Dos conhecimentos básicos em finança à opacidade e complexidade do mundo financeirizado – Uma exposição e uma análise crítica. Parte III – A finança ao serviço da sociedade e não a sociedade ao serviço da finança – 5. Representação do interesse público no sistema bancário  (4ª parte). Por Finance Watch

Jan Brueghel the Younger Satire on Tulip Mania c 1640
Jan Brueghel the Younger, Satire on Tulip Mania, c. 1640

Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

Parte III – A finança ao serviço da sociedade e não a sociedade ao serviço da finança.

5. Representação do interesse público no sistema bancário  (4ª parte)

Parte III texto 5 1

 

Por Finance Watch com o apoio da Fundação Hans-Böckler, dezembro de 2016

Autores: Duncan Lindo e Aline Fares

Editores: Greg Ford e Christophe Njdam

 

 

 

 

(4ª parte)

3. O Público

Iniciamos a nossa exploração dos bloqueios quanto à participação pública e a representação de interesses, examinando o problema na perspetiva do público. O capítulo tem cinco seções.

Começamos por explorar os dois principais obstáculos à participação pública e à representação de interesses:

  • Primeiro obstáculo, o público tem muitos interesses.
  • Segundo obstáculo, a natureza difusa do público leva a chamados problemas de ação coletiva.

Em seguida analisamos como:

  • Terceiro, as organizações da sociedade civil (OSCs) podem ajudar a ultrapassar os problemas de múltiplos interesses e da sua coordenação, mas podem também criar novas barreiras à cooperação, por exemplo, entre simples OSCs.
  • Quarto, esta é talvez a questão mais poderosamente expressa e que tem sobretudo a ver com os valores relativamente pequenas de dinheiro que o público consegue mobilizar de toda a sociedade para apresentar os seus interesses.

Finalmente,

  • Quinto, esboçamos brevemente o papel de qualquer proposta de política neste domínio, a ser retomada no capítulo 6.

Muitos interesses

Tornou-se rapidamente claro, especialmente durante as sessões de trabalho abertas que não há um interesse público único. Há simplesmente sempre muitos interesses diferentes, mudando ao longo do tempo, às vezes conflituantes, e às vezes interesses alinhados. Por exemplo: os mutuários podem querer baixas taxas de juros e condições de empréstimo facilitadas, enquanto os depositantes podem querer o oposto; os consumidores (por exemplo, depositantes e mutuários) podem ter interesses diferentes quanto aos empregados; finalmente, e talvez mais fundamental, os consumidores e os funcionários (a quem podemos pensar como fontes de lucro) podem ter interesses diferentes relativamente aos quadros superiores da gestão bancária e aos acionistas (que podem ser pensados como os recetores de lucro).

Nestas circunstâncias, os bloqueios à participação pública e à representação dos interesses são de natureza política: que grupos de interessados têm mais poder para representar eficazmente os seus interesses? Como é que os outros grupos de partes interessadas podem ultrapassar as suas diferenças para trabalharem em conjunto? Estes problemas são refletidos nos mais aparentes tecnicismos.

Em primeiro lugar, os grupos de partes interessadas mais poderosos geralmente têm melhor acesso aos canais pelos quais os bancos podem ser influenciados e a canais mais eficazes. Por exemplo, e como será analisado no capítulo 4, na maioria dos bancos os direitos de governança formal só são concedidos aos acionistas (não a outras partes interessadas). Um outro exemplo, mais aprofundado no capítulo 5: o grande público tem acesso a apenas uma pequena parcela do processo regulatório, por exemplo, através de consultas públicas, onde a forma necessária de participação pública é muitas vezes ineficaz. [19] Mais ainda, os grupos poderosos de partes interessadas podem usar a sua posição para tomar medidas que perpetuem as suas posições poderosas, por exemplo, como será analisado no capítulo 5, os altos quadros da administração dos maiores bancos podem fazer lobing para que a regulação se adeque aos grandes bancos de acionistas e não aos mais pequenos bancos ou às partes interessadas de menor peso.

Em segundo lugar, a pesquisa mostrou que a criação de uma coligação é importante ao tentar influenciar o comportamento dos bancos, por exemplo, através de canais regulatórios [20]. Mas se os grupos de partes interessadas têm interesses em conflito, como se poderá conseguir construir uma tal coligação (e note que, mesmo dentro de grupos de partes interessadas os conflitos podem ocorrer)? Tomemos a afetação de crédito como exemplo. Qual é o propósito dos empréstimos bancários? É apoiar uma transição para a energia renovável ou para construir infraestruturas de transportes como aeroportos? É para apoiar as pequenas e médias empresas (PME) ou as multinacionais? É para maximizar os lucros ou para emprestar a regiões de baixo crescimento? Mesmo dentro do grupo de partes interessadas, alinhar os interesses dos “mutuários” poderia ser difícil. Superar múltiplos interesses e potencialmente conflituantes, mesmo dentro de grupos de partes interessadas, como os mutuários, será difícil, mas sem isso o público permanece fraturado e será improvável representar com sucesso os seus interesses em face de mais poderosas partes.

Coordenação ou os problemas de ação coletiva

O segundo grande problema da representação dos interesses é o da ação coletiva. Há uma fundamental falta de coesão tanto dentro como entre a maioria dos grupos de partes interessadas que torna muito difícil uma atuação coletiva.

Como clientes individuais do banco nós sentimos muito pouco poder para influenciar a forma como os bancos se comportam [21]. Isso poderia, em parte, ser ultrapassado por uma atuação coletiva, de modo que as barreiras à ação coletiva também são barreiras à participação pública e à representação de interesses. Atualmente sentimos que temos pouco em comum com outros clientes do banco, por mais que nos possamos sentir em comunidade com eles noutros assuntos. Para os empregados do banco, a ação coletiva é possível através do seu sindicato não obstante o número de sindicalizados estar a diminuir de uma forma geral [22].

“A representação do interesse público tem que ver com mobilizar e envolver-se” – um participante nas worshops

Os problemas de ação coletiva nos bancos são reconhecidos na economia neoliberal, classicamente quando ocorrem corridas aos bancos. As corridas aos bancos são essencialmente um problema de ação coletiva entre os depositantes. Se, por qualquer motivo, houver grandes levantamentos repentinos e inesperados de depósitos num banco, os depositantes como indivíduos podem racionalmente concluir que eles devem fazer o mesmo para evitarem serem deixados sem nada …, mas a sua incapacidade em coordenarem a sua resposta ao problema pode levar a uma resposta aparentemente irracional [23]. A dificuldade dos acionistas em atuarem coletivamente para evitar que a gestão superior dos bancos prossiga os seus interesses privados é um outro exemplo (analisado no capítulo 4). Estes bem conhecidos exemplos demonstram a natureza do problema, mas não o seu alcance que, na prática, é ainda bem mais amplo: como observado acima o conceito de indivíduos como mais do que o homo economicus e a participação pública a representar os seus próprios interesses está para além do domínio da economia neoliberal.

Organizações da sociedade civil (OSC)

As organizações da sociedade civil podem ajudar a mobilizar o público

As OSC são uma forma, potencialmente importante, através da qual as partes interessadas podem melhorar a coordenação e a mobilização [24]. No entanto, elas apresentam os seus próprios desafios

[25]. A sociedade civil pode ser definida como “um espaço político onde as associações de cidadãos procuram, fora dos partidos políticos, moldar regras sociais [26]“. As OSC, como a organização Finance Watch e muitos dos seus membros, têm, sem dúvida, um longo caminho a percorrer para darem resposta aos problemas de coordenação dos indivíduos, permitindo-lhes tentar “moldar as regras da sociedade” através da forma associativa destas organizações.

Para levar a cabo essa coordenação, as OSC concentram-se frequentemente numa única questão. Isso ajuda a estimular a cooperação e a ação sobre essa mesma questão, mas pode endurecer as fronteiras entre as OSC que se preocupam com uma só questão, dificultando a colaboração em outras questões com as restantes OSCs. Na Europa, poucas OSC se concentram no setor bancário e a cooperação requerida com outras OSCs permanece limitada [27]. Outras OSC abordam o setor bancário na sua perspetiva particular, como a dívida do país pobre, a especulação alimentar, a ecologia, as desigualdades, o poder excessivo das corporações, a transparência e assim por diante.

A Figura 2 mostra um mapa altamente estilizado e centrado sobre a finança sobre as questões com que se confrontam as OSC. Se pretendem trabalhar juntas nas questões bancárias as OSC enfrentam um desafio a dois níveis: i) relacionar o seu interesse único com o sistema bancário e ii) transcender o seu próprio interesse particular e ligar-se também a outros grupos de um só interesse ou motivação.

As diferentes OSC também adotam uma abordagem diferente para moldar as regras da sociedade, o que pode ser uma força, mas que também pode complicar ainda mais a coordenação. Por exemplo, ao visar-se uma mudança da sociedade mais ou menos profunda  [28], ou quanto a utilizar campanhas de publicidade em massa versus objetivos políticos ou defendendo a interação direta com grandes empresas como nas campanhas de desinvestimento.

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De que formas é que os interesses podem estar em sintonia?

No entanto, a coordenação dos diferentes interesses e das OSC é possível, apesar das dificuldades, como o mostraram exemplos recentes, tais como as campanhas de Tributação sobre as Transações Financeiras (TTF) ou a Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP) [29]. Estes exemplos mostram que tanto uma campanha que apoia como uma de oposição podem mobilizar e ultrapassar os problemas de coordenação de uma multiplicidade de interesses[30].

Dois fatores se destacam. Em primeiro lugar, como a financeirização continua a ser dominante e continua a crescer o perigo para a sociedade colocado pelos bancos e pela finança, então também cresce o imperativo para diferentes partes interessadas e OSCs agirem em conjunto. Em segundo lugar, pode haver eficiência na especialização. Se as OSC conseguirem encontrar uma maneira de trabalhar em conjunto, então a especialização que ameaça separá-las pode ser transformada numa vantagem. Por exemplo, estimulando a presença de especialistas ambientais em debates bancários que afetam diretamente o ambiente pode ser extremamente poderoso. Além disso, pode ser vantajoso que as organizações contribuam com o seu conhecimento especializado para uma causa comum, poupando os outros em despesas e em tempo de aprendizagem detalhada de novos assuntos. Tais colaborações requerem oportunidades (espaço e tempo) para se desenvolverem e para as OSC ganharem confiança entre elas.

Dinheiro

“Temos falta de recursos: o financiamento é demasiado escasso para podermos trabalhar sobre temas relacionados com bancos” – participante nas workshops

Uma das principais razões que as OSCs dão para não trabalharem sobre o sistema bancário e a finança (ou de apenas serem capaz de despender uma muito limitada quantidade de tempo para isso), e para não formarem colaborações entre elas é a falta de recursos a que estão sujeitas. Quase todas as OSCs têm parcos recursos, muitas de recursos até severamente limitados e o sistema bancário geralmente não é o seu principal interesse. Isso ficou claro durante o projeto de vários modos. Primeiro, muitos amigos de Finance Watch informaram que eles simplesmente não tinham tempo e/ou pessoal para se dedicarem a uma sessão de debate aberto durante todo um dia sobre a banca, uma questão não-central e para a qual não dispunham sequer de recursos financeiros. Em segundo lugar, alguns dos que conseguiram participar nas sessões confessaram que sentiam uma grande dificuldade em compreender os problemas da banca e não sentiam que tinham a legitimidade, o tempo ou o pessoal para tentar aprender. A maioria das OSCs não especializadas em banca e finança acham difícil justificar o seu envolvimento em assuntos bancários e financeiros.

As OSCs têm falta de recursos comparativamente com os bancos

Em contraste e em relação a outros grupos de partes interessadas, os altos quadros da banca têm orçamentos comparativamente enormes à sua disposição para representar os seus interesses e para participar na formação dos ambientes em que operam. Isso começa com os recursos dedicados à inovação financeira e à criação de novos instrumentos bancários, mas engloba pesquisas, publicidade, conferências, advocacia e assim por diante. Dado o total escasso de recursos disponíveis para o público esta discrepância de gastos pode ser vista como mais um elemento adicional do problema de coordenação: os recursos para contrariar os gastos dos bancos na representação dos seus interesses existem no resto da economia, o problema é mobilizá-los (em concorrência com muitas outras questões).

O lóbi em particular tem-se destacado, em que os bancos (os altos quadros) gastam massivamente nas OSC [31]. Os bancos têm “verdadeiros tesouros de guerra para lobing” [32]. As estimativas conservadoras sugerem que “a indústria financeira gasta mais de 120 milhões de euros por ano no lóbi só em Bruxelas e emprega mais de 1.700 lobistas” [33]. As mudanças nas regras de divulgação também evidenciaram o quanto os bancos individualmente gastam: por exemplo, o Financial Times relatava que o Deutsche Bank gastou € 4milhões no lobing na UE em 2014, UBS € 1,7 milhões e Goldman Sachs € 700 a 800 mil, dados que quase certamente subestimam as despesas de lobby real.  [34]. Em comparação os orçamentos típicos das OSCs são negligenciáveis, por exemplo, «Finance Watch, o único grupo de defesa de interesse público dedicado a trabalhar na Regulação Financeira, opera com um orçamento de menos de € 2m [35].

Os reguladores também se defrontam com limitações de orçamento

Devemos salientar que não é apenas o público que luta para mobilizar os recursos da sociedade em relação aos bancos. Os próprios reguladores devem também competir pelo financiamento e, muitas vezes, trabalhar em orçamentos muito menores do que os bancos que procuram regular e supervisionar, com uma “pressão constante” sobre os recursos [36]. Por exemplo, Bloomberg recentemente informava sobre um regulador que lutava para atrair fundos suficientes para supervisionar devidamente a negociação em alta frequência. [37][38]

Em jeito de conclusão: organizando a sociedade civil

Em suma, as partes interessadas, que não os altos quadros responsáveis pela gestão dos bancos, enfrentam problemas múltiplos, muitas vezes conflituantes entre si e de coordenação ao tentarem representar os seus interesses de forma eficaz. As propostas políticas devem procurar repor o equilíbrio e facilitar a construção de coligação entre as OSCs. Uma área clara seria aumentar o financiamento da sociedade civil e dos reguladores. Outra seria criar espaços seguros onde a sociedade civil se possa informar sobre as questões bancárias, compreender de que modo se poderia transcender os seus próprios interesses, relacionar as suas questões próprias e únicas relativamente à banca e criar alianças, por exemplo, para alavancar o conhecimento de especialidade que já existe entre as OSCs.

(continua)

Texto disponível em http://www.finance-watch.org/our-work/events/1284-public-interest-banking

 

Notas

[19]  Krawiec, 2013; Krawiec & Liu, 2015

[20]  e.g. Pagliari & Young, 2014, 2015

[21] Como vimos acima, raramente se muda de banco (Competition and Markets Authority, 2015)

[22] http://www.worker-participation.eu/National-Industrial-Relations/Across-Europe/Trade-Unions2

[23]  Macey & O’Hara, 2003:97

[24]  e.g. see Kastner, 2014 relativamente aos grupos de consumidores.

[25] Não totalmente explorado aqui, Amoore & Langley (2004) ) questionam a conceção prevalecente que os universitários têm da “sociedade civil global”, apelando aos universitários, às OSC e a outros no sentido de se ter uma reflexão mais profunda sobre a sociedade civil global.

[26]  Scholte, 2013: 134

[27]  Como nos é recordado pelos investigadores universitários, (e.g. Scholte, 2013) e como se tornou igualmente claro nas nossas reuniões de trabalho.

[28] Amoore & Langley (2004)

[29] Outros exemplos incluem campanhas sobre a regulação MIFID quanto à especulação sobre produtos de base alimentares, sobre a União dos Mercados de Capital e outros mais. Mesmo que o resultado legislativo imediato dessas campanhas seja, por vezes, limitado, eles demonstraram que a coordenação é possível.

[30]  Várias vezes nas nossas reuniões de trabalho os representantes das OCS debateram, sem conclusões decisivas, se a coordenação foi mais fácil para as campanhas que propuseram novas medidas ou para aquelas que se opõem às medidas propostas por outros. Esta última hipótese centra-se contra o que leva as pessoas a reunirem-se enquanto a primeira hipótese é mais virada para o que as pessoas aspiram.

[31]  e.g. Hacker and Pierson, 2010; Johnson and Kwak, 2010

[32]  Pagliari & Young, 2015: 1

[33]  Corporate Europe Observatory, 2014

[34]  Robinson & Braithwaite, 2015

[35] Finance Watch, 2016:12

[36] Froud et al, 2012

[37]  Hamilton, 2016

[38] Nota de Tradutor. Vale a pena ler a declaração  de  Timothy Massad, Presidente da  CFTC no Senado americano em Fevereiro de 2016 em que justifica o seu pedido de aumento de orçamento para 2017!. Da sua declaração apresento‑vos aqui um excerto:

“Este orçamento dar-nos-á os recursos para irmos a par com  o  ritmo de  uma indústria que está a mudar e a inovar  à velocidade da luz, e que é hoje muito maior e mais complexa do que mesmo apenas alguns anos atrás. Permitir-nos-á abordar as transformações tecnológicas que estão a moldar os nossos mercados, mas também a criar novos riscos para a estabilidade financeira — tais como a negociação  automatizado e os riscos  cibernéticos, por exemplo. Com este novo orçamento   garantimos que podemos ter  ainda mais e mais rápida capacidade de resposta às preocupações dos utilizadores  finais comerciais, que não causaram a crise financeira global mas em que ainda dependem desses mercados para coberta de risco comercial nas suas atividades comerciais, isto é na economia real.  Permitir-nos-á encontrar estar >à altura das nossas alargadas e dramáticas responsabilidades  e continuar a fazer saír o outrora mercado opaco de swaps  das zonas de sombra. E permitir-nos-á continuar a manter os maus atores responsáveis, para que possamos proteger os clientes e a integridade dos nossos mercados.

Para continuar nesta nossa trajetória de  progresso, e para permitir que a  CFTC cumpra as suas responsabilidades para supervisionar estes mercados vitais como é ordenado pelo o Congresso, a Comissão solicita $330 milhões e 897 equivalentes em tempo integral (ETI). Este é um aumento de $80 milhões e de 183 ETI sobre o orçamento promulgado de 2016. É um investimento que é muito necessário; este  permitirá que esta agência se envolva numa série de atividades importantes que irão ajudar a garantir que os mercados de derivados dos EUA continuam a ser estáveis, transparente, competitivos e livres de fraude e de manipulação.”

 

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