Syriza e a indemnização da guerra da França com a Prússia em 1871-73 (parte 1).
Por Michael Pettis, 4 de fevereiro de 2015
Seleção e tradução por Júlio Marques Mota
Reedição revista do artigo publicado em 23 de fevereiro de 2015 (https://aviagemdosargonautas.net/2015/02/23/entre-a-forca-assassina-de-um-golias-a-alemanha-e-a-rectidao-moral-de-um-david-a-grecia-de-syriza-syriza-e-a-indemnizacao-da-guerra-da-franca-com-a-prussia-em-1871-73-i/)
Parte 1 – Introdução
Os nacionalistas europeus têm-nos convencido e com sucesso, contra toda a lógica, que a crise europeia é um conflito entre nações, e não entre setores económicos.
Os nacionalistas europeus têm-nos convencido e com sucesso, contra toda a lógica, que a crise europeia é um conflito entre as nações, e não entre os sectores económicos. Ainda hoje o Financial Times traz um artigo em que discute as agruras do novo ministro das Finanças da Grécia, Yanis Varoufakis, dada a forma como ele encara a Alemanha:
Num pequeno mas significativo sinal das relações frias entre Berlim e o novo governo grego, o ministério das finanças alemão na semana passada criticou Varoufakis por não ter correspondido com uma chamada telefónica de cortesia habitual na sequência da sua nomeação. Wolfgang Schäuble, entretanto, alertou a Grécia para não tentar a “chantagem” sobre Berlim com exigências de redução da dívida.
Isto é absurdo. A crise da dívida europeia não é um conflito entre as nações. Todos os sistemas económicos – e certamente uma entidade tão grande e diversa como o é a Europa – geram volatilidade cujos impactos nas contas financeiras nacionais são mediados através de diferentes instituições políticas e económicas, entre as quais geralmente está a política monetária interna e o regime cambial. Com a criação do euro como moeda comum entre um grupo de países da Europa, a política monetária e o regime de câmbio já não podiam desempenhar os seus papéis tradicionais na absorção da volatilidade económica. Como resultado, durante grande parte da primeira década do euro, uma série de desequilíbrios profundos foram-se desenvolvendo entre os vários sectores da economia europeia. Porque as instituições económicas e políticas existentes na Europa tinham em grande parte evoluído em torno da soberania nacional de cada país, e também porque as histórias monetárias e da inflação de cada país tomado individualmente variaram tremendamente antes da criação do euro, era provavelmente quase inevitável que estes desequilíbrios se manifestariam sob a forma de desequilíbrios comerciais e de fluxos de capitais entre os países. (1)
Temos uma grande experiência na história moderna com os tipos de desequilíbrios que a Europa sofreu e continua a sofrer, e dos precedentes históricos três coisas são claras. Em primeiro lugar, os desequilíbrios que levaram, eventualmente, à crise atual tiveram as suas raízes nas transferências ocultas entre diferentes sectores económicos dentro da Europa, e não entre os países. É só por causa das diferenças institucionais profundas entre os países-membros que estes desequilíbrios se manifestaram em grande parte sob a forma de desequilíbrios comerciais entre os diferentes países da Europa [nt. 1]. Estas transferências ocultas forçaram artificialmente a subida das taxas de poupança nalguns países e, por razões que já discutimos noutros textos, é uma questão de necessidade, bem entendida em economia (embora frequentemente esquecida pelos economistas), que taxas artificialmente altas de poupança numa parte de um sistema económico devem resultar em investimentos mais elevados, sejam eles produtivos ou improdutivos (nos países avançados é geralmente o último caso) ou então artificialmente em baixa poupança numa outra parte desse sistema.
Em segundo lugar, as distorções profundas na poupança e no investimento, historicamente, têm quase sempre levado a um aumento insustentável da dívida, e na Europa isso não foi exceção. Ao longo de muitos anos a dívida europeia aumentou mais rapidamente do que a capacidade europeia de pagamento do serviço da dívida, mas a diferença entre os dois valores não foi identificada nem depreciada e, em vez disso, este facto manifestou-se sob a forma de encargos excessivamente elevados e crescentes de dívida cujos custos têm, eventualmente, de ser assumidos.
Em terceiro lugar, e mais inquietante ainda, foi sempre fácil para os extremistas e para os nacionalistas explorarem os sentimentos de queixa dos vários grupos económicos para distorcer o significado da crise. Uma maneira é transformá-la num conflito de classes e uma outra maneira é transformá-la num conflito entre Estados-membros. Resolver uma crise da dívida não envolve nada mais do que afetar as perdas. Na crise atual estes custos têm que ser atribuídos aos diferentes sectores económicos dentro da Europa, mas na medida em que a atribuição dos custos pode ser caracterizada como práticas na atribuição nacional dos custos, é fácil transformar um conflito económico num conflito nacional.
A maioria das crises cambiais e de dívida soberana da história moderna representam, em última instância, um conflito sobre a forma como os custos devem ser distribuídos entre dois grupos diferentes. De um lado, estão os credores, os proprietários de imóveis e de outros ativos, e as empresas que beneficiam das distorções cambiais existentes. De outro lado, estão os trabalhadores que as pagam sob a forma de baixos salários e de desemprego e, eventualmente, os aforradores nacionais da classe média e os contribuintes que pagam na forma de uma erosão gradual do seu rendimento ou do valor das suas poupanças. Historicamente, durante as crises cambiais e de dívida soberana os partidos políticos têm representado um ou o outro destes grupos, e sejam eles de esquerda ou de direita, eles são capazes de captar a confiança e a fidelidade destes grupos.
À exceção da Grécia, na Europa, os principais partidos políticos de ambos os lados do espectro político têm até agora optado por manter o valor da moeda e proteger os interesses dos credores [nt. 2]. Têm sido os partidos extremistas, seja à direita ou à esquerda, a atacar a união monetária e os interesses dos credores. Em muitos casos, esses partidos são nacionalistas extremistas e opõem-se à existência da União Europeia. Se tiverem sucesso em tomar o controlo do debate, a União Europeia entrará quase certamente em colapso, e vai demorar décadas, se alguma vez isso voltará a acontecer, a recriar de novo a União Europeia.
Mas embora as distorções na taxa de poupança estejam na raiz da crise europeia, muitos, se não a maioria, dos analistas falharam em entender o seu porquê. Até agora, muitos milhões de europeus compreenderam a crise, principalmente em termos de diferenças de carácter nacional, de força e virtude económica, e como uma luta moral entre prudência e irresponsabilidade. Esta interpretação é intuitivamente atraente, mas é quase que totalmente incorreta, e porque o custo para salvar a Europa é o perdão da dívida, a Europa deve decidir se este é um custo que vale a pena pagar (eu acho que vale). Mas, na medida em que a crise europeia é vista como uma luta entre os países prudentes e os países irresponsáveis, é extremamente improvável que os europeus estejam dispostos a pagar esse custo. Como os meus leitores habituais o sabem, eu geralmente refiro-me aos dois diferentes grupos, o dos países credores e o dos países devedores, como representados pela “Alemanha” e pela “Espanha”, respetivamente, em que o primeiro é assim tomado por razões óbvias e este último porque foi onde nasci e cresci e é o país eu conheço melhor. Vou continuar a fazê-lo neste texto.
É uma ironia terrível que, embora a visão de que a crise europeia é um conflito entre a Alemanha prudente e a irresponsável Espanha que poderá facilmente destruir a construção europeia, esta visão obscureça terrivelmente a real experiência da Europa e possa estar a criar uma falsa impressão de irresponsabilidade. Para ver o porquê desta nossa afirmação, é-nos então útil começar com um pouco de história.
Há quase 150 anos, “a Gloriosa Revolução” da Espanha de 1868 viu a deposição de Isabel II e o colapso da primeira República Espanhola. Mais importante ainda para os nossos objetivos, também desencadeou na Europa continental um conflito sobre a sucessão ao trono espanhol que, em última análise, por meio de uma série de eventos tortuosos, resultou na declaração de guerra da França contra a Prússia em julho de 1870.
Isto foi amplamente visto em França como uma possibilidade em ajustar contas sobre a vitória da Prússia durante as guerras napoleónicas mas, no final, as fantasias revanchistas da França saíram-lhe frustradas. No início de 1871, o exército francês foi duramente derrotado pela Prússia, que naquela época tinha unificado os vários estados alemães, estabelecendo o Império alemão com o rei da Prússia à frente.
Houve pelo menos dois resultados importantes derivados da derrota militar da França. De menor importância para o nosso propósito, mas interessante não obstante para aqueles obcecados com o modernismo e com a história cultural da França no final do século 19, como eu, a Guerra Franco-Prussiana será sempre lembrada pelo seu papel na subsequente criação e no colapso da Comuna de Paris. Este acontecimento deixou a sua marca no pensamento de muitos acarinhados artistas e intelectuais, de Manet e Rimbaud a Proudhon e Haussman.
Mas a outra, para mim, muito interessante consequência, e na verdade a mais relevante, foi a indemnização francesa paga à Prússia. Como parte do privilégio de conquista e como condição para acabar com a ocupação de grande parte do norte da França, Berlim exigiu o pagamento das reparações de guerra originalmente propostas no valor de mil milhões de francos-ouro, mas que eventualmente cresceram para uns surpreendentes 5 mil milhões, em parte, pelo menos, por causa de uma decisão expressa por Berlim de impor uma carga suficientemente alta para permanentemente inviabilizar qualquer possibilidade de recuperação da economia francesa.
Para se ter uma ideia da dimensão destes pagamentos, geralmente referidos na literatura como a indemnização francesa, este valor era igual a quase 23% do PIB da França em 1870 (2). A economia da Alemanha, naquele tempo, de acordo com Angus Maddison, era apenas um pouco maior do que a da França, de modo que a Alemanha era a beneficiária de uma transferência de mais de três anos igual a cerca de 20% do seu PIB anual. Este valor era, pois, uma transferência extraordinariamente elevada. Penso que a indemnização francesa tenha sido o maior pagamento de reparações de guerra na história – as reparações alemãs após a Primeira Guerra Mundial eram em princípio maiores, mas eu não acho que a Alemanha realmente nunca pagou um valor próximo deste montante, e certamente que não no que respeita ao seu PIB.
(continua)
Texto original em http://carnegieendowment.org/chinafinancialmarkets/58983
Notas:
(1) Os próprios desequilíbrios ocorreram sob formas que são do conhecimento geral e de que existem muitos precedents históricos. Discuto isso no meu livro, The Great Rebalancing: Trade, Conflict, and the Perilous Road Ahead for the World Economy (Princeton University Press, 2013). Estou longe de ser o único que o fez. O excelente livro de Martin Wolf, The Shifts and the Shocks: What We’ve Learned—and Have Still to Learn—from the Financial Crisis (Penguin Press, 2014), apresenta uma representação esquemática das causas da crise, e em The Leaderless Economy: Why the World Economic System Fell Apart and How to Fix It (Princeton University Press, 2013), Peter Temin e David Vine apresetnam com grande clareza o quadro dentro do qual os desequilíbrios internos da Europa tinham inexoravelmente de levar aos atuais resultados.
(2) Michael B. Devereux e Gregor W. Smith, “Transfer Problem Dynamics: Macroeconomics of the Franco-Prussian War Indemnity”, August, 2005, Queen’s University, Department of Economics Working Papers 1025
________
[1] Nota de Tradutor. A seguir ao artigo de Michael Pettis retomaremos este tema com grande profundidade porque é por aqui e pela presença dos países emergentes que passam os desequilíbrios reais de que sofrem diversos países na Europa, sobretudo os países ditos periféricos da UEM.
[2] Nota de Tradutor. A política de austeridade tem sido a mesma, seja conduzida por socialistas ou sociais-democratas (o que é equivalente) ou seja por partidos conservadores ou ainda mais à direita. Vejam-se os casos da Inglaterra (aliança conservadores-liberais), da França (PS), Espanha (conservadores) Itália, democratas, o que resta do velho PCI, mas que nada tem a ver com ele, Portugal com Sócrates e depois com Passos Coelho, Bélgica, uma coligação muito à direita.