A crítica demolidora de Michael Pettis à teoria e à política económica neoliberal – 15. Estamos a começar a ver porque é que a “Carga” é realmente exorbitante (2ª parte-conclusão). Por Michael Pettis

egoista

Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

15. Estamos a começar a ver porque é que a “Carga” é realmente exorbitante (2ª parte-conclusão)

michael pettis Por Michael Pettis

Publicado por Carnegie Michael Pettis em 5 de outubro de 2014

 

É já tempo

E não são apenas os economistas tradicionalmente “liberais” que compreendem que os desequilíbrios comerciais não são causados por trabalhadores preguiçosos. Analistas que têm simpatia pelo padrão ouro, como o assumido “defensor do padrão ouro” John Mauldin, sempre compreenderam que o principal argumento a favor do padrão ouro é que ele impõe um comércio inquebrantável e uma forte disciplina de fluxo de capital – na verdade, isso é também o principal argumento contra o padrão ouro – mas muitos deles tendem a minimizar a importância económica da moeda de reserva, principalmente, penso eu , porque este problema particular é para eles submerso pelas suas preocupações mais gerais sobre o dinheiro. Eu não sei se Ralph Benko é um deles, mas ele tem escrito sobre este assunto já antes e muito recentemente escreveu dois artigos na Forbes (aqui e aqui), que tem sido tradicionalmente simpática para a causa do padrão ouro, em que ele também cita o texto de Austin e acrescenta ao coro:

A mecânica do sistema de moeda de reserva impede a disponibilidade pronta desses fundos para “a manutenção da indústria”. A mecânica do dólar como um ativo de reserva, portanto, financia um maior governo ao mesmo tempo que impede a produtividade, os empregos e a prosperidade equitativa.

Este colunista concorda de todo o coração com Bernstein sobre o que parecem ser os seus três pontos mais importantes. O estatuto do dólar como moeda de reserva faz com que os trabalhadores americanos, e o mundo, enfrentem grandes problemas. O privilégio exorbitante merece e exige muito mais atenção do que a que recebe. Mover o dólar para bem longe de ser a moeda de reserva do mundo seria muito mais fácil do que muitos agora assumem.

É difícil construir uma “tradição” económica que combine Austin, Bernstein, Mauldin e Benko, e o facto de que eles estão todos de acordo sugere que a discussão sobre o papel do dólar norte-americano como moeda de reserva pode estar a emergir a partir da discussão monetária mais ampla que coloca duas tradições económicas muito opostas virulentamente uma contra a outra.

Talvez seja apenas uma coincidência que no ano passado mais e mais economistas tenham questionado a sabedoria convencional sobre os benefícios do estatuto da moeda de reserva dominante, mas uma vez que isso acontece, a lógica contra a premissa automática de privilégios exorbitantes é tão poderosa que será difícil voltar a acreditar novamente. Talvez tenhamos alcançado esse ponto de inflexão.

Para os leitores que estejam interessados, sugiro que leiam os vários artigos que citei acima, juntamente com o meu artigo de 2011 em Foreign Policy e os capítulos 7 e 8 do meu livro 2013, The Great Rebalancing, que Jared Berstein no seu blog teve a gentileza de dizer que nele se apresenta “um argumento muito forte”. A minha insistência de que Keynes estava certo e Robert Triffin estava certo, mas que ambos estavam certos talvez cedo demais, é bastante direta e envolve apenas a aritmética mais básica, embora exija que o leitor pense em termos de sistemas e de restrições impostas, em vez de entidades económicas autónomas, cujo comportamento agregado é simplesmente a soma de decisões individuais não sujeitas a constrangimentos.

Precisamos de manter este argumento bem presente. À medida que os formuladores de políticas dos EUA tomam medidas para aumentar o comércio livre através de vários acordos bilaterais e multilaterais, é importante que o fator “carga exorbitante” seja abordado antes de se tornar muito mais desestabilizador, mas é também importante que a “carga exorbitante” não se torne um argumento contra o livre comércio. Estar a argumentar a favor de restringir as compras ilimitadas de títulos dos EUA ou outros títulos do governo, não é o mesmo que argumentar que os EUA ou outros países não se devem envolver no comércio internacional, como muitos comentadores tão bizarramente afirmaram.

Tal como a maioria das pessoas que pensam sobre estas coisas, aceito em grande parte os pontos de vista convencionais sobre as vantagens do livre comércio, embora, ao contrário de alguns defensores do livre comércio , não acredito que a vantagem comparada seja estática e eu argumentaria, em vez disso, que há muita evidência histórica de que os países podem intervir com sucesso para transformar as suas vantagens comparadas em formas que geram maior crescimento de produtividade, sendo um dos casos evidentes, os EUA de Alexander Hamilton. Eu acho que está bastante bem fundamentado que a produção global aumenta à medida que mais países aderem ao regime global de comércio e ao regime monetário e enumero as razões disso mesmo num outro texto, editado em 28 de Setembro. Mas acho que existem dois pontos importantes que devem fazer parte de qualquer discussão dos benefícios do livre comércio.

Em primeiro lugar, os desequilíbrios significativos do comércio e dos fluxos de capitais são as consequências de distorções institucionais ou políticas e podem, em alguns casos, desestabilizar o sistema geral (estas são as causas, por exemplo, da crise de 2007-08). Num sistema que funcione bem, haverá sempre desequilíbrios temporários e até mesmo desequilíbrios muito longos, mas saudáveis, como os défices da balança corrente que os EUA tiveram durante a maior parte do século XIX. Como regra geral, no entanto, muitos anos de taxas de poupança excessivamente altas ou excessivamente baixas são quase sempre a consequência de distorções institucionais num país ou do seu anverso automático no outro. Um sistema de comércio que funcione bem deve ter um mecanismo que restrinja as distorções desestabilizadoras. Uma vez que o mundo saiu do padrão ouro, não pode ser nenhuma surpresa que tenha perdido a disciplina imposta pelo ouro. Keynes tentou, mas não conseguiu criar uma forma alternativa de disciplina, mas de uma forma ou de outra deve ser restabelecida.

Em segundo lugar, o argumento frequente de que qualquer intervenção no comércio reduz automaticamente o resultado global não tem sentido e é completamente ilógico. Se estivéssemos num equilíbrio ideal, por exemplo, e este equilíbrio fosse perturbado quando uma entidade introduziu uma distorção que afastou o sistema do equilíbrio e, se isso fosse seguido por uma intervenção de retaliação que o movia de volta ao equilíbrio, a primeira intervenção ou a segunda intervenção deve ter aumentado a produção total. Posto o exemplo em termos básicos, se o banco central brasileiro interveio para forçar à baixa o nível do real brasileiro contra o peso mexicano em 20%, e o México interveio com sucesso por ameaças de sanções a menos que o banco central brasileiro permitisse que o real voltasse ao seu nível original, uma ou outra intervenção devem ter causado o aumento da produção. Por outras palavras, as intervenções de transferir os problemas ou prejudicar um país parceiro podem reduzir os benefícios do comércio global. As contra-intervenções podem reduzi-las ainda mais ou podem restaurá-las e colocá-las no seu valor original. Depende do tipo de intervenção.

 

 

Apêndice:

Por ter já escrito sobre esse tema tantas vezes, não vou aqui apresentar toda a argumentação, mas poderá ser útil para os leitores relembrar porque razão o estatuto da moeda de reserva é um fardo exorbitante:

  1. Em virtude de, por uma variedade de razões, os dólares serem a forma preferencial de reserva de moeda estrangeira, ou para evitar qualquer tipo de risco nas transações comerciais, a fim de combater a incerteza ou aumentar o emprego interno, é mais provável que os países estrangeiros acumulem reservas comprando títulos do governo norte-americano ou outros ativos líquidos de baixo risco em dólares norte-americanos. Esta acumulação de reservas pode ser formalmente classificada como reservas e acumulada pelo banco central ou outras instituições que também podem acumular essas reservas, algumas das quais são referidas como fundos soberanos.
  2. Quando é o setor privado que acumula dólares, é provável que existam demasiados motivos e consequências potenciais para podermos resumi-las aqui. Mas quando os governos acumulam sistematicamente enormes quantidades de dólares, a razão tem quase sempre a ver com a criação ou ampliação do excedente da balança comercial ou da balança corrente, que é exatamente o contraponto da exportação de poupança interna líquida. O mecanismo envolve a supressão do consumo interno pela tributação sobre as famílias (geralmente de forma indireta sob a forma de subvalorização da moeda, repressão financeira, legislação anti laboral, etc.) e subsidiando as exportações. Estes mecanismos forçam ao aumento da taxa de poupança ao mesmo tempo que tornam as exportações mais competitivas nos mercados internacionais, cujo efeito líquido é reduzir o desemprego interno.
  3. Se essas poupanças são exportadas para os EUA, por exemplo se o banco central comprar títulos do governo dos EUA, os EUA devem ter o défice comercial correspondente. Isso não tem nada a ver se as exportações vão para os EUA ou para algum outro país. É surpreendente como é que só poucos economistas entendem isso, mas se o País A é um exportador líquido de poupança para o País B, o primeiro terá um excedente e o último terá, obrigatoriamente, um défice, mesmo que os dois não tenham tido transações entre si.
  4. Beneficiarão os EUA com a importação de poupança externa e investimento estrangeiro? O Estado ou país local que recebe o investimento pode beneficiar, mas qualquer país só se beneficia da importação de capital estrangeiro sob uma ou mais das três seguintes condições:
  • Quando um país tem elevados níveis potenciais de investimento produtivo, mas a poupança doméstica é insuficiente para satisfazer a procura interna, o país beneficia da importação de capital estrangeiro para financiar esses investimentos produtivos. Desde que o retorno económico total desses investimentos, incluindo todas as externalidades, exceda o custo do empréstimo externo, ou seja financiado por investimento de capital estrangeiro, as entradas de capital estrangeiro traduzem-se em criações de riqueza no país de destino.
  • Quando, durante uma crise, os principais mutuários, incluindo o governo, enfrentam severas restrições de liquidez de curto prazo e o capital interno está, por qualquer motivo, indisponível ou incapaz de financiar a dívida na sua maturidade, as entradas de capital estrangeiras podem ajudar a reduzir a escassez de fundos. Neste caso, os investidores estrangeiros cumprem o papel clássico de um banco central, emprestam a mutuários solventes ou contra ativos aceitáveis, a fim de evitar que uma crise de liquidez obrigue o mutuário à insolvência.
  • Para os países que necessitam de tecnologia, que têm instituições de negócios e de gestão fracas, ou que sofrem de baixos níveis de capital social, o investimento estrangeiro pode trazer consigo a tecnologia e as competências de gestão de que a economia necessita.

Nos dias do padrão ouro era possível para uma economia avançada como os EUA sofrerem da primeira condição. Hoje, não sofre de nenhuma das três condições.

 

  1. Deixem-me explicar porque razão os Estados Unidos não sofrem da primeira condição. Se os EUA são um destinatário líquido de entradas de capital, significa isto que estamos simplesmente a assumir o outro lado da identidade contabilística que expliquei mais acima: um excesso de poupança sobre o investimento numa qualquer parte de um sistema económico exige um excesso de investimento sobre a poupança numa outra qualquer parte, num outro qualquer país ou conjunto de países. Se o Japão, com a sua moeda subavaliada e taxas de juros reprimidas, forçou a sua taxa de poupança para valores acima da sua já alta taxa de investimento na década de 1980 e utilizou este excedente em títulos do governo dos EUA, os EUA tiveram que ver a sua taxa de investimento a exceder a sua taxa de poupança. Existem apenas três maneiras pelas quais os EUA podem aumentar o investimento em relação à poupança ou reduzir a poupança em relação ao investimento:
    1. Pode-se aumentar o investimento produtivo.
    2. Pode aumentar o investimento não-produtivo, especialmente no setor imobiliário, à medida que a afluxo de poupanças estrangeiros desencadeiam uma bolha do mercado imobiliário e no mercado de títulos, ou pode aumentar o consumo, já que essas bolhas libertam um efeito de riqueza que faz com que os americanos comuns aumentem o seu consumo em relação ao seu rendimento (ou seja, reduzem as suas poupanças). Em ambos os casos, a dívida dos EUA aumenta mais rapidamente do que a capacidade de serviço de dívida dos EUA.
    3. O desemprego pode aumentar à medida que a expansão das importações em relação às exportações faz com que as fábricas americanas reduzam a produção e despeçam pessoal. Claro que os trabalhadores despedidos deixam de produzir mas ainda precisam consumir, então a taxa de poupança cai.

Estes são os únicos três possíveis resultados. Se o investimento produtivo nos EUA foi limitado pela falta de acesso americano ao capital – nacional ou estrangeiro – como foi o caso no século XIX, é possível que o estatuto da moeda de reserva aumente o volume de emprego e a criação de riqueza no país. Mas, nas economias avançadas, o investimento produtivo nunca é limitado pela falta de capital. Por outras palavras, é quase sempre o caso de que um aumento no investimento estrangeiro líquido para os EUA (ou para os países mais avançados) deve resultar numa qualquer combinação de um boom de investimento especulativo, de um boom do consumo ou de um aumento do desemprego. O que normalmente acontece é que, no início, obtemos os dois primeiros, até que os níveis da dívida se tornam altos demais, após o que obtemos o terceiro.

  1. Bryan Riley e William Wilson, dois economistas da Fundação Heritage, em resposta ao artigo de Jared Bernstein, apresentaram as suas razões num blog no mês passado e argumentaram que, em princípio, os benefícios da utilização do dólar como moeda de reserva dominante excedem o custo para os EUA desta dívida mais elevada ou de um maior desemprego. O texto deles era bastante curto e, portanto, não quero sugerir que exponho aqui todo o alcance do desacordo deles, mas sugerem eles que os benefícios são:

Seignorage. O maior benefício tem sido a “seignorage”, o que significa que os estrangeiros devem vender bens e serviços reais ou a propriedade do capital social real para adicionarem ao seu entesouramento de reservas de dólares.

Taxas baixas de juros. Os EUA conseguiram ter grandes volumes de dívida para com o exterior expressas na sua própria moeda e com taxas de juros baixas. O papel do dólar como moeda de reserva mundial reduz as taxas de juros nos EUA, porque os investidores estrangeiros gostam de investir na economia relativamente segura dos Estados Unidos.

Custos de transação mais baixos. Os empresários americanos, os mutuários e os credores dos EUA enfrentam menores custos de transação e risco de câmbio quando podem negociar na sua própria moeda. É mais fácil fazer negócios com pessoas que aceitam negociar em dólares.

Poder e Prestígio. O estatuto do dólar como moeda de reserva dominante dá aos Estados Unidos poder e prestígio político. A perda do estatuto de moeda reserva da Grã-Bretanha no século 20 coincidiu com a sua perda de preeminência política e militar.

 

  1. Penso que este é um resumo bastante justo dos argumentos geralmente utilizados em favor do apoio ao “dólar rei”, e penso que vale a pena abordá-los especificamente. Quanto às vantagens da seniorage, estas vantagens são realmente o fundamental do debate. Se os EUA acreditam que é importante para o sistema de comércio global que os EUA produzam reservas suficientes para o crescimento da economia global e, se o sistema de comércio global beneficiar os EUA, então deve fazê-lo. Desde que o crescimento das reservas globais seja inferior ao crescimento da economia dos EUA, o aumento da dívida associado é sustentável.

Mas, e isto é o dilema Triffin, se as reservas e outras acumulações governamentais de ativos dos EUA crescerem mais rapidamente do que o PIB dos EUA, a seniorage resulta num aumento insustentável da dívida dos EUA (ou de desemprego). No meu texto já anteriormente citado, argumentei que o primeiro caso pode ter sido o caso nos anos 50, mas como o crescimento do PIB mundial excede o crescimento do PIB dos Estados Unidos, quanto mais países e regiões se juntarem ao sistema de comércio global, e porque há uma convergência entre economias avançadas e atrasadas, o crescimento da dívida dos EUA necessário para capturar esses benefícios ou se torna insustentável ou, para restringir o crescimento da dívida, exige um aumento no desemprego nos Estados Unidos.

  1. Quanto às taxas de juros mais baixas, mostrei no meu livro porque é que as compras externas de títulos do governo dos EUA não reduzem as taxas de juros dos EUA. Na melhor das hipóteses, simplesmente distorcem a curva de rendimentos dos EUA e, no longo prazo, aumentam-nas. Não vou aqui repetir a explicação completa, especialmente porque há um pouco de circularidade na argumentação e contra-argumentação: se o excesso de carga faz com que o desemprego aumente, como argumentam Austin e Bernstein, as receitas fiscais devem cair e as despesas fiscais devem aumentar, levando a que o total da dívida governamental aumente no mesmo montante ou mesmo mais (porque a maioria de nós concordaria que a procura criada pelas despesas públicas é menos eficiente do que a procura criada pelo comércio internacional) do que as entradas de capital disponíveis para financiar a dívida pública.

Portanto, a disponibilização de recursos adicionais é igual ou inferior à procura adicional de financiamento. Mas se o leitor achar que o desemprego não aumenta, como Riley e Wilson podem argumentar (não tenho certeza se o fazem ou não), a dívida total não aumenta, ou não aumenta muito, e o financiamento adicional deve fazer com que as taxas de juros diminuam. Para manter esta ideia presente, gostaria de sugerir simplesmente que consideremos o seguinte.

Quanto maior for o défice da balança corrente de um país para com o exterior, por definição, maior é a entrada de dinheiro estrangeiro para comprar os seus ativos, principalmente títulos do governo no caso dos EUA e de muitos outros países. Quanto maior o excedente da balança corrente de um país, por definição, maior a saída de dinheiro para comprar ativos estrangeiros e menor será a quantidade de dinheiro internamente disponível para comprar ativos domésticos. É razoável, então, assumir que quanto maior o défice da balança corrente de um país, menor serão as taxas de juros, enquanto maior o excedente da balança corrente de um país, maiores as taxas de juros? Isto é o que implica o argumento das taxas de juros mais baixas.

  1. Abordando a questão dos custos de transação, embora seja verdade que comerciar em dólares norte-americanos reduz os custos de transação para as empresas americanas, é difícil acreditar que esses custos de transação não tenham importância nos preços das importações e exportações das suas contrapartes estrangeiras. Mais importante ainda, não é claro que reduzir as compras dos bancos centrais dos títulos do governo dos EUA fará com que os custos de transação aumentem. A grande maioria do volume de negociação não consiste em compras de bancos centrais dos títulos do governo dos EUA. Trata-se de comércio internacional e de investimento que com ele está relacionado. Se os bancos centrais estrangeiros estiverem limitados na sua capacidade de guardar as reservas em dólares norte-americanos, os custos das transações cambiais mal se moveriam.
  2. Para abordar a questão do poder e do prestígio, embora possa ser verdade que a perda do estatuto da libra como moeda de reserva pela Grã-Bretanha no século 20 coincidiu com a perda da preeminência política e militar, penso que é incorreto sugerir que a Grã-Bretanha perdeu o poder e o prestígio após a Grande Guerra principalmente, ou mesmo em parte, porque a libra esterlina perdeu o seu estatuto como moeda de reserva dominante (o que na verdade realmente ocorreu em algum momento nos anos 1930 e 1940). Foi a destruição, durante os dois primeiros anos da Grande Guerra, do papel de Londres no financiamento do comércio internacional (que formara a grande maioria dos empréstimos internacionais na época, com quase todo o mercado de finanças comerciais a mudar-se para a neutra Amesterdão e para Nova York), seguido depois pelo bombardeamento de Londres na Segunda Guerra Mundial, que causou que Londres tenha perdido a sua preeminência financeira.

Ainda hoje, é difícil associar o papel atual de Londres como primeiro ou segundo centro financeiro mais importante do mundo, dependendo de como nós o medimos, com o estatuto de libra esterlina como moeda de reserva. Além do mais, o dólar dos EUA só se tornou a moeda de reserva dominante nas décadas de 1930 e 1940, mas os EUA eram já o principal poder económico – nominalmente, per capita e tecnologicamente – na década de 1870. Diria que o poder e o prestígio dos EUA provavelmente têm mais a ver com a dimensão e o dinamismo da sua economia, com a criatividade de Hollywood e Nova York em entretenimento e moda, com inovação tecnológica em São Francisco, Boston, Nova York, Austin e noutros lugares, com os seus compositores e artistas em Nova York, São Francisco e algures, com a sua superioridade militar esmagadora, com o seu ideal universalmente avaliado de inclusão étnica e individualismo, com as suas universidades da Ivy League, com as elites universitárias, com os seus centros de reflexão, ditos think tanks, com os seus espantosos cientistas e com uma série de outros fatores mais importantes do que a denominação monetária das reservas do banco central.

 

Texto disponível em http://carnegieendowment.org/chinafinancialmarkets/56856

 

Leave a Reply