UMA CARTA DO PORTO – Por José Fernando Magalhães (245)

 

UM PORTUENSE DESCONHECIDO

 

FRANCISCO DA SILVA GOUVEIA

(Um Tripeiro de S. Nicolau)

1872 – 1951

 

 

A poucos dias de mais um aniversário do seu nascimento, venho falar-lhes de um ilustre desconhecido.

Francisco da Silva Gouveia nasceu no seio de uma família abastada do centro do Porto. Os seus pais, João Maria e Maria Florinda, eram comerciantes na rua de S. João, local onde Francisco nasceu (dizem que nasceu na rua dos Ingleses, mas o assento de nascimento diz claramente rua de São João).

A sua infância foi passada na Ribeira, entre a rua de S. João e a dos Ingleses, para onde os pais, bem cedo, foram viver, e a rua Infante D. Henrique.

Desde muito novo mostrou interesse pelo desenho.

Embora as resistências do pai a esse interesse fossem muitas, Francisco foi estudar para a Academia Portuense de Belas Artes, por influência do seu tio Caetano Pinho da Silva, onde foi discípulo de Soares dos Reis, João Correia Marques e Marques D’Oliveira, e se notabilizaria com excelente aluno de escultura.

Terminado o curso, partiu, sempre sob a influência do tio Caetano, para Paris, onde foi discípulo de Auguste Rodin e de Jean Antoine Injalbert, tendo recebido aulas de Alexandre Falguière, Denys Puech e de Pierre Louis Rouillard, sendo admitido na Academia Julien et Calaron.

O seu percurso era notavelmente brilhante, e nos anos noventa do século XIX era já uma referência na cidade Luz. Para tal, valeram-lhe não só os seus dotes de escultor de excelência, como as tertúlias e as concorridas recepções que Eça de Queiroz, Cônsul de Portugal em Paris, patrocinava assiduamente.

Até ao ano de 1900, Francisco tinha já participado em várias exposições colectivas. No Porto em 1894 e 1895 e em Paris em 1984, 1897 e 1900.

Nesta última, a Grande Exposição Universal de Paris, recebeu a medalha de prata e foi agraciado pelo Rei D. Carlos com a Ordem de Sant’Iago da Espada.

Mas, já no ano de 1900 era o escultor conhecido pela sua estatueta da figura de Eça de Queiroz, que muito brado deu e que se tornou na mais célebre alguma vez feita sobre o escritor.

 

 

A história conta-se em duas penadas. Convidado para comparecer num jantar em honra do Consul Eça de Queirós, que lhe disseram ser íntimo, masculino e sem qualquer cerimónia, Silva Gouveia apresentou-se, não de casaca, mas de simples rabona. Era o único naqueles preparos.

Apesar de se sentir enganado, não se intimidou, no entanto, e, peito feito às balas, lá se dirigiu ao cônsul, para o cumprimentar. Todos os olhares convergiam para ele.

Ao chegar perto conseguiu ouvir claramente a voz de Eça de Queirós comentando, enquanto ajustava o seu monóculo, o ser que, de pequena estatura e de grandes bigodes se lhe dirigia:

– Quem é este gigante que parece ter engolido um boi e deixado os cornos de fora?

O dito jocoso provocou risadas gerais, mas nada intimidava Gouveia nos seus quase 28 anos.

Apresentou-se, lembrou ao Cônsul as cartas de recomendação que em tempos lhe apresentara, e retirou-se para o lugar que lhe estava destinado, sem que perdesse a vontade de comer, de beber e de conversar.

Mas Silva Gouveia, não era de se ficar, e quando regressou a casa passou toda a noite à volta da cera a compor a figura que debruçada sobre ele, o tinha achincalhado horas antes. E daí saiu o esboço da obra espirituosa que toda a gente, hoje, conhece.

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No princípio do século XX o nome de Francisco da Silva Gouveia, era já incontornável como um brilhante vulto da escultura mundial. E na altura, o mundo era Paris.

Mas ainda nos finais dos anos 90 Francisco começara a entender que o seu Francês necessitava de ser aperfeiçoado. Precisava de um professor.

Para tal, falou com diversos amigos no sentido de lhe arranjarem alguém com capacidade para o ensinar devidamente.

Pouco tempo depois, assim aconteceu.

No dia aprazado para a entrevista ao professor que os amigos lhe propuseram, Francisco teve o maior choque da vida dele até então.

À sua frente estava, de pé, a menina, agora feita mulher, que ele, anos atrás, via diariamente a passar por baixo do seu atelier, e por quem sentira uma afeição enorme, apesar de nunca ter tido coragem de se lhe dirigir.

As lembranças vieram de supetão e pareceu-lhe que estava novamente nos inícios de 1890. Nada mudara. Os seus sentimentos, se bem que secretos na altura, regressaram com a mesma intensidade, se não com uma força ainda maior.

Aceitou, evidentemente, a professora, e passados poucos meses, reconhecida a reciprocidade dos sentimentos, tornaram-se, para além de professora e aluno, mestre e modelo.

Anos depois casam.

A Igreja de Notre-Dame des Champs é o local escolhido, e foram apadrinhados pela Senhora Duquesa de Palmela.

Uma história de amor, velha de muitos anos, que muito embora nascesse de forma unilateral, se transformou numa história de amor para uma vida inteira.

Estávamos no ano de 1905, e o casamento realizou-se a treze de Junho.

O agora casal Gouveia foi viver para um prédio da rua Notre-Dame des Champs.

Lá, Claire, que se tinha tornada uma escritora, escreveria vários livros de poesia que foram publicados em Paris.

As exposições de Silva Gouveia continuaram, agora também individuais: Lisboa 1906 e Porto 1906, e uma colectiva em Paris em 1914. E o trabalho era intenso.

A vida do casal era bela e de uma dedicação recíproca notável.

Entretanto, chega o ano de 1914.

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1914 foi um ano fatídico e de transformação total, tanto para Francisco da Silva Gouveia como para Claire Jeancourt Gouveia.

Em meados do ano decidem vir a Portugal. Aproveitariam a viagem para visitar o pai de Francisco, que estava doente, e para passar com a família o quadragésimo segundo aniversário de Francisco.

Em finais de Julho, no entanto, começa a Guerra. A 2 de Agosto os alemães atacam tropas francesas e em França há mobilização geral para preparar os combates que viriam mais cedo ou mais tarde.

Fran, era assim que carinhosamente Claire sempre tratava Francisco, decide atrasar a viagem de regresso.

A 6 de Setembro o pai de Silva Gouveia morre.

A Guerra, que se esperava fosse de pouca dura, está para lavar e durar.

O escultor tem problemas com os olhos e consulta um reputado oftalmologista da cidade do Porto, Dr. Manuel Correia de Barros, que tinha entre 1881 e 1886 sido Presidente da Câmara da cidade.

As notícias são devastadoras. Francisco da Silva Gouveia corre o risco de cegar.

A decisão do casal Gouveia é a de ficar no Porto, abandonando a vida que tinham em Paris. Para trás ficariam o atelier e as oficinas de fundição. Teriam de mandar vir parte do recheio da casa da rua Notre-Dame des Camps, e de arranjar casa, onde passariam a viver.

Com essa ideia a germinar, regressam a Paris e à sua vida habitual.

A 20 de Abril de 1915, é noticiada a vinda do casal até ao Porto, para visitar a família. Vinham tratar de arranjar acomodações dignas para ambos.

Preparam, com cuidado a sua vinda definitiva para Portugal.

A casa da Rua Antero de Quental 475, reúne as suas preferências.

Regressam a Paris e começam a tratar da vinda para o Porto.

 

Tratada convenientemente, a possível cegueira de Silva Gouveia diminui de risco, acabando o escultor por ficar practicamente curado.

Torna-se professor de desenho na Escola de Faria Guimarães, na Rua de Santo Ildefonso 422, num prédio onde antes fora o liceu de Alexandre Herculano, e mais tarde seria o Externato Santa Clara. Não se sabe se foi professor na mesma escola quando ela se situava no Campo 24 de Agosto.

A Escola de Faria Guimarães, é a antecessora da actual Escola de Soares dos Reis, e esteve naquelas instalações entre 1921 e 1955, antes de passar para a rua da Firmeza.

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Lentamente regressam, a par das aulas, imensos “croquis”, e umas quantas exposições.

Durante alguns anos faz algumas exposições individuais: 1925 e 1946 no Porto, e colectivas: S.N.B. em 1917, e Porto em 1917 e 1935.

Enquanto isso, Claire Gouveia escreve e dá aulas de Francês.

A vida corre pacata e simples. Francisco da Silva Gouveia redescobre amigos, e os prazeres simples da vida, abandonando a escultura que o moveu durante décadas.

Em 1934, e por via de uns artigos no jornal O Primeiro de Janeiro, da autoria de Braz Burity (O critico de arte Joaquim Madureira) resolve fazer uma nova exposição, no Porto. Depois só em 1946 o voltaria a fazer. A primeira destas duas foi uma exposição colectiva, a outra, a última que fez, foi individual. Francisco da Silva Gouveia é confrontado com o esquecimento a que estava votado.

Disse, nesses artigos, Braz Burity:

“… A ORIGINALÍSSIMA ESTATUÁRIA DE PEQUENINOS BRONZES DE SILVA GOUVEIA, QUE FOI UM GRANDE ARTISTA DE QUEM NINGUÉM SE LEMBRA, E QUE ELE MESMO JÁ ESQUECEU DEIXANDO ESQUECER OS TASSELOS E MATRIZES DE FUNDIÇÃO DO SEU PRODIGIOSO EÇA, DO SEU FORMIDÁVEL RAMALHO E DO SEU VELHO MARQUES GUEDES, SIMPLESMENTE EXPLÊNDIDO…”

 

EM CARTA-RESPOSTA A BRAZ BURITY, SILVA GOUVEIA ADMITE DOENÇA DOS OLHOS E OUTRAS, QUE COM A AJUDA DE VÁRIOS MÉDICOS PORTUENSES, ULTRAPASSOU, E, A VONTADE DE VOLTAR A TER UM ATELIER ONDE PUDESSE RETOMAR A EXECUÇÃO DA VEIA CRIADORA QUE O CONTINUAVA A ASSALTAR.

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Algumas Obras de Silva Gouveia

António Teixeira Lopes 1905(?) – Casa Museu Teixeira Lopes

 

Jovem Mãe 1909 – Casa Museu Teixeira Lopes

 

Representação da Pintura 1906 – Casa Museu Teixeira Lopes

 

Guerra Junqueiro

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Optam por comprar uma posição vitalícia no Lar da Ordem dos Terceiros do Carmo, num quarto/apartamento, duplo, com vista para a Praça de Carlos Alberto. Os quartos 16 e 17 do corredor da Secretaria, no 1º andar.

Fecharam contrato a 31 de Dezembro de 1940, com entrada imediata no Lar da Ordem.

O contrato, Termo de Concessão de Albergaria, previa o pagamento de noventa e três mil escudos (quantia enorme para a época) e tem algumas particularidades na sua redacção.

Para os dois quartos, contíguos e com porta a separá-los, com varanda e vistas para a Praça de Carlos Alberto, o casal Gouveia trouxe com ele mobília, roupa de cama e um lavatório. Por parte da Ordem do Carmo, assegurariam limpezas, comidas e seriam tratados como sãos, se sãos, e como doentes, se doentes, tendo autorização para consultarem outros médicos fora dos serviços do Lar.

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OS ÚLTIMOS ANOS DE FRANCISCO DA SILVA GOUVEIA

A vida do casal Gouveia torna-se cada vez mais simples.

Enquanto ela escreve poesia, ele desenha em qualquer bocadinho de papel e oferece aos amigos. Qualquer coisa lhe serve de motivo para escrever uma carta, com um ou dois desenhos, para desenhar uma jarra ou um pequeno animal e oferecer às pessoas mais chegados, testemunhando dessa forma o muito apreço que por elas, e seus familiares, nutria, sentimentos esses que sua mulher, Claire, efusivamente partilhava.

Passeavam muito pelas ruas do centro do Porto. Ela, alta, esguia, muito magra e muito branca, ele, gordo, de grandes bigodes e muito mais baixo que ela. Sempre de braço dado lá calcorreavam as ruas de Sá da Bandeira, Santa Catarina, Passos Manuel, Santo António, Clérigos, Avenida dos Aliados, Leões, e, fosse Verão ou fosse Inverno, com um guarda-chuva de pano preto, invariavelmente aberto, não fosse algum raio de sol macular a alvura dela.

Para além disso, Francisco da Silva Gouveia era poeta. Não da craveira da sua mulher, mas mesmo assim, poeta.

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Silva Gouveia não se limitava a fazer «croquis», desenhos diversos e a sonhar com vidas passadas.

Era também poeta, fazia poesia tanto em francês como em português, se bem que não se pudesse comparar com a poetisa que era sua mulher Claire.

Adorava fazer acrósticos, de que detenho alguns, oferecidos a familiares meus.

Deixo um, como exemplo

 

Acróstico – Rosa Carmen

 

Realmente uma rosa sua!

Ora pois: – uma rosa-chá:

Serena, pelo mundo voa

Assim mesmo, sem falbalá!

Cara viva, alegre a valer

Atenta ao que for bom de ler

Risonha e muito prazenteira

Mais afáveis ares vistosos,

E sem seus olhos luminosos

Nenhuma moça é mais fagueira.

2 nov. 1946

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Francisco da Silva Gouveia faleceu a 28 de Dezembro de 1951,

e Claire Jeancourt Gouveia, a 12 de Agosto de 1975 (dia de aniversário de Francisco).

Durante os mais de 23 anos que ainda viveu, Claire Gouveia consagrou-os ao culto da memória de Fran.

(assim ela sempre o chamou)

 

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Conheci Claire Gouveia quase desde que me lembro.

Tenho gravado na minha memória o quarto onde nos recebia, a cadeira onde meu pai se sentava, os imensos desenhos, cartas, papeis, fotografias, livros, revistas e algumas, poucas, esculturas, tudo dedicado ao seu marido. Ah, e o piano, claro, o piano em que Madame Gouveia (foi sempre assim que a tratei) por vezes nos presenteava, tocando.

As conversas raramente eram comigo. Eu só ouvia, observava, infelizmente pouco, e durante alguns anos, só me enfastiava. As conversas com o meu pai, invariavelmente em francês, eram quase sempre e só sobre Silva Gouveia. Após os cumprimentos iniciais, e das novidades que meu pai lhe transmitia sobre a vida dele e da nossa família, a conversa virava de imediato para o assunto que era a razão de viver da já idosa senhora. A permanente recordação do seu marido e do amor de uma vida que ambos consagraram um ao outro.

 

Já velhinha, resolveu escrever uma carta, caso costumeiro nestas situações, com as suas últimas disposições sobre o que fazer ao espólio que detinha. Pouco tempo antes da sua morte, a irmã Salomite (Superiora encarregada dos hóspedes do Lar da Ordem) foi substituída nas suas funções, devido à idade e à doença, pela irmã Isabel, que ficou com essa carta à sua guarda.

A carta desapareceu, mas sabem-se algumas coisas sobre o seu teor.

Que alguns escritos fossem entregues a determinados destinatários, que um armário fosse entregue a meu pai (e foi, ainda o tenho com uma inscrição manuscrita por Claire Gouveia), e que deixava uma verba para que o Ordem tratasse do Jazigo onde o marido estava e para onde ela iria (encontrei-o abandonado em Novembro de 2017).

(P.F. Ver Crónicas nºs 213 e 214)

E de mais nada se sabe sobre o que lá estaria escrito.

Não se sabe para onde foram os livros, as esculturas, as cartas, os desenhos, os papeis escritos, os outros móveis, nem o piano.

A Ordem do Carmo diz desconhecer o paradeiro desse espólio que poderia ser, facilmente, muito importante e valioso. As dificuldades por que a Ordem do Carmo atravessa, e a falta de inventariação de muitos documentos e, possivelmente, outras peças, guardadas indiscriminadamente numa qualquer dependência fechada e cheia de pó, impossibilitam um estudo mais aprofundado do destino dado ao espólio que existia nos quartos 16 e 17 do edifício do Lar da Ordem do Carmo, entretanto vendido.

Hoje cabe-me continuar a fazer com que se redescubra o Escultor Francisco da Silva Gouveia.

 

 

Jazigo térreo onde repousam Francisco e Claire Gouveia, no cemitério de Agramonte

(actualmente já com a dignidade merecida).

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9 Comments

  1. Parabéns pelo artigo.
    Francisco da Silva Gouveia é familiar do meu marido, José Guilherme Gouveia da Fonseca e Castro, neste caso tio bisavô.
    Algumas das obras, um quadro e algumas esculturas foram encontradas em casa do avô materno do meu marido.

  2. Bom dia José! Tudo bom contigo? Espero que sim… 🙂

    Chamo-me Emanuela e sou aluna do curso de mestrado da FBAUP. Atualmente estou a desenvolver o projeto para conclusão de curso e falo sobre as obras (esculturas) expostas ao público dentro da faculdade. E há duas obras que pertencem ao Francisco Gouveia: Beatriz de Portugal e Premier Regret. Após ler o seu blog, fiquei curiosa em saber se você teria informações acercar destas duas obras. Eu, infelizmente, pouco encontrei conteúdo sobre as mesma na faculdade ou mesmo online…

    Se tiveres informações e puderes compartilhar comigo, seria de uma valia sem igual!

    Desde já desejo-lhe um bom domingo

    Att,
    Emanuela Dantas

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