A ALEMANHA, O SEU PAPEL NOS DESEQUILÍBRIOS DA ECONOMIA REAL. O OUTRO LADO DA CRISE DE QUE NÃO SE FALA. UMA ANÁLISE ASSENTE NA DIVISÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO [1] – Uma coleção de artigos de Onubre Einz. V – Será a Alemanha o modelo para uma saída da crise através das exportações? Uma análise desmistificadora (parte 1)

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Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

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V – Será a Alemanha o modelo para uma saída da crise através das exportações? Uma análise desmistificadora (parte 1), por Onubre Einz

 

Publicado por criseusa.blog.lemonde.fr em 23 de maio de 2013

Reedição revista dos artigos publicados em A Viagem dos Argonautas em 5 e 6 de abril de 2015 (https://aviagemdosargonautas.net/2015/04/05/a-alemanha-o-seu-papel-nos-desequilibrios-da-economia-real-o-outro-lado-da-crise-de-que-nao-se-fala-uma-analise-assente-na-divisao-internacional-do-trabalho1-v-sera-a-alemanha-o-modelo/ e https://aviagemdosargonautas.net/2015/04/06/a-alemanha-o-seu-papel-nos-desequilibrios-da-economia-real-o-outro-lado-da-crise-de-que-nao-se-fala-uma-analise-assente-na-divisao-internacional-do-trabalho1-v-sera-a-alemanha/)

 

Continuamos o nosso pequeno estudo sobre a Alemanha, colocando desta vez uma grande questão. Será a Alemanha um exemplo a seguir? A saída da crise na Europa reduz-se assim a um aumento da competitividade, supondo uma baixa das despesas públicas e uma reforma dos mercados de trabalho. O convite é claro: se os europeus querem sair da rotina, eles devem imperativamente inspirar-se nas reformas Schröder e no exemplo da virtuosa Alemanha.

É assim que a Alemanha transforma uma crise da zona euro que ela abriu ao exagerar a política tradicional da desinflação competitiva, em crise orçamental ao impor por toda a parte uma política de rigor ou de austeridade (os espíritos fortes e aqueles que são muito hábeis e lógicos farão a distinção entre uma e outra). Porque se há um país que pode ser considerado responsável por esta crise é a Alemanha. A moderação salarial e a redução de encargos sociais impulsionaram as exportações alemãs e estimularam o crescimento alemão. Na altura em que os desequilíbrios comerciais beneficiavam a economia alemã, os países cigarras não foram severamente chamados à ordem, a hora dos cortes orçamentais exigentes ainda não tinha chegado. Nem a Alemanha, nem a Comissão Europeia estavam preocupadas com estas questões.

Certamente, as agendas dos conselhos europeus — e outras reuniões — deixam de fora as suas questões embaraçosas: não suporiam que se desse conta que, na última década, o crescimento alemão tivesse sido feito às custas dos seus vizinhos europeus através dos confortáveis excedentes da balança comercial e de pagamentos. Deveria ter então chegado a hora da solidariedade. Mas no relógio da Alemanha, as agulhas nunca devem marcar essa hora.

No texto que se segue, continuamos essencialmente fiéis a uma questão que explica bem que há razões para se fazer uma série de textos sobre a Alemanha e que tem aqui o seu lugar. É que a Alemanha, ao constituir-se como modelo de contraposição ao modelo americano, parece prometer um crescimento pelas exportações que permitiria viver em harmonia com a globalização. Seguir as lições da Alemanha garantir-nos-ia a saída das atuais dificuldades, evitando estas presentes questões bem embaraçosas. Estamos convencidos que esta representação esconde, na verdade, uma outra pista: o de considerar a hipótese de um declínio da zona atlântica. Os sinais deste declínio estão patentes nos EUA, com os desequilíbrios externos e os desequilíbrios de crescimento dos EUA a serem inseparáveis dos trinta anos de laissez-faire que arrastou a economia americana para a depressão americana presente.

Para lá da ideia do crescimento alemão adaptando o modelo americano com as cores da Alemanha, a análise do comércio externo contraria um tanto a ideia de uma saída da crise pelas exportações tendo como referência o modelo alemão. Com efeito, os bons resultados do modelo de referência não são assim tão mirabolantes como nos querem fazer crer.

No presente trabalho fixamo-nos em três objetivos: A) lembrar, numa parte introdutória, a dinâmica do comércio alemão colocando no centro da nossa análise a balança comercial da Alemanha, balança esta que está no cerne da dinâmica de crescimento através das exportações e do poder alemão; B) olhar, a seguir, para o desempenho por continentes e pelos grandes conjuntos regionais de comércio de mercadorias com a Alemanha. A Alemanha é, com efeito, apresentada como o país que tira partido da dinâmica dos países-e regiões emergentes devido à estrutura das suas exportações dominadas, para sermos breves, por bens de capital e automóveis. Veremos que uma análise precisa dos números relativiza fortemente esta tese; C) a seguir, as conclusões a que se chega com as análises feitas em A e B levam a interrogarmo-nos sobre a generalização e a transposição do modelo alemão para outros países europeus. Neste ponto, seremos levados a discutir uma série de ideias muito difundidas que não são sustentáveis como iremos mostrar.

Num contexto onde a referência à Alemanha é assumida como a referência absoluta nas palavras de muita gente (nós hesitamos em dizer na cabeça de muita gente), acreditamos que uma análise problemática da situação é a única que pode fazer justiça aos sucessos alemães bem como aos seus próprios limites. O modelo alemão não deve ser afastado (não deve ser recusado em bloco) nem adulado. A economia alemã deve ser considerada como tendo a dignidade para ser objeto de uma análise livre de preconceitos. O presente texto não tirará nenhuma conclusão definitiva pró ou contra; considera-se que o seu objetivo fica alcançado se com ele se conseguirem dissipar falsas ideias e levantar verdadeiras questões.

Uma questão técnica antes de entrar no cerne da questão. O Bundesbank coloca estatísticas online tanto em Ecu (até 1998), como em Euros (a partir de 1999 a 2012). Portanto, fomos obrigados a expressar os dados dos saldos comerciais em percentagem. Esta abordagem não resulta do nosso trabalho, simplesmente avisamos para a potencial surpresa do leitor.

 

A – Os dados gerais por continente

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Os dados gerais do comércio alemão mostram que o essencial dos excedentes comerciais alemães vêm da europa. A contração destes excedentes no decurso dos anos de 1990 levou a Alemanha a fazer as reformas da agenda 2000. O saldo comercial da Alemanha em relação à Europa recuperou atingindo os níveis muito elevados anteriores à reunificação. A crise retomou os efeitos positivos desta recuperação iniciada em 2001. Esta melhoria de comportamento será discutida em maior profundidade quando abordarmos o comércio da Alemanha com a Europa (veja abaixo B 3° e 4°). A recuperação dos anos 2000 coloca, na verdade, o problema da natureza da operação que levou à contração dos custos laborais que impulsionaram as exportações alemãs e se o declínio na década de 1990 teria sido o de um reequilíbrio. É colocar a questão da política de Schröder em termos críticos sobre a qual afirmámos que ela não correspondia a nenhum enfraquecimento real sensível da Alemanha durante o primeiro mandato de Schröder.

A análise da balança comercial revela o papel marginal de dois continentes: a África e a Oceânia. Não é com eles que a Alemanha poderá obter excedentes comerciais importantes. A balança comercial da Alemanha aumenta com estes dois continentes desde o início do século XXI sem que este crescimento seja significativo no total do comércio externo da Alemanha.

São dois outros continentes, a América e a Ásia, aqueles que desempenham um papel motor. A balança comercial com a América teve uma tendência de expansão até 2002, a contração deste saldo é sensível em seguida e até à crise; não é senão em 2011 que a balança comercial com a Americana aumenta novamente devido ao colapso concomitante da balança comercial com a Europa. A balança comercial com a Ásia indica uma vontade alemã antiga de corrigir os desequilíbrios comerciais com este continente. Esta correção conheceu, antes e depois de 2000, desenvolvimentos muito aleatórios. A tendência para a estabilização do défice começou a aparecer depois e manteve-se ao longo dos anos de 1990-2010. É difícil avaliar a passagem para uma situação de excedente da balança comercial com a Ásia desde o final de 2011. Isto só reflete pontualmente a contração na atividade da Alemanha que pesou nas importações, devido à crise europeia. Pode-se também ver no papel crescente da balança comercial com o continente americano um efeito da política artificial de retoma de crédito pela Administração Obama.

Se fizermos uma correlação entre as reformas de Schroeder e os resultados comerciais da economia alemã, parece que não há nenhuma correlação clara que possa ser feita pelo menos até a crise, com exceção da Europa. As mudanças no equilíbrio da balança comercial são aleatórias com a Ásia e com a América nos anos que antecederam a crise, sendo mesmo registados desempenhos menos satisfatórios com o continente americano.

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Se a balança comercial constitui um elemento do enriquecimento líquido de um país desde que esse saldo seja, é claro, positivo, as exportações determinam a capacidade de um país em aumentar o seu nível de riqueza material através da importação de mercadorias, uma vez assegurada a cobertura do valor destas pelas suas exportações. É assim que os povos tiram vantagens do comércio internacional, especializando-se como mostrou Ricardo, no século XIX.

Este gráfico permite avaliar o peso esmagador da Europa como destino das exportações alemãs. Os anos de 1990 também são marcados por um ligeiro (e muito pouco perturbador) declínio das exportações em direção ao continente europeu. Mas a tendência é rapidamente corrigida na década de 2000 pela razão que sabemos. Por causa da crise, o peso de uma Europa em plena crise só pode diminuir.

Observa-se novamente o papel marginal e quase constante da África e da Oceânia.

O esforço para desenvolver o comércio com a Ásia parece conhecer um verdadeiro sucesso, sucesso tanto mais notável quanto a balança comercial se tornou recentemente excedentária. Uma análise mais precisa não deixará de sublinhar que o nível alcançado hoje é ligeiramente superior ao que foi alcançado na segunda parte da década de 1990. Mesmo sendo notável, não deve ser sobrestimado.

Vejamos ainda a quota das exportações para a América. Essas exportações têm estado a perder importância relativa.

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Em última análise, a crise indica a queda das exportações alemãs para a Europa e uma transferência para o continente americano e asiático para sustentar o crescimento, enquanto o oposto era verdade antes da crise. A maior parte da progressão do crescimento da Alemanha era conseguido com a Europa, enquanto os continentes americano e asiático viam as suas dinâmicas mais fracas cavarem um enorme delta com a Europa.

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Esta constatação é de facto repetida ao analisar-se a balança comercial da Alemanha. A Europa, após a afirmação do período 2001-2007, perde o seu papel de motor a favor das trocas comerciais com a Ásia e o continente americano. Se, em termos de financiamento das importações, o delta com a Europa continua elevado, quando se consideram as exportações este reduz‑se fortemente com o saldo da balança comercial.

É isto que pode justificar que a Alemanha sirva de modelo na Europa: pois não consegue ela alcançar o facto notável de se expandir comercialmente no mercado asiático e no mercado americano, enquanto a Europa está em crise? Não obtém ela excedentes comerciais com todos os continentes do mundo, incluindo a Ásia?

Percebe-se que a Alemanha possa ser destacada e servir de exemplo para todo o continente europeu. Sair da crise consistiria em apertar o cinto, moderar os apetites salariais e a despesa pública para reencontrar o crescimento. Basta simplesmente examinar os resultados do desempenho alemão para percebermos isso. Ora, os dois últimos gráficos confirmam o que dissemos anteriormente: a evolução contrária à da Europa. As exportações alemãs para fora da Europa e o equilíbrio da balança comercial não foram impulsionadas significativamente pelas reformas Schroeder. Foi necessário a crise chegar para que estas melhorassem fortemente para a Ásia e em muito menor grau para a América; no entanto, curiosamente é sob Merkel que as reformas Schröder e os seus efeitos profundamente inigualitários assim como o seu papel na evolução da competitividade do país foram suavizadas. O apelo a apertar o cinto sofre um golpe.

Note-se que esta forte melhoria é tanto mais meritória quanto o euro conserva um valor elevado num mundo em que as desvalorizações das outras moedas (iene e dólar) são correntes. Se somos críticos de uma certa mitificação da Alemanha, devemos, mesmo assim, reconhecer os seus resultados, o seu desempenho, desde que este não seja sobrestimado.

(continua)

Texto original “L’Allemagne est-elle le modèle d’une sortie de crise par les exportations : Une analyse démythificatrice” em  http://criseusa.blog.lemonde.fr/page/11/

[1] Título principal da responsabilidade do tradutor.

 

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