald Trump agora vencido, mas não convencido, não por Biden mas pela catástrofe chamada Covid 19. Do ponto de vista eleitoral, mesmo assim. a vitória de Biden foi ao milímetro. Com a vitória de Biden o mundo não perdeu embora também não se saiba o que é ganhou. Veremos, tal é o mau estado em que está a sociedade americana qual o espaço de manobra que Biden consegue alcançar.]

No caso, o Fed começou a aumentar a sua taxa de referência pela primeira vez numa década.

A taxa de emprego da população ativa nos EUA não voltou ao seu nível de 2007 até Agosto de 2019, e mesmo nessa altura, o rendimento nacional dos EUA estava ainda 8,3% abaixo da sua tendência de crescimento de 2000-07, o que significa que nenhum dos rendimentos reais e produção perdidos desde o discurso de Obama de Janeiro de 2010 tinha sido recuperado.

Em 2012, Lawrence H. Summers, diretor do Conselho Económico Nacional de Obama até Janeiro de 2011, e eu próprio avisámos que sem uma renovação do estímulo orçamental agressivo, o emprego na primeira fase da vida ativa, a produtividade e os rendimentos reais nunca recuperariam para as suas tendências anteriores a 2007. Tínhamos razão acerca destes dois últimos indicadores, enquanto a taxa de emprego na primeira fase da vida ativa acabou por recuperar apenas ao fim de 12 anos (três vezes mais do que nos ciclos económicos anteriores pós Segunda Guerra Mundial).

Summers e eu considerámos tratar-se de uma questão de aritmética elementar. As taxas a que os aforradores em todo o mundo estavam a emprestar ao governo dos EUA, notámos, implicavam uma vontade de pagar ao governo para manter a sua riqueza em segurança. Não só não havia custo para o empréstimo do governo; também não havia necessidade de desviar recursos para o serviço da dívida.

Nessas condições, o empréstimo para financiar estímulos adicionais teria sido totalmente benéfico. Embora pudesse vir uma altura em que os aforradores perdessem o gosto por manter a dívida do governo dos EUA, e em que as políticas para reduzir a dívida fossem apropriadas, 2012 certamente não o foi.

Escusado será dizer que os nossos argumentos tiveram pouco ou nenhum impacto. Mas lembro-me agora desta antiga  história  porque cada vez mais parece que estamos prestes a repeti-la.

Devido à pandemia do COVID-19, o emprego na primeira fase da vida ativa nos EUA desceu para 76%, apenas um pouco mais alto do que em 2010. Lembre-se que, em tempos normais (antes de 2007-08), um quinto dos americanos desta faixa de idade não estava empregado nem à procura de emprego; mas agora, um valor adicional de 5% da população foi acrescentado a esta coorte. Trata-se de milhões de pessoas que poderiam estar a realizar qualquer número de tarefas úteis pagas que estão atualmente a ser deixadas por fazer.

Sob uma política nacional sã, o governo federal gastaria tanto dinheiro quanto fosse necessário para gerar a procura necessária para fazer valer a pena para os empregadores readmitirem este vigésimo da população em idade ativa. As preocupações sobre o que podemos pagar seriam postas de lado até ao dia em que os aforradores do mundo deixassem de considerar a dívida do governo dos EUA como um bem especial e singularmente valioso. Esse dia pode nunca chegar.

Como John Maynard Keynes observou durante a Segunda Guerra Mundial, “tudo o que somos capazes de fazer, somos capazes de o pagar”.

Hoje em dia, a questão é ainda mais óbvia. Nem sequer temos de descobrir como financiar a resposta à crise atual; essa parte da equação já se resolveu por si própria.


 

Nota

[1] Refere-se a trabalhadores entre os 25 e os 54 anos.


O autor: J. Bradford DeLong é Professor de Economia na Universidade da Califórnia em Berkeley e investigador associado no National Bureau of Economic Research. Foi Secretário Adjunto do Tesouro dos EUA durante a Administração Clinton, onde esteve fortemente envolvido em negociações orçamentais e comerciais. O seu papel na concepção do plano de salvamento do México durante a crise do peso de 1994 colocou-o na vanguarda da transformação da América Latina numa região de economias abertas, e cimentou a sua estatura como uma voz de liderança nos debates de política económica.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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