Seleção e tradução de Júlio Marques Mota
16. A zona euro, um castelo de cartas a cair – condenada desde o início (conclusão)
Por Bill Mitchell, publicado em 26 de outubro de 2016
(conclusão)
Ao anunciar os termos do resgate ao povo grego, o primeiro-ministro George Papandreou utilizou uma gravata de cor púrpura escura, a cor com que os gregos se vestem nos funerais. Mas os seus dias estavam contados. Logo depois, a Troika livrou-se de Papandreou e colocou um dos “seus homens” neste cargo, o banqueiro central Lucas Papademos. Não importava o que é que os eleitores poderiam pensar!
Neste contexto, Issing refletia ainda nesta semana com as seguintes linhas:
Ficou claro no fim-de-semana que se nada tivesse acontecido na segunda-feira, poderia haver turbulência nos mercados financeiros. É óbvio que a Grécia não poderia satisfazer os seus compromissos financeiros. Os ministros das Finanças não foram capazes de encontrar uma solução. Assim, o BCE foi colocado numa situação de perdedor-perdedor. Ao não intervir no mercado, o BCE corria o risco de ser responsabilizado por um colapso do mercado. Mas ao intervir, violaria o seu mandato por estar a comprar títulos do governo de forma seletiva – as suas ações seriam um substituto da política orçamental. O BCE tinha argumentos respeitáveis para intervir.
Mas tinha-se verificado que o «BCE tinha atravessado o Rubicão.” Claro, Júlio César tinha que continuar em frente e conquistar Roma. Mas não havia nenhuma necessidade de o BCE dizer que “no futuro e na mesma situação, agiria da mesma maneira. O BCE poderia ter tornado claro que se tratava de um acontecimento único e, portanto, que nunca mais iria acontecer. Caso contrário, é um caminho escorregadio”.
O facto é que, em 14 de maio de 2010, o BCE criou o seu Programa de Mercados de Valores Mobiliários (SMP), que o viu a comprar títulos do Estado no chamado mercado secundário das obrigações contra euros, que o BCE poderia criar a partir de “nada” como se caído do céu. O SMP também permitiu ao BCE comprar dívida privada em mercados primários e secundários.
Para entender isso de forma ainda mais clara, a decisão tomada significou que os investidores em títulos privados (incluindo bancos privados) podiam descarregar para o BCE dívida do Estado em dificuldade [como colateral para obter mais liquidez].
Assim, a ação também significa que o BCE era capaz de controlar os rendimentos da dívida porque, forçando o aumento da procura de dívida, o seu preço sobe e, como tal, as taxas de juros fixas ligadas à dívida caiem quando o valor nominal aumenta. As licitações, então, garantem que quaisquer emissões primárias adicionais seriam feitas à taxa que o BCE tinha considerado adequadas (ou seja, baixas).
Os alemães apresentavam-se hostis à prática do BCE. Por exemplo, o governador do Bundesbank dessa altura, um ultraconservador em termos de matéria orçamental, Axel Weber, que estava então a ser apontado para substituir Jean-Claude Trichet como chefe do BCE, tinha-se oposto veementemente. Ele renunciou ao seu posto como conselheiro do BCE.
O sucessor de Weber como chefe do Bundesbank, Jens Weidmann, manteve as críticas, embora de forma mais moderada.
Da mesma forma, outro membro da Comissão Executiva do BCE, Juergen Stark, também renunciou em protesto contra a SMP em novembro de 2011. Stark disse ao jornal austríaco Die Presse, que o BCE caminhava na direção errada, colocando de lado a fundamental cláusula de não-resgate que tinha sido a base da construção da UEM.
Issing também disse que o BCE tinha entrado em pânico por ter cedido à pressão externa à Europa.
Seja qual for a volta que se queira dar, o SMP foi inequivocamente um pacote de resgate orçamental.
O SMP chegou ao Banco Central para garantir que os governos problemáticos pudessem continuar a funcionar (embora sob a pressão da austeridade), em vez de caírem na insolvência.
Se se violou o artigo o 123 isso é discutível, mas largamente irrelevante.
A ideia de SMP era que o BCE resgatasse os governos através da compra da sua dívida e eliminando assim o risco de insolvência. O SMP demonstrou que o BCE foi colocado numa situação difícil.
Issing afirmou repetidamente que o BCE não tinha como responsabilidade resolver a crise mas, ao mesmo tempo, compreendeu que como banco emissor da moeda, era a única instituição da UEM que tinha a capacidade de fornecer uma solução.
Então, embora concorde com Issing que o BCE foi posto naquela situação pela conduta do Eurofin e da Comissão Europeia em geral, a verdade que fica é que o SMP salvou a zona euro do colapso.
Sem o SMP, a Espanha, Portugal, a Irlanda, a Grécia e um pouco mais tarde a Itália, teriam entrado em bancarrota devido aos movimentos nos mercados de obrigações privadas nessa altura.
A realidade é que o projeto mal concebido da zona do euro, que reflete a postura ideológica do neoliberalismo nas discussões de integração havidas nos anos 80 e seguintes, significava que a única capacidade orçamental efetiva na união monetária estava nas mãos do BCE.
Os constrangimentos do Pacto de Estabilidade e Crescimento sobre a política orçamental e a abordagem violentíssima adotada pela Comissão Europeia, em especial, pelo grupo dos Ministros das Finanças (Eurofin), deixaram os Estados-Membros impotentes para defender os interesses das suas economias, face a uma grande queda nas despesas não-governamentais
O projeto mal concebido da zona do euro, viu os Estados-Membros abdicarem do seu direito monopolístico de poderem emitir moeda e adotarem o que é de facto uma moeda estrangeira – o euro –, o que significa que os Estados-membros ficavam dependentes dos mercados obrigacionistas privados para o financiamento do défice.
Quando esses mercados obrigacionistas exigiam spreads cada vez mais elevados relativamente aos títulos alemães a 10 anos, os Bunds, para financiar as economias periféricas que estavam devastadas pelo declínio na produção e na despesa agregada, a única saída para o BCE foi utilizar a sua capacidade de emissão de moeda para resolver a crise.
A zona euro teria entrado em rutura em 2010 se o BCE não tivesse trabalhado em torno das restrições do artigo 123, comprando enormes volumes de dívida pública de países em dificuldades nos mercados secundários.
Isto não era tanto um reflexo da pressão política, o que implica que havia opções. Em vez disso, naquela época, o BCE era a única opção, dada a natureza defeituosa da arquitetura da zona euro.
Issing também fez algumas previsões nesta sua entrevista. A pergunta foi feita: “Por quanto tempo pode tudo continuar assim antes que algo de mais grave possa acontecer? Os políticos não querem agir… Então o que é que se segue?”.
A esta pergunta Issing respondeu:
Realisticamente, será um caso de confusão, de caminhar no escuro, às apalpadelas, passando de uma crise a outra, sempre em dificuldade. É difícil prever por quanto tempo isto pode continuar, mas não pode continuar indefinidamente. Os governos acumularão dívidas sobre dívidas – e então um dia, o castelo de cartas assim criado vai-se desmoronar.
Por outras palavras, a União Monetária está construída sobre bases frágeis e insustentáveis.
Issing considerou que o principal problema era que:
o risco moral é esmagador …
Este é um tema que é frequente em Issing.
No seu artigo de 30 de novembro de 2011 publicado pelo Financial Times – Moral Hazard will result from ECB bond buying– Issing invocou as ideias de Walter Bagehot (do seu livro de 1873, Lombard Street), considerado como um fundador do conceito de “banco central como credor de último recurso”.
Por conseguinte, qualquer empréstimo concedido ao sector bancário pelo banco central deve ser feito a uma taxa proibitiva para desencorajar a mentalidade de que o banco central pode sempre resgatar más decisões comerciais.
Issing não se opunha ao facto de o BCE adotar um papel de credor de última instância (de facto, considerava-o uma parte essencial do seu funcionamento). O seu ponto de discórdia era que o BCE “oferecia liquidez ilimitada ao sistema bancário… a taxas de juro extremamente baixas, e não a taxas penalizadoras”.
Ele defendeu nesse artigo que “o banco central será apanhado como refém pela política” se agir “como o comprador final da dívida pública”.
Como resultado:
Pressionando o BCE para o papel de comprador final da dívida pública de cada um dos estados membros, criar-se-á o maior risco moral alguma vez concebível.
Na entrevista, ele repetiu o tema de que o BCE se tornou cativo do processo político.
O ponto que ele não trata, nem mesmo reconhece, é que toda a criação da união monetária foi um artefacto político (ideológico). Este artefacto não tem nenhum fundamento, não assenta em nenhum quadro de raciocínio lógico sobre os sistemas monetários ou sobre os processos económicos como a convergência regional etc.
Não se trata de que os políticos tenham assumido o controlo da situação e que tenham levado uma arquitetura monetária supostamente sã para este desesperado beco sem saída em que se encontra.
A arquitetura está manchada desde o primeiro dia pelo neoliberalismo.
Se os fundadores da zona euro tivessem ouvido os conselhos daqueles que entendiam como os sistemas federais devem ser construídos e como devem funcionar, não teriam criado a União Económica e Monetária, na forma em que esta foi estabelecida em Maastricht no início dos anos 90.
Teriam compreendido que a natureza dos Estados-Membros que acabaram por passar a fazer parte da união monetária não era compatível com qualquer noção razoável de convergência. A História, a cultura, a linguagem, a estrutura económica, etc, militavam contra o facto de se colocarem todas estes países num acordo monetário comum.
Além disso, nenhum sistema federal pode operar efetivamente sem uma capacidade orçamental federal (despesas e impostos), o que está intimamente ligado à capacidade de emissão monetária e cambial do banco central.
O problema é que os processos políticos desde então tiveram de se tornar pragmáticos e muito, para salvar todo o edifício do colapso.
O SMP foi um exemplo.
O tratamento dos défices orçamentais francês e alemão em 2003 são outro exemplo.
A forma como a Comissão Europeia permitiu à Espanha violar as regras é outro exemplo.
Os políticos sabem que o sistema que criaram é impraticável na sua forma rígida. As regras que são constantemente citadas são também constantemente ignoradas.
Issing diz que:
O Pacto de Estabilidade e Crescimento mais ou menos falhou. A disciplina de mercado é eliminada pelas intervenções do BCE. Portanto, não existe nenhum mecanismo de controle orçamental por parte dos mercados ou da política. Isto contém, portanto, todos os elementos para transformar a União Monetária num desastre.
Pessoalmente concordo que o Pacto de Estabilidade e Crescimento falhou. Não é nem uma iniciativa de estabilidade nem de crescimento. Na verdade, é exatamente o oposto. Ao restringir os governos na sua flexibilidade para responder a grandes quebras na procura, os limiares orçamentais são impraticáveis.
Como vimos, reforçar as regras só veio piorar ainda mais a situação. Estas regras tinham que ser quebradas ou o sistema teria já entrado em colapso total.
O problema é que as regras têm sido aplicadas ou relaxadas de forma não sistemática, o que, de facto, exacerbou ainda mais a crise. No caso da Grécia, o endurecimento das regras tem devastado este país. No caso de Espanha, o relaxamento das regras permitiu que a economia voltasse a crescer, mas teve o efeito (planeado) de apoiar um governo conservador que defende a austeridade.
Além disso, se se tivesse permitido que os mercados obrigacionistas privados dominassem, na determinação dos preços e dos spreads, então, como se mencionou acima, a União Monetária ter-se-ia desmoronado em 2010.
Issing disse que:
O BCE está agora a comprar títulos das grandes empresas privadas que estão perto do lixo e os cortes na apreciação destes títulos dificilmente podem levar a uma redução do seu rating de um só nível… O declínio na qualidade das garantias elegíveis é um grave problema. O risco de reputação de tais ações por parte de um banco central teria sido impensável no passado.
Isto, aparentemente, nas suas próprias palavras, coloca o BCE num “plano inclinado e escorregadio” porque grande parte desta dívida irá gerar “perdas” para o banco.
No entanto, isto não é aquilo a que chamaria um “grave problema”. O BCE faria bem se anulasse toda essa dívida imediatamente. Haveria muito poucas consequências, se o fizesse.
O problema, em primeiro lugar, foi a falta de supervisão do sector bancário privado, quando este alimentou uma bebedeira de dívida no período anterior à crise.
Issing também acredita que falar de união política é perder tempo porque não isso não é agora um objetivo possível. Concordo que os Estados-Membros são tão diferentes na história e na cultura, etc., que nunca abdicarão da autonomia política da mesma forma que renunciaram à sua autonomia cambial.
Nesse sentido, as falhas básicas na união monetária estão além da solução política.
Mas, ao contrário do que eu penso, quem considere que a criação de uma tal capacidade orçamental federal é um requisito essencial, e que, na sua ausência, a zona euro deve dissolver-se, Issing mantém a visão de que:
Um tal sistema minaria a soberania orçamental dos Estados membros e violaria o princípio da não tributação sem representação.
Esta é a questão. Se os Estados-Membros querem manter a “soberania orçamental”, então têm de manter a sua soberania monetária.
Isso significa que a união monetária se dissolveria. A única outra opção é criar uma verdadeira capacidade orçamental federal fundamentada numa instituição democrática como o Parlamento Europeu para ser coerente com o “princípio da não tributação sem representação”.
Essa opção não irá acontecer.
Conclusão
Concordo com Issing quando considera que o que emergiu é um sistema que é inerentemente recessivo e deflacionista. O desemprego massivo é a norma e o aumento da pobreza é o seu resultado.
Em consequência, os processos políticos estão-se a mover cada vez mais para os extremos.
Uma dissolução da União Monetária feita de forma ordenada é o melhor caminho que agora se deve seguir.
Bill Mitchell, The Eurozone ‘house of cards’ to collapse – doomed from the start, texto disponível em:

http://bilbo.economicoutlook.net/blog/?p=34672