UMA CARTA DO PORTO – CONTO – Por José Fernando Magalhães (594)

 

 

 

 

A VIZINHA

Todas as histórias deveriam começar por “era uma vez…”.

Esta não foge à regra.

Era uma vez uma rua que tinha uma rotunda mesmo ao fundo, e que tinha o nome de uma cidade do Magrebe.

Por lá parávamos, todos os fins de tarde em amena cavaqueira, o Zeca do gás, meu saudoso amigo que partiu cedo na vida e de quem todos gostávamos, eu e mais um ou outro companheiro, mesmo à porta do João da padaria.

Esta rua, que tinha o nome de uma cidade do Magrebe, era uma rua onde nunca se passava nada. Era uma rua amorfa.

Bem, não totalmente. Durante cinco minutos em cada dia, de segunda a sexta-feira, e sempre ao fim da tarde, alguma coisa mexia. . .

Quando passava na rua, a vizinha não deixava ninguém indiferente.

Mexia com os sentidos todos. Todos os cinco sem excepção.

Os olhos dos mais susceptíveis lacrimejavam e impediam uma visão perfeita (às vezes).

Os ouvidos dos mais atentos deixavam de ouvir tudo o que se passava em redor, concentrando-se no som dos tacões a baterem, ritmados, na calçada.

Deixava de se sentir fosse o que fosse, por via de um formigueiro nas mãos. Os dedos tamborilariam na mesa (se a houvesse), assim ficavam irrequietos nos bolsos.

O rasto de perfume, bloqueava qualquer outro cheiro nos mais ansiosos. Havia até quem voasse atrás dele, mesmo sem dar por isso.

Um sabor a papel de música provocado pela secura opressiva da boca ou mesmo por uma salivação fervorosa, chegava de imediato ora a uns ora aos outros.

Ao longo do tempo que durou a história que agora conto, e que quase chegou a um ano, na imaginação criada nas mentes dos sempre presentes, provocada pela passagem da vizinha, muitos mataram a sede das suas muitas léguas de isolamento sem bandeira nem hino. Desde exércitos a caravanas, montados em cavalos e em camelos ou simplesmente a pé, desde crianças a adolescentes e a adultos, durante o tempo que durava o repicar das Avé Marias no sino da Igreja do Cristo Rei, o sorriso de felicidade inundava os rostos. A atmosfera de degelo embrutecido, dava lugar ao cantar das águas de Março em pleno anúncio da Primavera. Como que por encanto, despiam a carga negra que as suas vidas lhes vestiam logo pela manhã, e os sonhos e a esperança regressavam como que para sempre.

Deus bafejara a vizinha com a perfeição das formas, e quem a olhava, com o sonho do mel, qual perfume da antiguidade, e remédio para todos os males ou alimento para a felicidade eterna.

A vizinha trabalharia por certo, num local importante. Sempre vestida a rigor, fosse Verão ou fosse Inverno. O cabelo bem arranjado, as unhas das mãos e dos pés (quando se viam) impecavelmente cortadas e envernizadas. A roupa, bem, a roupa deveria ser de marca, ou então de costureiro. A juntar às formas perfeitas, tinha a perfeição do aspecto, do trato e da pose.

Era assim que todos a viam.

Ninguém lhe conhecia namorado ou marido, nem qualquer outra coisa do género. Corria a ideia de que vivia sozinha, sem a companhia de cão ou gato, ou mesmo de periquito ou canário.

Não se sabia de onde vinha nem para onde ia. Simplesmente aparecia à porta do 37 bem cedo da manhã, e era por lá que entrava aos fins de tarde.

Quando regressava do seu (suposto) trabalho, a rua parava.

Um dos merceeiros da rua, solteirão praticante e já entrado na idade, aparecia à porta, sorrateiramente. Baixo, forte e razoavelmente simpático, era o comerciante mais antigo que por lá havia. Sempre estivera lá. Ninguém se lembra do tempo em que ele lá não estava. Vivia quase só. Desde a morte da mãe e mais recentemente da irmã, solteira como ele e também já entradota, que assim era. Como companhia, o canídeo de raça cão, branco, a que dera o nome de Berlim.

Lá ao fundo, já na rotunda, o barbeiro, por cujas mãos já todos os habitantes da rua e arredores tinham passado, olhava pelo vidro da barbearia, esquecendo por momentos o seu sonho de criança, que sempre o acompanhara ao longo das horas do dia e da noite, e que era, correr mundo solitariamente numa barcaça. Apesar desse sonho, ou por causa dele, o Vila Verde, assim lhe chamavam por causa da terra onde tinha nascido, era casado, sabia-se, e não tinha descendência. O seu olhar ficava perdido e a boca entreabria-se, como se lhe faltasse o ar.

O outro merceeiro, homem que se considerava importante muito por via de ter um filho letrado, com casa aberta quase na esquina da rua do meio, virava-se de costas, não fosse a sua mulher notar o olhar babado e quase lascivo, bem como a sua respiração, que se tornava mais apressada e profunda.

O farmacêutico, filho e neto dos farmacêuticos anteriores, há décadas estabelecidos na rua, anafado e pai de dois pimpolhos rechonchudos, compunha a bata imaculada e olhava de soslaio, esquecendo-se da freguesa que diariamante comprava os supositórios para a tosse.

O Neca alfaiate, que tinha sido cozinheiro na tropa quando estivera em comissão no ultramar, parava de trabalhar, a tesoura na mão, aberta, parada a meio da peça de pano, não fosse o corte das calças do sr Antero ficar mal feito.

O Pedro sapateiro, lança um piropo de mau gosto, como de costume, nem por isso deixando de martelar o salto agulha do sapato da D. Miquinhas.

O empregado do café Avenida (chamava-se assim apesar da estreiteza da rua) dá um estalo com a língua, e o sr engenheiro, que dava aulas (privadas) de matemática e de física e que estava desempregado ia para dois anos, sentado na esplanada suspira e pensa que afinal a vida se não esgota no emprego que não tem.

Enquanto isso, e alheia a tudo, a vizinha continuava com o seu passo pausado, certo, ritmado, descendo a rua em direcção ao largo.

A D. Aninhas, esposa amantíssima do António carniceiro, faz cara feia à sua passagem.

A criada negra do sr doutor médico, que ele mandara vir das áfricas vai para muitos anos, como era de costume e de bom tom em pessoas da sua categoria e nível social, funga e vira a cara.

A mulher do (importante) merceeiro, olha para ele, desconfiada, esperando uma reacção que ele acaba por não demonstrar.

A empregada da D. Vitória que está divorciada do sr Coronel do Exército (na verdade era só Tenente-Coronel), está a limpar os vidros, empoleirada na janela do segundo andar do número 14, e quase em risco de cair, nem repara em nada.

Dois cães ladram grosso ao sentirem os passos da vizinha. Outro, ao longe, responde.

Dois miúdos, em idade escolar, na pré-adolescência, falam alto um para o outro:

– “João, João, mica!” (o verbo micar, usava-se com frequência na altura, e significa, olhar, mirar, observar…)

A sra professora de música, viúva ia para mais de dez anos do sr Francisco, Chefe das Finanças da altura, e que estava ameaçada de exclusão da carreira docente por não aceitar os regulamentos da avaliação imposta pela sra Ministra, aprecia de longe a vizinha, com conhecimento e nostalgia. Também um dia, ela fora assim!

Impávida e serena, e até, dizia-se, com uma certa altivez, a vizinha passa com o seu pisar calmo e certo. Acostumada aos olhares da populaça, ignora tudo à sua volta, não vê ninguém. Nem se dá ao trabalho de se preocupar com isso. Não olha para ninguém. Não cumprimenta seja quem for. Comportava-se como se ninguém existisse à sua volta.

Chegada a sua casa, mete a chave na fechadura, entra e desaparece até ao dia seguinte.

– “Até amanhã, vizinha!” Pensa cada um de si para si. No dia seguinte será por certo outro dia de sol.

 .

A vida na rua que tem ao fundo um largo, rotunda como lhe costumam chamar, e que tem o nome de uma cidade do Magrebe, voltava ao rame-rame de sempre. Recomeçavam as conversas, os pensamentos ganhavam novos rumos, e a vida seguia o seu caminho.

Dia após dia, a sua passagem era intimamente esperada, diria mesmo ansiada, quase que com sofreguidão.

E assim foi durante meses, até que um dia, a vizinha não veio. Nem de manhã, nem de tarde. E nos dias seguintes também não. Estaria doente? Precisaria de ajuda? A preocupação aumentava nas faces dos habitantes da rua, a cada hora que passava. Notava-se, nos seus olhares vazios e nas conversas inexistentes.

E ao fim do quarto dia de uma angústia que se via ao longe, veio uma camioneta de mudanças e levou tudo o que havia na casa que tinha o número 37.

Assim, de uma penada. Quase como que a correr. Num instantinho.

A tristeza e a estupefação ficaram marcadas nas caras de cada um deles. Ficaram abatidos, desolados e sem ânimo.

A vizinha nunca mais foi vista. Nunca mais apareceu.

A rua, que era também um pouco a minha, nunca mais foi a mesma. Ficou ainda mais amorfa e cinzenta do que tinha sido. A monotonia voltou a instalar-se, misturada com mágoa e desinteresse.

O tempo tudo cura, até aquela saudade imensa, mas de longe a longe, nas conversas que sempre surgem, ainda se fala dela, da vizinha, de quem nunca ninguém soube o nome. E essas conversas ainda traduzem nostalgia e desolação.

Àquelas pessoas só lhes restou a lembrança de um período áureo da vida da rua que tinha uma rotunda mesmo ao fundo, e que ostentava o nome de uma cidade do Magrebe.

 

Obs – Conto publicado em Junho de 2017 no livro “COMO SE FORA UM CONTO”

 

 

 

UMA FELIZ PÁSCOA PARA TODOS!

 

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