A ALEMANHA, O SEU PAPEL NOS DESEQUILÍBRIOS DA ECONOMIA REAL. O OUTRO LADO DA CRISE DE QUE NÃO SE FALA. UMA ANÁLISE ASSENTE NA DIVISÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO [1] – Uma coleção de artigos de Onubre Einz. III – A economia alemã, um crescimento à americana personalizado? (parte 1) .

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Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

images eua alemanhaIII – A economia alemã, um crescimento à americana personalizado? (parte 1), por Onubre Einz

 

 

Publicado por criseusa.blog.lemonde em 29 de abril de 2013

Reedição revista dos artigos publicados em A Viagem dos Argonautas em 29 e 30 de março de 2015 (vd. https://aviagemdosargonautas.net/2015/03/29/a-alemanha-o-seu-papel-nos-desequilibrios-da-economia-real-o-outro-lado-da-crise-de-que-nao-se-fala-uma-analise-assente-na-divisao-internacional-do-trabalho1-iii-a-economia-ale/ https://aviagemdosargonautas.net/2015/03/30/a-alemanha-o-seu-papel-nos-desequilibrios-da-economia-real-o-outro-lado-da-crise-de-que-nao-se-fala-uma-analise-assente-na-divisao-internacional-do-trabalho1-iii-a-economia-ale-2/)

 

Continuamos a nossa pequena série de artigos sobre a Alemanha. Interessa-nos a distribuição do rendimento entre os alemães. A nossa questão permanece a mesma. Os sintomas de declínio estão inscritos na evolução da economia alemã desde há uma vintena de anos. O modelo de referência permanece para nós a economia americana que realizou o percurso completo, do sucesso exemplar à depressão, em meio século. Daí o título do nosso texto: A economia alemã, um crescimento à americana personalizado?

Não é nossa intenção forçar o traço: não sustentamos que a Alemanha esteja em declínio acentuado, o que seria absurdo à luz dos dados económicos presentes. Defendemos antes a ideia de que as reformas de Schröder e a política de Merkel provocaram o estabelecimento de características originais de crescimento que conduzirão, provavelmente a prazo, ao declínio económico da Alemanha. Estas características foram colocadas entre parêntesis pela crise. Apareceram, pois, pontualmente. Convirá não subestimá-las por este aparecimento ser pontual, a presença destas características devem levar-nos a refletir sobre elas.

Na nossa opinião a presente depressão é sinal de uma mudança de base da dinâmica do capitalismo em direção à Ásia. A área do Atlântico Norte é, pois, levada a sofrer uma contração da sua posição económica no mundo. Daí uma perspetiva sobre a Alemanha inscrita numa perspetiva de longo prazo. Não sucumbiremos às sereias da atualidade e não amplificaremos traços recentes. Tentamos, em vez disso, propor algumas chaves para compreender essa dinâmica de longo prazo.

Nos nossos dois textos anteriores, vimos fortes semelhanças entre os EUA e a Alemanha. Podemos resumi-lo assim: a parte dos rendimentos da propriedade do capital (juros, dividendos, rendimentos da propriedade direta das empresas) aumentou em detrimento do investimento e dos rendimentos do trabalho. Para manter a competitividade do país, as empresas negligenciaram o investimento no imobiliário empresarial e privilegiaram o investimento nos meios de produção em sentido estrito. Os rendimentos do trabalho conheceram uma contração dos rendimentos salariais mais forte do que as prestações indiretas.

Formulamos a hipótese de que existe um profundo questionamento desde os anos 2000 do modelo económico social de mercado. É o social que desapareceu discretamente. Em contrapartida, apercebemo-nos por diversos sinais de que as elites económicas beneficiaram com esta evolução. Os fluxos líquidos de capitais têm sido cada vez mais dominados pelas aplicações financeiras, e os Investimentos Diretos no estrangeiro [IDE] são cada vez menos importantes.

Defendemos a ideia de que se tratava de uma financeirização por procuração permitindo às famílias e empresas alemãs eximirem-se a desenvolverem um mercado financeiro massivo e do endividamento generalizado que o acompanha, simultaneamente captando uma parte dos frutos das aplicações financeiras no exterior (Saldo líquido dos juros, lucros e dividendos entre a Alemanha e o resto do mundo).

Nesta perspetiva, o enriquecimento crescente dos decis superiores das famílias é realizado por um mecanismo interno e externo: A cadeia de valor da produção industrial funciona como um extrator de riqueza sobre os países que produzem os elementos montados na Alemanha cuja maior parte é captada por uma reduzida fração das famílias dos percentis superiores (Top ten), e a ligação da Alemanha ao mercado financeiro mundial desempenha o mesmo papel. A nível nacional, os sinais de pressão do enriquecimento das famílias mais ricas sobre a afetação dos recursos são a lógica do investimento produtivo, a falta do investimento nacional nas infraestruturas, o declínio da participação da indústria nacional no PIB (made by e não mais made in Germany) e as variações do emprego industrial, as exportações de capitais financeiros em detrimento dos IDE, características que criam a financeirização por procuração.

Também defendemos a ideia de que este processo de declínio à escala de menos de uma geração foi suspenso pela crise. Vamos, por conseguinte, estudar a evolução dos rendimentos dos alemães para determinar se esta janela de declínio existe realmente. Se a nossa tese for verdadeira, ter-se-á produzido uma forte polarização dos rendimentos a partir do estabelecimento da Agenda 2010 [aplicada por Schröder entre 2003 e 2005]. E esta polarização deverá ser vista como uma aceleração de um processo que, noutros lugares, teve períodos de tempo mais longos. Não se trata de falar de um declínio efetivo da economia alemã mas de elementos que permitem falar de um fenómeno ainda embrionário [in nuce].

 

A – O coeficiente de Gini e a repartição do rendimento.

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O coeficiente de Gini da Alemanha indica claramente uma ruptura. De 25,8 em 2001, desde 2002 iniciou um aumento significativo até 2007. Estagna depois a um nível elevado (cerca de 29).

O que é notável na evolução do coeficiente de Gini, é a velocidade da subida das desigualdades na repartição do rendimento entre os alemães. Entre 2000 e 2007-2008, o aumento do coeficiente é de mais de cinco pontos.

A subida nas desigualdades na Alemanha foi, pois, forte e rápida. Para memória, este coeficiente estava entre 1984 e 2000 à volta de 24-26 pontos. (vd.  http://www.inequalitywatch.eu/spip.php?article114&lang=en )

Para desenvolvimentos ulteriores, recorremos aos dados do Eurostat. Estes dados estão incompletos para os anos 2002-2004. Todavia, foi nesta época que a Agenda 2010 foi estabelecida e que os seus primeiros efeitos se fizeram sentir. Lamentamos também que o Eurostat não apresente os rendimentos em valor do 5º quintil (Top 20 dos agregados famíliares), do 10º decil (Top ten dos agregados familiares) e do 100º centil (Top 1% dos agregados familiares). O Eurostat oculta voluntariamente os resultados económicos de 20 anos de política europeia na Alemanha e na Europa. Um escândalo!!! Utilizando as partes de rendimento expressas em percentagem, pode-se conseguir responder às questões que levantámos.

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O exame por quartil de rendimento mostra a lógica geral da evolução dos rendimentos.

Até 2001, a repartição das partes de rendimento indica uma progressão do primeiro quartil das famílias (11 a 13 % entre 1995 e 2001) e a estabilidade do segundo quartil (cerca de 25-26 %). O terceiro quartil também é estável, pelo menos até 2001 (20 %). É o quarto quartil que recua muito ligeiramente entre 1995 e 2000 (- 2 %).

O resultado das políticas de reforma de Schröder foi o de modificar muito significativamente a repartição do rendimento entre os Alemães. O quarto quartil apropria-se de uma parte crescente do rendimento: +3,8 % entre 2001 e 2008. Não se trata de uma recuperação. Isso teria consistido em voltar à percentagem de 1995 (43 %) retomando 2 % da parte do rendimento. Trata-se antes de um crescimento acelerado que é pelo menos de 1,8 %, feita a dedução da recuperação de 1995 (+ 2 %). Os outros quartis sofreram perdas de rendimento inversamente proporcionais à sua riqueza: –0,4/-1 % para o terceiro quartil entre 1995 e 2008, -1,1/1,3 % para o terceiro quartil (2000 / 2007-2008) e –2,1 % / -1,9 % para o quarto quartil (2001- 2007-2008). A situação existente antes de 2000-2001 foi, pois, invertida a favor do enriquecimento das camadas superiores da população.

Deu-se, portanto, uma transferência rápida de partes do rendimento, dos três primeiros quartis (75 % dos alemães) para o quarto quartil. No final, deu-se de um lado enriquecimento e do outro queda na parte dos rendimentos.

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A análise por quintil é interessante porque permite fazer uma comparação com os EUA. Entre 1975 e 2007, as famílias americanas dos quatro primeiros quintis (percentil 1-80) cederam quase 7 pontos de rendimento a favor do quintil superior (Top 20). Os percentis 81-100 comeram literalmente a parte dos rendimentos das famílias dos 4 quintis inferiores: 0,20 à 0,21 % da quota do rendimento por ano, durante 32 anos.

Não iremos refazer o estudo do gráfico em detalhe, repetir-nos-íamos. Preferimos concentrarmo-nos nos tempos e nas velocidades de transmissão das partes de rendimento entre quintis para os comparar com os dados americanos.

Podem-se defender duas teses muito diferentes.

1ª Tese: o 5º quintil perdeu 2 % da parcela do rendimento nos anos 90 e recuperou-os nos anos 2000. Um pequeno problema: sendo de 37 % a participação no rendimento em 1995, o 5º decil conseguiu mais do que recuperar a sua posição de 1995. Ele passou para 38,5 em 2007 e 38,6 em 2008, ou seja, um aumento em 6-7 anos de 1,5-1,6 %. O ritmo de progressão para além da recuperação (2 %) foi de 0,20-0,22 % ao ano.

A Alemanha conheceu, portanto, uma aceleração das desigualdades de rendimento igual à média anual americana dos anos 1975-2007.

2ª tese: considera unicamente as evoluções recentes, ou seja, os anos de 2002 e seguintes. Nesta tese considera-se que a agenda 2010 é uma ruptura não permitindo destacar a tese de recuperação para o quintil superior.

Parece que entre 2001 e 2007-2008, o 5º quintil ter-se-á apropriado de 3,5-3,6 % do rendimento, ou seja, cerca de 0,6 % do rendimento adicional por ano. É três vezes o ritmo anual americano de deslocamento do rendimento para o quintil superior que os EUA conheceram entre 1975 e 2007. A tese de uma aceleração acentuada das desigualdades na repartição da riqueza está, pois, comprovada se se considera que a agenda 2010 marca uma mudança profunda na história alemã.

Do mesmo modo que nos EUA, verificou-se que as transferências de rendimento tendem a aumentar à medida que se desce na escala social: o quarto quintil foi poupado; foram o terceiro quintil (-0,4/-0,5 %), o segundo quintil (-1,3 / -1,4 %) e o primeiro quintil (-1,6 %) que pagaram os tributos mais pesados. A única diferença com os EUA, é que o primeiro quintil foi mais poupado nos EUA.

As novas diferenças na repartição do rendimento parecem, portanto, trazer um início de confirmação à tese de uma transformação insidiosa do modelo de crescimento de que apresentámos os principais traços na nossa introdução.

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A análise revela um traço característico de uma americanização do crescimento alemão. Nos EUA o modelo de crescimento – passando pela subida dos rendimentos elevados e pela queda da parte respeitante aos outros decis e do investimento produtivo – fez surgir uma verdadeira sobre-reação do top ten das famílias que se apropriam de uma parte esmagadora dos rendimentos do 5º quintil [top 20 das famílias]. Acontece o mesmo na Alemanha: o top ten conheceu um crescimento de + 3,4 % (2000-2008) e os decis 81-90 um aumento muito pequeno (+0,3 %).

Este fenómeno é típico de uma aceleração considerável do enriquecimento dos mais ricos, sendo acompanhado dos fenómenos que assinalámos na nossa introdução. Para acompanhar a demonstração que se segue, é necessário recordar que em 1975, 80 % das famílias americanas dispunham de 57 % do rendimento e os 20 % das famílias tinham os 43 % restantes. A repartição em 2007 era de cerca de 50/50.

As elites económicas alemãs parecem ter sido apanhadas por uma paixão de rápido enriquecimento. À velocidade a que foi feita a reestruturação da repartição do rendimento, as elites económicas do Top ten terse-iam apropriado de 6 % do rendimento por decénio, se não tivesse ocorrido a crise, quase tanto como nos EUA em três décadas, e teriam ultrapassado a barra dos 30 % do rendimento em 2017.  O top 20 teria, ao mesmo ritmo, ultrapassado a barra dos 40 % em 2017 e atingido os 45 % em 2027. A situação americana – com tudo o que ela implica para a economia – estava em fim de linha, em que o investimento produtivo teria acabado por pagar o preço desta sede de enriquecimento. Os elementos de americanização do crescimento cuja presença assinalámos não estão aí por acaso. Eles são a antecâmara do declínio…

A crise, maldita crise, veio parar um processo que teria colocado a repartição do rendimento muito próxima da dos EUA em 2006. Poderão objetar-nos, sem dúvida, que este processo não teria podido chegar ao seu termo por razões sociais, porque a Alemanha não é os EUA. É provável. Neste texto queremos simplesmente mostrar que o processo foi desencadeado e com a crise ficou em suspenso.

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A análise por decil mostra, sob outra forma, quem são os perdedores da repartição do rendimento e quem são os ganhadores. Os perdedores são os decis 1,2,3,4,5, ou seja, 50 % dos Alemães. O 6º, 7º e 8º decis tiveram evoluções contrastadas que lhes permitiram conservar, grosso modo, a sua parte no rendimento.

Mas o mais importante é que a crise, na verdade, suspendeu um processo que a prazo seria negativo para a economia alemã, cujas elites económicas estariam em vias de destruir o modelo por espírito de acumulação e ganância. É uma característica muito expandida na área do Atlântico Norte:  a aceleração das transferências de rendimento e a acumulação de patrimónios para o topo da pirâmide social são a expressão de um salve-se quem puder das elites que organizam em seu proveito o naufrágio programado das economias nacionais que os sustentam.

(continua)

Texto original em http://criseusa.blog.lemonde.fr/page/11/

 

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