A Europa impotente face à perspetiva de uma tragédia global ? Texto 5. Pacto de estabilidade bloqueado no Ecofin. É a batalha sobre o Mecanismo Europeu de Estabilidade. Por Roberto Ciccarelli

Berlim encontro refazer o muro

Um mês de março intenso em reuniões, em tragédias, em desacordos afirmados, em acordos adiados, em ameaças feitas e desfeitas ou adiadas, tudo isto se passou na União Europeia que se mostra claramente impotente face à tragédia Covid 19 e à crise financeira que nos bate à porta com uma enorme violência.

Um relato destes dias que mais parecem dias de loucura é o que aqui vos  queremos deixar nesta pequena série de textos intitulada A Europa impotente face à perspetiva de uma tragédia global ?

31/03/2020

JM

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Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

Texto 5. Pacto de estabilidade bloqueado no Ecofin. É a batalha sobre o Mecanismo Europeu de Estabilidade.

Roberto Ciccarelli Por Roberto Ciccarelli

Publicado por Il Manifesto em 24/03/2020 (ver aqui)

 

Reações em cadeia. No Eurogrupo o caminho para a mediação proposta pela Itália está cheia de obstáculos. Gentiloni (UE): “Uma recuperação rápida será impossível”. Semana crucial para as políticas anti-vírus

Texto 5. Pacto de estabilidade bloqueado no Ecofin. É a batalha sobre o Mecanismo Europeu de Estabilidade 1
Valdis Dombrovskis e Paolo Gentiloni (Comissários UE)

 

Os 27 ministros das finanças da União Europeia, reunidos ontem por videoconferência, deram luz verde à suspensão do “Pacto de Estabilidade e Crescimento” proposto pela Comissão Europeia na passada sexta-feira para todos os países afetados pela emergência sanitária induzida pelo coronavírus. É um parecer que permitirá ao Eurogrupo – já reunido ontem à noite de forma restrita e depois novamente hoje – e aos Chefes de Estado reunidos num Conselho Europeu extraordinário na próxima quinta-feira, aprovar finalmente a suspensão do “pacto” e estabelecer um quadro mínimo de uma política económica coordenada sobre a qual não existe uma orientação unívoca por parte dos governos, mas pelo menos três hipóteses diferentes.

Para o Comissário da UE para a Economia Paolo Gentiloni, a Comissão o que deveria ter em cima da mesa  seria o reconhecimento aos países afetados pelo vírus de linhas de crédito de precaução pelo “Mecanismo Europeu de Estabilidade ” (MEE ou “Mecanismo de Resgate de Estados “); a segunda hipótese seria uma cobertura apenas das despesas de saúde causadas pela emergência; a terceira é a emissão de obrigações pelas instituições europeias, por exemplo o MEE, para financiar despesas relacionadas com a crise através da emissão de “coronabonds”.

Segundo estas hipóteses, o Mecanismo Europeu de Estabilidade não deveria conceder crédito em troca de planos de retorno devastadores que, uma vez terminada a crise do vírus, produziriam um massacre social pior do que o já hoje previsto. Seria uma situação politicamente insustentável para todos os países que, a nível nacional, começassem a afetar recursos deficitários para compensar as primeiras consequências do encerramento da produção e da sociedade (“lockdown”). Pelo contrário, o MEE deve conceder o seu crédito, neste momento igual a 410 mil milhões de euros, sem pedir qualquer condicionalidade em troca. Do outro lado da frente, os governos “rigorosos”, a começar pelos holandeses e finlandeses, defendem que terá de haver condições “apropriadas”, ou seja, dinheiro em troca de uma consolidação orçamental e de reformas “estruturais” a acordar com uma governação (o MEE, o BCE e o consenso dos governos). Pode ser uma questão “formal”, mas também há quem veja a reedição da “Troika” e um cenário à “grega”. Nem mesmo na hipótese do “Coronabond” haveria um entendimento entre aqueles que querem uma coordenação europeia das políticas económicas, e já não uma soma das políticas orçamentais nacionais.

O MEE é uma proposta de mediação, feita porque já foi excluída a reforma dos estatutos do BCE como credor de último recurso, a política económica e um orçamento europeu único. Esta impossibilidade levou à procura de um acordo sobre um programa muito discutido que deveria emitir obrigações – os “coronabonds” – que serão assinados pelo BCE, permitindo a injeção de novos recursos, talvez subestimados em comparação com a enorme quantidade de valores  que serão necessários. Ainda não está claro como tal empréstimo seria reembolsado, nem por quanto tempo. Se passasse nesta forma, seria um compromisso que se aproximaria de uma ideia de coordenação europeia, sem, contudo, resolver os problemas reais, tanto políticos como económicos, que estão a ser gerados  pela crise.

A PROPOSTA oficializada na última quinta-feira pelo gabinete do Primeiro-ministro é reconhecer que a crise atual não tem origem “interna”, ou seja, não foi determinada por uma decisão governamental de exceder os parâmetros do défice e da dívida, mas foi induzida por um elemento “externo” – o vírus – na lógica considerada “natural” do Pacto de Estabilidade. A tese que seria apoiada não só pela Itália, mas também pela França e pela Espanha – isto deveria permitir levantar os países afetados pela emergência do estigma moral do “fracasso” causado por um excesso de dívida e desequilíbrios financeiros irreprimíveis causados pelos “países da cigarra” aos olhos dos países “virtuosos”: a Alemanha e seus satélites nórdicos. Uma fábula de penitência  e violenta, um drama protestante, resultante da crise anterior de 2011 sobre a dívida soberana que impunha uma relação de forças que penalizava os Estados mais fracos, considerados “viciosos”, além de terem imposto nas suas constituições a cláusula – não suspensa – de um orçamento equilibrado, como aconteceu também na Itália. Esta forma de entender as relações de poder inter-capitalistas como uma comédia moralista acabaria, já que o vírus, entendido como um evento vindo de um mundo extraeconómico, está a atingir todos os países com a mesma gravidade, levando-os a uma violenta e prolongada recessão. Tudo para mostrar que esta atitude mudou ou, como é mais provável, está a evoluir para uma nova e inflexível garra de aço. O que, desta vez, pode ser seguido de respostas imprevisíveis e não convencionais por parte daqueles que se consideram lesados. Sobre esta crise, o ectoplasma chamado Europa está a jogar a sua última aparência de realidade política.

INCERTEZAS, não só lexicais, deste conflito resoluto surgiram também no comunicado Ecofin, segundo o qual “a utilização da cláusula garantirá a flexibilidade” adotada pela Comissão Europeia e protegerá “as nossas economias”. Os ministros das Finanças não mencionam a “suspensão” do “pacto” e reivindicam o compromisso de “respeitá-lo”, esperando que os governos evitem causar danos à “sustentabilidade das finanças”, mesmo que exijam uma “ação decisiva” contra o “choque” causado pelo vírus. É ainda uma abordagem minimalista, inspirada na ideia de que o “depois” será como o “antes”. E que a crise é transitória em comparação com uma lei económica e moral capaz de sobreviver à pandemia e trazer-nos de novo de volta o sol do “crescimento” para brilhar sobre o que, na realidade, corre o risco de ser um deserto.

SOB ESTA PERSPETIVA, Gentiloni é quem mostra as ideias mais claras: “A crise não pode ser enfrentada com instrumentos utilizados no passado, porque as suas origens e natureza não devem ser confundidas com as de 10-12 anos atrás”, disse ele. Quanto à natureza desta crise, parece que a esperada tendência em “V”, ou seja, um violento golpe e um rápido aumento do PIB (para menos 5% na Itália?), para o Comissário para os Assuntos Económicos seguirá um ritmo completamente diferente: “U” ou mesmo “L”, ou seja, a recessão será seguida de uma depressão. Na quinta-feira uma resposta pode vir, mas mesmo isso pode não ser definitivo, somando-se à crise da emergência sanitária, mais outra crise  política e económica.

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O autor: Roberto Ciccarelli é filósofo, blogger e jornalista, escreve para o Il Mannifesto. Ele publicou, entre outros, Il Quinto Stato (com Giuseppe Allegri), La furia dei cervelli (com Giuseppe Allegri, 2011), 2035. Fuga do precariato (2011), e Immanenza. Filosofia, direito e política da vida do século XIX ao século XX (2009). Ele está entre os editores do blog La furia dei bravelli. O seu último livro é Forza lavoro. Il lato oscuro della rivoluzione digitale (Derive Approdi, 2018).

 

 

 

 

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