A Guerra na Ucrânia — “Rússia-Ucrânia: a finança como arma”, por Martine Orange

Seleção e tradução de Francisco Tavares

15 m de leitura

 

Rússia-Ucrânia: a finança como arma

 Por Martine Orange

Publicado por  em 14 de Abril de 2022 (original aqui)

 

Ao congelar os activos do Banco Central russo, os americanos e os europeus instituíram uma nova forma de guerra, na qual as moedas e as finanças são utilizadas como uma arma contra o inimigo. Esta medida sem precedentes alimenta o desafio à hegemonia do dólar. As placas tectónicas da ordem monetária internacional puseram-se em movimento.

 

Um “ponto de ruptura“, “um ponto de viragem no mundo“, “uma nova era“. Sete semanas após a invasão da Ucrânia e a imposição de sanções contra a Rússia, os economistas e os observadores continuam à procura de palavras para definir a situação. Nesta fase, admitem ter dificuldade em avaliar as consequências das medidas financeiras de retaliação tomadas pelo Ocidente. Mas todos partilham a mesma impressão, o mesmo sentimento: algo irreversível aconteceu sem dúvida. As placas tectónicas da ordem financeira internacional puseram-se em movimento.

Instalou-se uma nova forma de guerra, na qual moedas e finanças foram transformadas em armas contra o inimigo. Nos corredores do poder americano, a expressão “choque e espanto”, utilizada pela administração George Bush na altura da guerra do Iraque em 2001, reapareceu. O Presidente dos EUA Joe Biden não faz segredo do facto: trata-se de utilizar todos os meios financeiros disponíveis para fazer do regime de Vladimir Putin um pária mundial, para derrotar financeiramente a Rússia a fim de a forçar a parar a guerra, ou mesmo derrubar o governo. “Trata-se de desligar o sistema financeiro comercial russo da forma mais agressiva possível“, diz o antigo funcionário da Casa Branca Juan Zarate, citado pelo Financial Times.

Embora os Estados Unidos tenham utilizado extensivamente o sistema de sanções contra países inimigos (Irão, Sudão, Venezuela ou, mais recentemente, Afeganistão) nas últimas décadas, nunca antes foram impostas sanções financeiras tão fortes a um país do tamanho da Rússia.

Na manhã de 26 de Fevereiro, os americanos e os europeus anunciaram o isolamento completo do regime de Vladimir Putin. Os bancos russos foram cortados do sistema de câmbio interbancário Swift, toda uma lista de oligarcas alegadamente próximas do presidente russo teve os seus activos congelados. E o mais importante, os 643 mil milhões de dólares em reservas estrangeiras do Banco Central da Rússia colocados noutros bancos centrais em todo o mundo foram congelados. Uma medida inimaginável até há algumas semanas atrás.

Joe Biden com o Presidente Europeu Charles Michel na sede da Comissão Europeia em 24 de Março © @ASEM VAN DER WAL / ANP via AFP

 

Nos seus preparativos para a guerra contra a Ucrânia, o governo russo não tinha antecipado tal retaliação. Desde a invasão da Crimeia em 2014, o Banco Central russo diversificou metodicamente as suas reservas externas e reduziu a parte do dólar para 20%, a favor do ouro, do euro e do yuan, a fim de escapar a possíveis sanções americanas em nome de leis de extraterritorialidade ligadas à utilização da moeda americana. Mas não tinha previsto que estas pudessem afectar todas as suas reservas externas.

O Banco da Rússia não viu chegar as sanções fora dos EUA. Não imaginou o congelamento de todas as suas reservas externas [à excepção do yuan – nota do editor]”, diz o economista Nicolas Véron, membro do Instituto Bruegel e investigador do Instituto Peterson de Economia Internacional. “Ninguém poderia ter previsto que as reservas do Banco Central seriam congeladas, disse o Ministro dos Negócios Estrangeiros russo Sergei Lavrov. Isto é simplesmente roubo”.

Estas são de facto medidas sem precedentes contra um país membro do Conselho de Segurança da ONU, do G20 e do Banco de Pagamentos Internacionais, observa Nicolas Véron. Especialmente porque, para surpresa de todos, as sanções foram aplicadas instantaneamente por todos os países cujas moedas são convertíveis, incluindo a Suíça, o Liechtenstein e o Mónaco”.

 

A repolitização da moeda

De facto, raramente as políticas de sanções foram tão unanimemente acordadas, especialmente porque afectam uma área normalmente reservada aos bancos centrais, a do dinheiro. Desta vez, no entanto, foram os Estados e os governos que tomaram a decisão. Os bancos centrais foram tão só os executores desta política.

É verdade que duas figuras-chave do sistema financeiro internacional, Janet Yellen, ex-Presidente do FED e agora Secretária do Tesouro dos EUA, e Mario Draghi, ex-Presidente do Banco Central Europeu (BCE) e agora Presidente do Conselho em Itália, foram os arquitectos desta política de sanções. Numa longa investigação, o Financial Times relata como os dois funcionários, ligados por uma longa história de confiança e estima mútua, especialmente durante a crise do euro, reuniram durante muitas horas para elaborarem as sanções contra a Rússia. O acordo foi elaborado entre os dois e foi subsequentemente aprovado pela Casa Branca e pela Presidência da Comissão Europeia. Mas neste momento dramático, o actual Presidente do FED Jerome Powell e a Presidente do BCE Christine Lagarde parecem ter sido relegados para um lugar secundário.

Há já algum tempo que existe uma verdadeira dissonância entre o estatuto dos bancos centrais e as suas acções. Desde a crise financeira de 2008, o dogma da independência tem vindo a rachar por todo o lado. Mas agora está realmente a tornar-se visível. Quando os governos dão instruções aos seus bancos centrais para suspenderem os activos de um país inimigo, já não nos podemos esconder atrás do mito da independência“, analisa Laurence Scialom, professora de economia em Paris X Nanterre. “O que estamos a testemunhar é uma repolitização do dinheiro“, observa ela.

O que é edificante nesta nova fase de desglobalização financeira é que os Estados são perfeitamente capazes de intervir nas finanças. Como tantos outros, eu tinha vindo a teorizar que eles eram impotentes contra o mundo financeiro. Este episódio mostra-nos que eles não são nem impotentes nem estão desarmados. São perfeitamente capazes de intervir para desintegrar financeiramente um inimigo“, nota o economista Jézabel Couppey-Soubeyran, especialista em economia financeira e monetária da Paris 1 Panthéon-Sorbonne.

Ambos acreditam que este episódio só pode abrir mais o debate sobre tantas questões que foram postas de lado nos últimos anos em nome da independência do banco central. “As questões da sua governação, a orientação da sua política monetária, em benefício de quem, e as desigualdades que alimentaram, não podem deixar de ser novamente colocadas“, nota Laurence Scialom. “Tudo isto só pode levantar questões sobre a falta de acção contra os paraísos fiscais em particular“, acrescenta Jézabel Couppey-Soubeyran. “Os Estados estão a demonstrar que intervêm onde querem intervir“, continua, apontando o facto de as sanções serem dirigidas a certos oligarcas russos, mas que os Estados têm tido o cuidado de não questionar as práticas financeiras das Ilhas Caimão, Panamá, Jersey, Chipre e Malta e tantas outras que servem de base de apoio para as fortunas russas e outras fortunas. Ausências rodeadas por um silêncio ensurdecedor da parte dos líderes políticos.

 

O fim do privilégio exorbitante do dólar?

Nos últimos dias, o Presidente dos EUA Joe Biden pôs todo o seu peso diplomático para tentar convencer o Primeiro-Ministro indiano Narendra Modi a apoiar as sanções ocidentais contra a Rússia – na ONU. A Índia, tal como o Brasil, a China e a África do Sul, absteve-se de votar contra a exclusão da Rússia – e sobretudo de não assinar qualquer acordo para comprar petróleo russo.

As discussões em curso entre os dois países têm Washington em alerta. Não só o governo indiano, aproveitando os baixos preços oferecidos por Moscovo para vender o seu petróleo fora dos EUA e da Europa, comprou centenas de barris, permitindo à Rússia contornar as sanções. Mas os dois governos estão em negociações profundas para formalizar contratos de fornecimento de energia comparáveis aos já assinados entre a Rússia e a China, pagáveis em rublos, rupias ou mesmo com permutas. Em suma, todos os meios estão a ser explorados para escapar ao dólar e às sanções americanas.

Mais discretamente, a China e a Arábia Saudita também assinaram acordos de fornecimento de petróleo que devem ser denominados em yuan para também escapar ao dólar. Para Washington, este acordo é um aviso: Riyad sempre foi um indefectível aliado. E após a primeira crise petrolífera em 1973, os seus enormes excedentes de petróleo serviram de base para a moeda americana, que tinha estado fora do quadro de Bretton Woods desde 1971: os petrodólares foram reciclados pelas finanças americanas para alimentar todo o sistema financeiro global.

Vladimir Putin e Xi Jinping na cimeira Bric (Brasil, Rússia, Índia, China) em Junho de 2017 © @WU HONG / AFP

 

Há anos que países, a começar pela China e a Rússia, têm desafiado a supremacia do dólar como única moeda de reserva internacional, como única referência nas trocas do comércio mundial. Foram já feitos vários disparos de aviso nos últimos anos. Mas desta vez os especialistas monetários estão seriamente preocupados. Com as sanções sem precedentes impostas à Rússia, não estarão os próprios Estados Unidos a minar a ordem monetária internacional que construiu desde o fim da Segunda Guerra Mundial e que tanto osbeneficiou? Estará o dólar a perder o seu “privilégio exorbitante” nas palavras de Valéry Giscard d’Estaing?

Não vejo que isto seja um golpe para a ordem monetária internacional e para o estatuto do dólar. Não vejo qualquer sinal de desintegração do dólar“, assegura-nos Nicolas Véron. Todos estão longe de partilhar esta visão optimista. Para muitos, as consequências das sanções sem precedentes contra a Rússia deixarão a sua marca, e carregarão consigo o risco de desdolarização do mundo.

“Podemos ainda confiar no dólar e nos Estados Unidos?”, perguntam já alguns países. Esta é a questão em que insiste o antigo vice-presidente do Banco da China, Zhang Yanling. “As sanções só podem levar a uma perda de credibilidade dos EUA e minar a hegemonia do dólar a longo prazo“, disse recentemente, explicando que a China deveria ajudar o mundo “a livrar-se da hegemonia do dólar“.

Já estamos a ver alguns países renegociarem em que moeda que vão pagar pelas trocas comerciais“, disse Gita Gopinath, economista-chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI). Num estudo recente do FMI intitulado “The Stealth Erosion of Dollar Dominance” (A erosão furtiva do domínio do dólar), os economistas observam que a parte do dólar nas reservas internacionais tem vindo a diminuir constantemente desde a viragem do século, de 72% para 60%, a favor do euro, do iene, de algum yuan e de outras moedas estrangeiras.

Esta tendência só pode ser acelerada, prevêem alguns. Porque é que os países em rivalidade aberta ou em conflito com os EUA colocariam as suas reservas em dólares quando sabem que os bens já não são invioláveis, que Washington pode congelá-los a qualquer momento, perguntam eles. “Quando as regras mudam, mudam para sempre as finanças internacionais“, adverte Mitu Gulati, professor de direito na Universidade da Virgínia, no Financial Times.

 

Não existe alternativa?

Surgem naturalmente interrogações sobre o que a China irá fazer. O governo chinês tem vindo a reciclar os seus enormes excedentes comerciais em dólares e títulos do tesouro americanos há anos. Os activos chineses estão estimados em mais de 3 milhões de milhões de dólares. É impossível, dizem alguns, que o governo chinês saia do dólar de um dia para o outro e venda a sua montanha de ativos.

De qualquer forma, não há alternativa ao dólar“, diz o historiador económico Adam Tooze no seu blogue. Nenhuma moeda, explica ele, é capaz de substituir o dólar e oferecer a liquidez e a segurança da moeda americana. O yuan, apesar da dimensão da economia chinesa, não é capaz de competir com a moeda americana no comércio internacional: só é parcialmente convertível e ainda está sob o controlo apertado das autoridades chinesas.

Há que dizer que ainda não há alternativa ao dólar. Quer queiramos quer não, entrámos numa nova era monetária que questiona o papel do dólar. A posição da China nesta matéria será decisiva“, analisa Laurence Scialom.

O governo chinês tem vindo a defender um reequilíbrio do sistema monetário internacional há anos, mas está convencido de que isto só pode ser conseguido ao longo do tempo. Desenvolveu o seu próprio sistema de câmbio interbancário denominado em yuan, para competir com o sistema Swift e para se colocar fora da órbita ocidental. Ao mesmo tempo, como parte do seu projecto Rota da Seda, introduziu um modelo comercial do Projecto Ponte que permite o financiamento de infra-estruturas em países seleccionados sem passar pelo dólar e pelo sistema financeiro internacional.

Finalmente, o Banco Central Chinês está a desenvolver um sistema digital para organizar o comércio e os pagamentos entre países fora do dólar. O sistema destina-se, nesta fase, apenas ao comércio regional. Mas poderia dizer respeito a muitos países: em 2020, a China assinou o maior acordo de comércio livre com quinze países da região Ásia-Pacífico, incluindo o Japão, a Austrália e a Nova Zelândia.

 

Para escapar ao dólar e às sanções, alguns imaginam que a Rússia poderia recorrer às moedas criptográficas (Bitcoin, Ethereum, etc.) e que a longo prazo estas poderiam servir como activos de reserva para os bancos centrais. Muitos não acreditam de modo nenhum nesta possibilidade. As variações extremas que as moedas criptográficas podem sofrer em poucas sessões – em poucas semanas, o Bitcoin passou de $70.000 para $30.000 – tornam impossível considerá-las como investimentos seguros. Em vez de moedas, devem ser vistos como activos financeiros especulativos. “Além disso, as moedas criptográficas são incompatíveis com os bancos centrais. Foram criadas precisamente para escapar a qualquer controlo, qualquer regulamentação dos países. Ora, a principal função dos bancos centrais é controlar e garantir o dinheiro“, salienta Jézabel Couppey-Soubeyran.

As guerras perturbam o domínio das moedas e servem para acompanhar o nascimento de novos sistemas monetários“, diz Zoltan Pozsar, um analista do Credit Suisse. Considerado um dos melhores especialistas no sistema financeiro internacional desde a crise de 2008, Pozsar previu, logo após a introdução das sanções russas, a chegada de um Bretton Woods III. Depois de Bretton Woods de 1944, que estabeleceu a convertibilidade do dólar em ouro, e Bretton Woods II, que ligava o dólar ao petróleo, um terceiro Bretton Woods poderia emergir, segundo ele, com base no ouro e nas matérias-primas. Este regresso aos activos reais dificilmente convence os actores financeiros: assinalaria o fim da financeirização e imporia restrições drásticas à economia, como nos tempos do padrão-ouro.

 

Um mundo fragmentado

Em vez de uma grande reformulação do sistema monetário internacional, muitos esperam ver a sua fragmentação nos próximos anos. A guerra na Ucrânia acelerou a fragmentação do mundo que se tem vindo a desenvolver há vários anos. Os votos na Assembleia Geral da ONU confirmaram estas fracturas. Enquanto americanos e europeus esperavam um amplo voto de apoio para condenar a invasão russa da Ucrânia e excluir Moscovo da ONU, a única coisa que puderam observar foi uma erosão da coesão internacional. Dos 193 países membros da Assembleia Geral da ONU, 93 países apoiaram a moção para condenar e excluir Moscovo, mas 53 países abstiveram-se, 24 votaram contra e 23 não votaram.

Penso que estamos a caminhar para um mundo multipolar, muito mais instável, incerto, que se vai regionalizar“, diz Laurence Scialom. “Estamos a entrar numa lógica de blocos“, diz por seu lado Jézabel Couppey-Soubeyran. Um bloco americano, um bloco chinês, certamente. Um bloco europeu? Mesmo que muitos queiram acreditar nisso, ele ainda está em processo de formação.

A globalização como a conhecemos nos últimos trinta anos acabou“, avisou Larry Fink, o poderoso chefe do fundo BlackRock, há algumas semanas atrás. A Organização Mundial do Comércio confirmou-o. Durante vários anos, o comércio mundial tem vindo a estagnar. A pandemia e agora a guerra na Ucrânia estão a perturbar o comércio mundial, o que poderia levar, segundo a organização, a uma “fragmentação do comércio mundial em blocos geopolíticos distintos“. A guerra através das finanças não pode senão acelerar esta tendência.

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A autora: Martine Orange [1958 -], jornalista da área economia social em Mediapart desde 2008, ex-jornalista do Usine Nouvelle, Le Monde, e La Tribune. Vários livros: Vivendi: A French Affair; Ces messieurs de chez Lazard, Rothschild, um banco no poder. Participação em obras colectivas: a história secreta da V República, a história secreta da associação patronal, Les jours heureux, informer n’est pas un délit. Recebeu o prémio de ética Anticor em 2019.

 

 

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