A Guerra na Ucrânia — “Europa do Leste e Rússia – Esquecemos o desastre económico que criámos” (3/4). Por Heiner Flassbeck e  Friederike Spiecker

Seleção e tradução de Francisco Tavares

12 m de leitura

Europa do Leste e Rússia – Esquecemos o desastre económico que criámos – Parte 3

Por Heiner Flassbeck e  Friederike Spiecker

Publicado por em 11 de Março de 2022 (original aqui)

 

Se se procura a confirmação da importância e correcção das nossas críticas às instituições ocidentais, que têm lidado com a situação económica na Europa Oriental e na Rússia desde a queda do Muro de Berlim, basta olhar para Bruxelas. A Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, disse à rádio Deutschlandfunk, por exemplo, a 7 de Março:

Não devemos esquecer, já tivemos anteriormente uma evolução muito positiva numa cooperação muito estreita com a Ucrânia, por exemplo, todos os passos para integrar os dois mercados, o mercado interno europeu, mas também a economia ucraniana, mais fortemente“.

A declaração confunde, como tantas vezes acontece no Ocidente, um desenvolvimento benéfico para os exportadores ocidentais com um desenvolvimento positivo do país que recebe as exportações. “Integração” significa, na maioria dos casos, uma ameaça económica para os países a serem integrados, porque as pessoas no Ocidente não estão preparadas para fazer o que seria realmente necessário para permitir a estes países desenvolverem-se de forma estável e com sucesso nos seus próprios termos.

A importância de relações económicas externas estáveis é subestimada pela maioria dos economistas, incluindo os do Fundo Monetário Internacional e da Comissão da UE. É verdade que faz parte do cânone fixo da doutrina dominante em economia que o valor do dinheiro ao longo do tempo deve ser estável, ou seja, que a taxa de inflação de um país deve ser constante e relativamente baixa. No que diz respeito ao valor externo da moeda, ou seja, a taxa de câmbio de uma moeda, que é, afinal, muito importante para que os pequenos países abertos se integrem na economia mundial, a posição dominante é menos clara. Nesta área, a maioria acredita firmemente que existe virtualmente sempre uma solução nos mercados cambiais que proporciona um equilíbrio adequado entre países fortes e países fracos. Os mercados cambiais livres e os seus resultados “flexíveis”, contudo, não proporcionam sistematicamente este equilíbrio apropriado para os países pequenos e muito abertos; na melhor das hipóteses, só o fazem ocasionalmente por acaso. Muito frequentemente, contudo, fornecem resultados sistematicamente distorcidos e, portanto, o oposto de um equilíbrio apropriado (palavra-chave “carry trade”).

Para as economias muito grandes e relativamente fechadas dos EUA e da UEM como um todo, contudo, as relações externas são relativamente estáveis (figuras 1 e 2). Embora os EUA tenham registado um défice da balança de transacções correntes durante muitos anos, os movimentos tanto nas taxas de câmbio nominais como reais (sendo estas últimas o indicador-chave das mudanças na competitividade de toda uma economia) quase nunca são bruscos em resposta a choques externos. O intervalo de variação nas últimas duas décadas tem sido inferior a 25 pontos percentuais para a taxa de câmbio real dos EUA.

Figura 1 – Taxa de câmbio e conta de transações correntes nos EUA

(1) Taxa de câmbio nominal/efetiva real, conjunto amplo de países (60 economias), base CPI, índice 2010=100; os valores crescentes mostram apreciação; escala do lado esquerdo da figura. (2) Conta de transações correntes em percentagem do PIB, valores negativos mostram défice; escala do lado direito da figura. __ Fonte: BIZ, FMI, OCDE

A situação é semelhante para a UEM. Esta última, dominada pelo excedente das exportações alemãs, tem vindo a registar um excedente significativo na balança de transacções correntes desde há vários anos. Mas as taxas de câmbio nominais e reais oscilam dentro de um intervalo de vinte pontos percentuais, flutuando ainda menos do que as dos EUA.

Figura 2 – Taxa de câmbio e conta de transações correntes da UEM

(1) Taxa de câmbio nominal/efetiva real, conjunto amplo de países (60 economias), base CPI, índice 2010=100; os valores crescentes mostram apreciação; escala do lado esquerdo da figura. (2) Conta de transações correntes em percentagem do PIB, valores negativos mostram défice; escala do lado direito da figura. — Fonte: BIZ, FMI, OCDE

 

A situação é diferente na China (Figura 3), onde ainda havia uma apreciação real de mais de quarenta pontos percentuais contra o resto do mundo na década de meados dos anos 2000 a 2015. Mas esta apreciação ocorreu em passos relativamente constantes porque o banco central chinês controlava a apreciação nominal da moeda nacional em todos os momentos. Além disso, foi uma apreciação que partiu de uma taxa de câmbio severamente subavaliada. A China tinha fixado a taxa de câmbio da sua moeda face ao dólar americano a um nível baixo em 1993 e só gradualmente relaxou esta fixação no início do século. Como resultado, o excedente da conta corrente da China caiu de um nível muito elevado para menos de dois por cento do PIB.

Figura 3 – Taxa de câmbio e conta de transações correntes da China

(1) Taxa de câmbio nominal/efetiva real, conjunto amplo de países (60 economias), base CPI, índice 2010=100; os valores crescentes mostram apreciação; escala do lado esquerdo da figura. (2) Conta de transações correntes em percentagem do PIB, valores negativos mostram défice; escala do lado direito da figura. __ Fonte: BIZ, FMI, OCDE

 

A Rússia (ver figura 4) também ainda tem um excedente em conta corrente. No entanto, para um país tão concentrado nas exportações de matérias-primas, o excedente é agora bastante pequeno, a níveis entre 2 e 6 por cento. Em comparação, a Arábia Saudita alcançou um excedente médio anual da balança de transacções correntes de 12 por cento do seu PIB entre 2000 e 2019. Além disso, na sequência da crise na Crimeia e na Bacia do Donbass, o rublo russo desvalorizou 40% em termos nominais entre 2013 e 2015, em apenas dois anos, e em mais de um quarto em termos reais (a escala da esquerda para os índices cambiais é maior na Figura 4 do que nos gráficos anteriores). Se o comércio tivesse sido menos centrado nas matérias-primas, isto teria provavelmente causado um aumento mais acentuado do excedente da balança de transacções correntes do país.

Figura 4 – Taxa de câmbio e conta de transações correntes da Rússia

(1) Taxa de câmbio nominal/efetiva real, conjunto amplo de países (60 economias), base CPI, índice 2010=100; os valores crescentes mostram apreciação; escala do lado esquerdo da figura. (2) Conta de transações correntes em percentagem do PIB, valores negativos mostram défice; escala do lado direito da figura. __ Fonte: BIZ, FMI, OCDE

 

A situação externa da Ucrânia é catastrófica (figura 5). O país tem um enorme défice da conta corrente sempre que não se encontra em recessão, apesar das exportações substanciais de matérias-primas. A taxa de câmbio real (calculada aqui apenas em relação ao euro; o Banco de Pagamentos Internacionais BIS não comunica taxas de câmbio efectivas para a Ucrânia) flutua de forma violenta. Isto significa que as empresas não têm qualquer certeza de planeamento no que diz respeito à sua posição competitiva face aos concorrentes estrangeiros.

Além disso, várias vezes durante o período em análise, a moeda apreciou-se em termos reais e o saldo da conta corrente deteriorou-se imediatamente, ou seja, entrou em défice ou o défice agravou-se. A título de comparação, a apreciação real na Rússia entre 2005 e 2013 foi também acompanhada por um declínio na balança de transacções correntes, mas permaneceu em território positivo. O desenvolvimento monetário da Ucrânia sugere que o país tem perdido repetidamente competitividade através da especulação monetária. Assim que a economia não teve um desempenho tão mau (por volta de 2010 a 2013), esta constelação monetária levou imediatamente a um aumento das importações, o que causou dificuldades aos produtores nacionais.

Figura 5 – Taxa de câmbio e conta de transações correntes da Ucrânia

(1) Taxa de câmbio real em relação ao Euro, base CPI, índice 2010=100; os valores crescentes mostram apreciação; escala do lado esquerdo da figura. (2) Conta de transações correntes em percentagem do PIB, valores negativos mostram défice; escala do lado direito da figura. __ Fonte: BIZ, FMI, OCDE, cálculos próprios.

 

O que é particularmente trágico no caso da Ucrânia é que a tentativa de impedir a sua própria população de migrar para o Ocidente está a destruir a sua própria base de produção. Já descrevemos o mesmo problema para outros países da Europa Oriental há algumas semanas atrás que, diferentemente da Ucrânia, são membros da UE. Os salários reais na Ucrânia aumentaram de um nível de índice de 100 para 1400 de 2005 para 2020. Isto corresponde a um aumento salarial médio anual de quase 20 por cento. E isto num país onde o PIB real cresceu apenas 2 ½% em média anual durante este período. Esta baixa taxa média de crescimento deve-se em grande parte às recessões extremas na sequência da crise financeira global em 2009 (-15 por cento) e do conflito Crimea-Donbass em 2014, que fizeram retroceder novamente o PIB real na mesma ordem de magnitude em 2014 e 2015 combinados.

A taxa de crescimento de um país diverge da sua taxa média de crescimento da produtividade, na medida em que o emprego muda: Se o emprego aumentar, o PIB pode crescer mais rapidamente do que a produtividade. Se o emprego diminui, a economia cresce mais lentamente do que a produtividade. Com uma diferença tão grande entre a evolução dos salários nominais e o PIB real como na Ucrânia, é óbvio que os salários aumentaram muito mais do que o desenvolvimento da produtividade poderia ter rendido, mesmo sob pressupostos optimistas sobre a actividade de investimento. Pois mesmo que o emprego possa ter diminuído, não diminuiu de forma alguma a tal ponto que o desenvolvimento do crescimento económico global e da produtividade económica global possa divergir a tal ponto. No entanto, se o crescimento dos salários for muito superior ao crescimento da produtividade, uma inflação elevada é inevitável – como na realidade foi o caso (ver Fig. 4 na Parte 2 desta série de artigos).

Esta desvalorização monetária interna exige uma forte desvalorização nominal da moeda para que a competitividade internacional de um país não seja rapidamente perdida. Mas esta desvalorização não ocorreu prontamente, continuamente ou de uma forma que se pudesse esperar que permitisse às empresas ucranianas planear investimentos do sector privado de forma significativa e executá-los com sucesso. Os conflitos armados no leste do país fizeram o resto para piorar o clima de investimento. Como resultado, não houve uma expansão significativa do stock de capital industrial doméstico; pelo contrário, o stock de capital existente tornou-se ainda mais obsoleto. Como resultado, as perspectivas para a população deterioraram-se ainda mais.

Para além do aumento exorbitante dos salários nominais, observou-se uma forte flutuação da evolução dos salários reais nos últimos 15 anos (Fig. 6): Em cada fase de recuperação económica, os salários nominais dispararam acentuadamente, sem que as empresas pudessem aparentemente compensar isto imediatamente com aumentos de preços correspondentes. Como resultado, os salários reais também aumentaram muito fortemente entretanto. Depois os salários reais voltaram a cair com a mesma rapidez. Globalmente, contudo, isto resultou numa evolução instável dos custos e da procura. Além disso, como explicado acima, os mercados monetários não conseguiram desvalorizar a moeda a tempo de acompanhar a inflação interna. Em conjunto, estes dois factores criaram enormes problemas para as empresas ucranianas. Numa situação tão mista, a política monetária é também incapaz de proporcionar incentivos positivos ao investimento ou mesmo de estabilizar o desenvolvimento económico.

Figura 6 – Salários reais (1) na Ucrânia, UEM e EUA

(1) Taxa anual de variação do salário médio nominal no conjunto da economia, com o preço ajustado pelo CPI. (2) 2010-2014 excluindo os territórios ocupados temporariamente da República Autónoma da Crimeia, da cidade de Sebastopol; desde 2015 excluindo os territórios ocupados temporariamente nas regiões de Donetsk e Luhansk. __ Fonte: base de dados Ameco (Novembro 2021), FMI, Serviço Estatal de Estatísticas da Ucrânia.

 

As palavras da Presidente da Comissão da UE citadas no início, de que já houve desenvolvimentos muito positivos e que foram dados passos para uma maior integração dos mercados ucranianos com os mercados da UE, carecem de qualquer base se analisarmos as coisas de uma perspectiva macroeconómica com enfoque nas perspectivas positivas de desenvolvimento sustentável que resultaram para este país e a sua população.

Leia na quarta e última parte que a mudança através do comércio é possível e pode de facto ser frutuosa para a coexistência pacífica, mas apenas se for justa para todos os envolvidos. O Ocidente, se realmente leva a sério a integração dos países do antigo bloco de Leste, deve criar um modelo comercial e monetário completamente novo, em vez de ganhar vantagens de uma forma colonial.

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Os autores

Heiner Flassbeck [1950 – ], economista alemão (1976 pela Universidade de Saarland), foi assistente do Professor Wolfgang Stützel em questões monetárias. Doutorado em Economia pela Universidade Livre de Berlim em julho de 1987, tendo por tese Prices, Interest and Currency Rate. On Theory of Open Economy at flexible Exchange Rates (Preise, Zins und Wechselkurs. Zur Theorie der offenen Volkswirtschaft bei flexiblen Wechselkursen). Em 2005 foi nomeado professor honorário na Universidade de Hamburgo.

A sua carreira profissional teve início no Conselho Alemão de Peritos Económicos, em Wiesbaden, entre 1976 e 1980; esteve no Ministério Federal de Economia em Bona até janeiro de 1986; entre 1988 e 1998 esteve no Instituto Alemão de Investigação Económica (DIW) em Berlim, onde trabalhou sobre mercado de trabalho e análise de ciclo de negócio e conceitos de política económica, tendo sido chefe de departamento.

Foi secretário de estado (vice-ministro) do Ministério Federal de Finanças de outubro de 1998 a abril de 1999 sendo Ministro das Finanças Oskar Lafontaine (primeiro governo Schröeder), e era responsável pelos assuntos internacionais, a UE e o FMI.

Trabalhou na UNCTAD- Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento desde 2000, onde foi Diretor da Divisão de Globalização e Estratégias de Desenvolvimento de 2003 a dezembro de 2012. Coordenador principal da equipa que preparou o relatório da UNCTAD sobre Comércio e Desenvolvimento. Desde janeiro de 2013 é Diretor de Flassbeck-Economics, uma consultora de assuntos de macroeconomia mundial (www.flassbeck-economics.com). Colaborador de Makroskop.

Autor de numerosas obras e publicações, é co-autor do manifesto mundial sobre política económica ACT NOW! publicado em 2013 na Alemanha, e são conhecidas as suas posições sobre a crise da eurozona e as suas avaliações críticas sobre as políticas prosseguidas pela UE/Troika, nomeadamente defendendo que o fraco crescimento e o desemprego massivo não são resultado do progresso tecnológico, da globalização ou de elevados salários, mas sim da falta de uma política dirigida à procura (vd. The End of Mass Unemployment, 2007, em co-autoria com Frederike Spiecker).

Friederike Spiecker é licenciada em economia e estudou economia na Universidade de Konstanz de 1986 a 1991. Trabalhou no departamento económico do Instituto Alemão de Investigação Económica em Berlim. Hoje trabalha como jornalista económica freelancer em questões de política económica nacional e internacional. Co-autora de The End of Mass Unemployment, 2007.

 

 

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