CARTA DE VENEZA – 21 – “ ŐTZI, o Homem vindo do gelo” – por Sílvio Castro

 

No dia 19 de setembro de 1991, uma quinta-feira, às 13,30, foi feita a mais importante descoberta arqueológica do século XX: a múmia que depois foi chamada oficialmente, por decisão da Câmara da Província autônoma de Bolzano,L’uomo venuto dal ghiaccio (O homem vindo do gelo), mais conhecido depois por um apelido, Őtzi, que revela plenamente a sua origem de um guerreiro, caçador, chefe de grupo, originário da atual Vale Senalis, nos Alpes italianos, fronteiriço com aquele austríaco, Őrtztaler Alpen. Őtzi, morto há 5000 anos, em plena era neo-lítica, saiu então do seu longo sono sob o gelo, despontando lentamente da imensa massa gelada que recobria o espaço de uma concavidade natural nas alturas allpinas para um seu reencontro com os homens.

 A grande descoberta foi feita pelo turista alemão, Helmut Simon, acompanhado por sua mulher, Erika, que ao descerem das grandes alturas das montanhas de Val Senalis, ao tomar um desvio menos íngreme, encontrou a 3210 m., revelado pelo desgelo que inundava a concavidade natural ali presente, um crâneo escuro, com o vulto escondido no gelo, única parte livre do corpo mumificado. Simon logo reconheceu a importância do seu achado e imediatamente procurou liberá-lo completamente, mas não o conseguiu de imediato. Assim, os dois alpinistas desceram mais ainda, para tomar a direção do vizinho refúgio Similaun. Ali Simon revelou a sua descoberta ao titular do refúgio, com ele partindo imediatamente para tentar liberar o corpo apenas descoberto e recolher os muitos objetos que o circundavam. Não conseguindo realizar quanto desejavam, os dois deixam a múmia já agora inteiramente revelada, indo o titular do refúgio comunicar às autoridades italianas e austríacas, confinantes, o importante achado.

Desde logo a notícia se propaga pela imprensa internacional. A múmia vem liberada completamente, depois de grandes empenhos, na segunda-feira, 23 de setembro de 1991, às 12,37.

Assim, o “Homem vindo do gelo” deixava definitivamente o seu milenar repouso, sendo conduzido pelas autoridades austríacas, decididamente empenhadas na  recuperação, para o Instituto de Medicina Legal de Innsbruck. Por muitos anos, a múmia permanece na Áustria, estudada particularmente pelos arqueólogos da Universidade de Innsbruck. Resolvida a questão sobre o território em que a mesma fora encontrada e verificado que este se encontrava no espaço italiano, as autorridades austríacas consignaram o já reconhecido precioso achado à iItália. Hoje, o “Uomo venuto dal ghiaccio” se encontra conservado em Bolzano, no Museu  Arqueológico do Alto Ádige.

 Logo transformada numa grande revelação para o mundo, a mais antiga múmia conhecida começou a receber os mais variados nomes. Porém em determinado momento, o reporter vienês da Arbeiter-Zeitung, Karl Wendl,em um seu artigo escreve: “Este cadáver de aspecto ressequido deve apresentar-se mais positivo, mais simpático, para daí poder-se criar uma bela história“. E por isso propõe um claro nome para a múmia: Őtzi. Logo o apelido alcança pleno sucesso. E todos os outros, anteriormente dado ao homem vindo do gelo, desaparecem definitivament

Quem era Őtzi em vida? Isto ficou sendo sempre um mistério que contempla muitas respostas. Quando foi encontrado ele estava completamente vestido e havia trazido para a sua quase eterna sepultura grande quantidade de objetos – arco, flechas, punhal etc., etc. – que indicam a situação social de um homem de importância no seu clã. Possivelmente tinha 45-47 ao morrer, sendo a sua morte tido origens claramente violenta. Nas costas, ele trazia um fragmento de flecha que, golpeando pelas costas, lhe provocara uma hemorragia mortal. Depois de ferido, possivelmente foi jogado montanha abaixo pelos seus agressores, até parar na concavidade gelada que o acolherá por milênios. Antes de morrer e ser completamente coberto pelo peso imenso da massa de gelo despencada das alturas maiores daquelas montanhas, Őtzi teve ainda tempo para de certa maneira colocar com certa ordem seus muitos objetos próximos ao seu leito definitivo.

 Őtzi logo se transformou num mito. E também num mito poético –

 “No vento

me chega um vermelho

folha e flor

a um só tempo.

No vento me integro

sem desejar mais do que sentir

sempre

o frio do vento –

a beleza é o sentimento

que vem com o vento.”

 (Sílvio Castro, “Leve vento de Val Senales”, Poema de Őtzi, em elaboração)

  Assim, é fácil vê-lo que percorre feliz e forte a sua magnífica vale:

 O Caçador  satisfeito

                                       ÓÓÓÓ

                                        ÓÓÓÓ

                                          ÓÓÓÓ

                                                         ÓÓ

                             LLERO

                                                LLERO

                                                                 LLERO

                                                                  LLERO

                                                                    EERO

                                                                        EERO

                                                                                      ÓÓÓÓ

                                                                                       ÓÓÓÓ

                                                                                            ÓÓ

                                                                                                       Ó

 (in Sílvio Castro, Poema de Őtzi)

 

 Mas. a atmosfera lendária que recobre a múmia do Museu de Bolzano não é sempre um canto em dimensão lírica. Muitas vezes, por ela percorre alguma coisa que tem muito do trágico, derivação de uma maldição gritada pelo homem vindo do gelo contra todos aqueles que o arracaram definitivamente do repouso de sua sepultura do frio perene. A mesma maldição endereçada a Helmut Simon que morre treze anos depois, caindo, como acontecera com o mesmo Őtzil, das alturas daquelas montanhas. Tudo quase como uma paráfrase da maldição desferida pelo Gigante Adamastor contra o seu violador, o herói lusíada Bartolomeu Dias.

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