Obrigado a António Mendonça e à Ordem dos Economistas pela disponibilização deste texto. Pela sua extensão dividimos a publicação do texto em duas partes.
CORONACRISE 2020: QUE CRISE?
1ª Parte
Por António Mendonça (*)
Publicado por , março de 2020 (ver aqui)
Coronacrise 2020: uma crise diferente
Que a atual pandemia global do Covid 19 vai ter repercussões económicas profundas,ninguém tem dúvidas. Qual a dimensão destas repercussões ninguém pode, com certeza, prever. Entre um cenário de mínimo e um cenário de máximo, a diferença pode ser abismal. Vai depender da duração do processo, das dinâmicas que vier a gerar, dos efeitos cumulativos que forem produzidos e, sobretudo, do modo como as pessoas vierem a ser afetadas por tudo. Desde a doença em si, até ao modo como as repercussões na economia se manifestaram nas diferentes dimensões da sua vida pessoal, familiar e social.
E, seguramente, que vai depender muito do modo como os responsáveis económicos e políticos atuarem nos diferentes estágios do desenvolvimento da própria crise.
No imediato, existe a tentação de comparar esta crise com a que se produziu em 2008 – 2009, considerando que os efeitos serão, no mínimo, semelhantes. Mas poderão ir muito para além disso, sobretudo se não forem tomadas medidas radicais, quer no plano nacional, quer no plano europeu, no contexto da zona euro e da União Europeia, quer, inclusive, no plano internacional. Seja a nível das instituições internacionais, como o FMI, o Banco Mundial e outras, seja a nível da cooperação entre Estados e Organizações Regionais.
Estas primeiras comparações são, naturalmente, compreensíveis, mas correm o risco de ficar aquém do que é necessário para atuar com consciência plena do que se poderá estar a passar. Dizemos correm o risco de ficar e não ficam aquém, porque tudo vai depender do modo como o alastramento da pandemia e os seus efeitos económicos e sociais se vierem a desenvolver nas próximas semanas. Em qualquer caso é necessário ter consciência que estamos a atravessar uma situação completamente nova para a maioria das gerações que a estão a viver. Que talvez só encontre paralelo em situações de guerra generalizada que, sem querer ignorar ou menosprezar os terríveis conflitos, mais ou menos localizados, existentes nos quatro cantos do mundo, nunca foram, felizmente, experienciadas pela grande maioria dos países e das populações que agora são atingidos pela situação, nem puseram à prova as instituições nacionais e internacionais nem a capacidade dos seus dirigentes. E esta falta de experiência é um fator essencial que já condicionou a transmissão do fenómeno da China ao resto do mundo e condicionará a eficácia das ações que estão a ser ou vierem a ser empreendidas.
Uma coisa se poderá dizer, desde já. Na medida em que se está a viver uma situação inédita para as gerações em presença e excecional sob todos os pontos de vista, não se pode esperar que as medidas tradicionais, embora ampliadas na sua expressão quantitativa e até mesmo com algumas nuances qualitativas, possam ter efeitos idênticos aqueles que são supostos acontecer em contextos de “normalidade” como as crises económicas que ocorreram antes incluindo a crise de 2008 – 2009. Isto não significa que não se concorde com os pacotes de medidas que têm sido anunciados pelos governos dos diferentes países, um pouco por todo o lado, Portugal incluído, e ainda com as medidas que já foram anunciadas pela União Europeia e da zona euro. Mas, simplesmente, que se tem de estar preparado para todo o tipo de intervenções que se vierem a revelar necessárias, em função de um acompanhamento e monitorização que deve ser permanente e ativa, exercida a diferentes níveis pelas instituições nacionais e internacionais e pelos responsáveis económicos e políticos.
Situando-nos, para já, no plano da União Europeia e da zona euro, de que Portugal é membro de pleno direito, diremos que é chegado o momento de estas duas instituições mostrarem verdadeiramente para que servem.
Uma nova crise cíclica?
E voltemos à crise de 2008 – 2009. Faz algum sentido comparar a crise económica desencadeada pelo Corona vírus com a crise económica e financeira, desencadeada pela crise do subprime americana? A resposta que se pretende dar é que faz todo o sentido.
Não que o desencadeamento da crise atual seja uma mera expressão mecânica de uma dinâmica interna da economia mundial que se produziria inevitavelmente, com um sem Coronacrise. Mas que o modo como ela se irá desenvolver está intrinsecamente ligado à forma como a resposta à crise anterior se processou e ao modo como a economia mundial se desenvolveu desde então até aos nossos dias.
Com efeito, um primeiro paralelo que podemos estabelecer é o fato de ambas as crises se poderem inserir numa nova dinâmica da economia mundial, que se desencadeia com a chamada crise do petróleo do início dos anos 70, que veio interromper um ciclo de crescimento económico contínuo que se afirmava desde o final da Segunda Guerra Mundial. Crescimento com flutuações, é certo, mas sem as manifestações cíclicas de crise e recessão que se haviam manifestado na economia mundial até à crise de 29.
Com a crise dos anos 70, o fenómeno cíclico parece ter reemergido, com crises sucessivas, no início dos anos 80 (de novo tendo como detonador o preço do petróleo), no início dos anos 90, no início do novo milénio, em 2008 – 2009 e agora, resta saber a dimensão, em 2020, com uma regularidade que se pode quantificar entre os 8 e os 11 anos.
Se tivermos presente que desde o final de 2018 a economia europeia e a economia mundial evidenciavam sinais de desaceleração que já estavam a obrigar os bancos centrais, em particular o BCE, a reforçar as políticas monetárias contra – cíclicas, podemos considerar que a economia mundial estava “no ponto” para uma nova crise, bastando, como na crise anterior, um fator detonador. Na crise de 2008 -2009 o elemento detonador foi a crise do subprime americana e o fator de difusão foi a liberdade de circulação de capitais que espalhou a crise, como mancha de óleo, por toda a economia mundial através do sistema financeiro internacional. Na crise de 2020, o elemento detonador foi o Covid 19, aparecido na China, e o fator de difusão foi a liberdade de circulação de pessoas que, igualmente como mancha de óleo, espalhou por toda a economia mundial os elementos de contaminação do próprio sistema económico. Dois tipos de liberdades que, como se sabe, estiveram na origem e deram substância à economia global atual.
Mas o que não deixa de ser interessante também de constatar – e sem querer estar a avançar com nenhuma teoria explicativa da crise atual – é que, se a crise de 2008 – 2009, interrompe um processo de globalização, baseado na alavancagem financeira a uma escala nunca vista, que se afirmava desde os anos 80, hegemonizado pelos Estados Unidos e alimentado pela dinâmica dos chamados défices gémeos (interno e externo), a crise do Coronavírus, curiosamente, vem interromper um processo difícil de caracterizar do ponto de vista das hegemonias, mas em que se evidenciava uma afirmação crescente da economia chinesa por contraponto a um significativo recuo da economia americana e das demais economias desenvolvidas. É interessante mencionar a este propósito a paragem das iniciativas de organização da globalização de matriz ocidental, como a parceria do Atlântico ou a parceria do Pacífico, e o vigor de iniciativas conduzidas pela China, como a “Belt and Road Initiative”, cujas consequências, a ser bem sucedida, poderão significar “apenas” a inversão do caminho que conduziu à configuração da economia global atual de hegemonia ocidental, aberto pelos portugueses no século XV com a expansão marítima. A China, simplesmente, procura com este projeto de enorme dimensão, recuperar as rotas económicas que existiam até essa data e projetá-las para o presente, dando outro sentido à própria dinâmica de globalização e à economia global. Basta recordar que os comboios com mercadorias vindos da China já chegaram a vários países europeus, incluindo Londres através do Túnel da Mancha e a Madrid, regressando com mercadorias desses diferentes países à procedência, reduzindo o tempo de viagem de três e mais semanas para cerca de uma semana. O nosso próprio Primeiro-ministro não se inibiu de incluir Portugal como um dos principais interessados no projeto, aquando da mais recente visita do Presidente chinês ao nosso país.
A questão que se pode colocar – e para a qual não temos ainda uma resposta definitiva – é a de saber em que medida esta crise se poderá afirmar também como uma crise do modelo de globalização que se estava a organizar na sequência da crise de 2008 – 2009. Um modelo que se encontrava em processo de desenvolvimento e que ainda não se tinha consolidado. Como é óbvio, a resposta a esta questão vai depender do modo como a crise de 2020 se vier a desenvolver e das respostas que lhe forem dadas pelos responsáveis económicos e políticos internacionais.
Ora, uma segunda comparação que poderemos estabelecer com a crise de 2008 – 2009 tem a ver, precisamente, com o tipo e a dimensão das respostas que estão já a ser desenhadas. Como vem sendo hábito, os Bancos Centrais dos diversos países tomaram a dianteira e responderam de imediato às dificuldades previsíveis, expandindo quantitativamente o conjunto de medidas que têm vindo a ser utilizadas para responder à persistência dos efeitos da crise de 2008 – 2009 e aos sinais de desaceleração da atividade económica ao longo de 2019: redução ainda maior das taxas de juro, com o aumento das possibilidades de financiamento a taxas negativas, no caso do BCE, alargamento dos prazos de financiamento, redução das exigências em matéria de colaterais, anúncio de compra de dívida pública e privada para além de todos os limites anteriormente concebíveis, programas de financiamento de pequenas, médias e grandes empresas, alargamento dos prazos de reembolso, etc.
Como vem sendo hábito, também, os responsáveis governamentais pelas finanças têm vindo atrás. E depois de a Presidente da Comissão Europeia ter anunciado um conjunto de medidas importantes, em que simultaneamente fez referência a uma “flexibilização” das regras do Plano de Estabilidade e Crescimento, sem deixar de referir a necessidade dos países assumirem a sua “completa responsabilidade”, vem logo depois emendar a mão, a 21 de março, considerando que estão reunidas, pela primeira vez desde 2011, quando foram introduzidas as medidas restritivas orçamentais, as condições que permitem acionar a chamada “cláusula de escape”. Em termos práticos, as condições que, na opinião dos responsáveis, permitem ultrapassar o limite dos 3% em matéria de défice orçamental e suas repercussões em termos de dívida pública. É caso para dizer que é necessário que se anuncie uma catástrofe para que o bom senso se imponha na cabeça de quem deveria estar à frente dos acontecimentos e não a correr atrás dos prejuízos.
2008 – 2009: as contradições da resposta à crise
Todavia, apesar desta aparente tomada de consciência de que a situação que estamos a atravessar é absolutamente excecional, não é certo que o bom senso tenha vindo para ficar. E mais uma vez, a experiência vivida com a crise de 2008 – 2009, pode ser de alguma utilidade para compreendermos também a situação atual.
Quando, logo no início de 2007, se começaram a manifestar os primeiros sinais de que algo ia mal na economia americana e de que os perigos de alastramento à economia mundial eram elevados, não faltou quem dissesse que era uma crise passageira e localizada no mercado das hipotecas do subprime que dificilmente irradiaria para o conjunto da economia americana e muito menos para o resto do mundo. Mesmo quando, do mercado do subprime a crise alastrou para o conjunto do sistema financeiro americano, não poucas foram as vozes, ou as plumas, de quem dissesse que se tratava de uma correção de mercado e que seria contida nos limites da economia americana, com repercussões mínimas no contexto europeu e internacional. Seria importante revisitar os relatórios de organizações internacionais, como o FMI ou a OCDE, ou até mesmo da Comissão Europeia, da altura, para ver o que diziam e as previsões que efetuavam.
É interessante relembrar a ação do BCE em 2007 e 2008, ainda sob a presidência de Jean-Claude Trichet, numa altura em que já se evidenciavam sinais de que a economia mundial estava a entrar numa trajetória de crise e quando os Estados Unidos já estavam a reduzir as suas taxas de juro diretoras (desde agosto de 2007), que decide elevar as taxas de juro de referência em julho de 2008, de 4,0 % para 4,25%, a taxa das operações principais de refinanciamento e de 5,0% para 5,25%, a taxa da facilidade de cedência marginal de liquidez, com o argumento de que a dinâmica da taxa de inflação ameaçava a estabilidade da economia europeia (na altura a taxa de inflação tinha passado de pouco mais de 2% para 3%). Isto, já depois de o governo britânico ter sido obrigado a nacionalizar, em fevereiro desse ano, o banco Northern Rock por insolvência.
Ao longo de 2008, as nuvens negras adensar-se-iam, com vários bancos e outras instituições financeiras a revelarem a sua exposição ao mercado do subprime e a entrarem em insolvência. Mas seria necessário esperar pela derrocada do banco de investimentos Lehman Brothers, em 15 de setembro de 2008, para o mundo finalmente se confrontar com a evidência de uma crise sem precedentes que haveria de prolongar os seus efeitos até aos nossos dias.
Só então, o BCE acorda para a realidade, reduzindo as taxas de juro quatro vezes seguidas, em outubro, novembro e dezembro, para 2,5%, a taxa das operações principais de refinanciamento, agora transformada em taxa fixa, sinalizando a passagem para o controle da oferta de moeda pela taxa de juro, e para 3% a taxa marginal. Ainda assim num plano significativamente superior àquele em que se encontravam as taxas de juro americanas, abaixo dos 2%. Recorde-se, ainda, que só no final de 2008, o FMI reconhece oficialmente que se vive um período de crise.
Recorde-se, igualmente, que é na sequência do pânico que então se instalou que surge o famoso Plano Barroso, do nome do nosso compatriota e ex-Primeiro-ministro, à época Presidente da Comissão Europeia, apresentado no final de novembro de 2008, propondo gastar uma verba de 200 mil milhões de euros de forma articulada pelos países-membros, em projetos de combate à crise. Refira-se que destes 200 mil milhões, 170 mil milhões deveriam sair dos orçamentos nacionais e apenas 30 mil milhões do orçamento comunitário. Para além disso, orientações no sentido da redução de impostos, como o IVA, ou o recurso a financiamentos do BEI para projetos de desenvolvimento de infraestruturas, geradores de emprego e de despesa interna.
Apesar de limitadas na sua dimensão e alcance, estas medidas e orientações tiveram indiscutivelmente impacto. E após a forte quebra da economia europeia em 2009, o ano de 2010 é um ano de recuperação generalizada, incluindo Portugal, com taxas de crescimento significativas, tendo em conta o período que se vivia, que podiam indicar a necessidade de manter e reforçar a orientação.
Mas não foi isso que aconteceu. No final do 1º trimestre de 2010, na sequência de um Conselho ECOFIN, tudo mudou, com a paragem abrupta das orientações no sentido da utilização da política orçamental e monetária com objetivos contra-cíclicos de favorecer a recuperação económica e voltar às orientações restritivas ou pró-cíclicas e de prioridade ao controle da inflação. Ao mesmo tempo, transformou-se uma crise do sistema financeiro internacional e do sistema euro, em particular, na sua qualidade de instrumento de ajustamento da zona monetária comum, numa crise de dívidas soberanas, penalizando, para além de todos os limites, as economias mais débeis, como a portuguesa, já de si fragilizadas pela própria dinâmica do funcionamento da moeda única desde a sua criação, mas agravadas nos seus problemas em resultado dos impactos da crise internacional e das necessidades de financiamento adicional para fazer face às medidas internas adotadas, de caracter expansionista, de combate à crise. De um momento para o outro, aquilo que se havia recomendado antes, no quadro da estratégia definida de combate à crise e do próprio Plano Barroso, transformou-se num despesismo irresponsável. E a flexibilidade orçamental, que se esperava, foi substituída por constrangimentos irrecusáveis e sucessivamente reforçados, conduzindo em todo lado a uma recaída brutal logo no ano seguinte, em 2011, da qual só se haveria de iniciar a recuperação, de forma tímida, em meados 2014. Só em 2018 o FMI, no seu World Economic Outlook de outubro, viria a considerar que as economias europeias e a economia internacional no seu conjunto haviam recuperado de uma forma geral os níveis de atividade anteriores à crise, para voltarem a desacelerar em 2019 e voltarem a cair agora, desta vez num poço de que não se vislumbra o fundo.
Mas o BCE, ainda sob a presidência de Jean-Claude Trichet, não deixou de reforçar esta orientação. Depois de as taxas de juro terem atingido mínimos em 13 de maio de 2009, com 1% e 1,75%, respetivamente, para a taxa das operações principais de refinanciamento e taxa da facilidade de cedência marginal de liquidez, o BCE decide, em 13 de abril de 2011 elevar estas mesmas taxas para 1,25% e 2,00%, uma vez mais tendo como argumento as perspetivas de aceleração da inflação, voltando a subi-las três meses depois, em julho, para 1,50% e 2,25%, respetivamente, reforçando a orientação contracionista e pró-cíclica da política económica, com consequências devastadoras para as economias mais débeis da zona euro, em primeiro lugar, mas igualmente para a zona euro no seu conjunto, como se verificou. Isto, num contexto em que a taxa de inflação, medida pelo HIPC, se situava na casa dos 2,7%. A situação iria mudar radicalmente com a chegada de Mario Daghi, à Presidência do BCE em 1 de novembro de 2011.
Mario Draghi e a nova atitude do BCE
Na primeira reunião sob a presidência de Mario Draghi, em 9 de novembro de 2011, em face do agravamento da situação económica geral na zona euro, o Conselho do BCE decide infletir a orientação do seu antecessor, reduzindo a taxa principal para 1,25% e a taxa marginal para 2,00%, ao mesmo tempo que fixa a taxa da facilidade de depósito dos bancos comerciais no Eurosistema nos 0,5%, procurando desta forma incentivar os empréstimos à economia. Daí para cá segue-se um processo de contínua redução das taxas de juro de referência que levaram a encostar a taxa da facilidade de depósito nos 0%, menos de um ano depois da tomada de posse, em 11 de julho de 2012, à introdução na prática de taxas negativas, com a fixação desta mesma taxa em -0,10%, em 11 de junho de 2014, iniciando ao mesmo tempo o caminho que levaria à fixação da taxa das operações principais de refinanciamento nos 0,% que ocorreria dois anos depois, em 16 de março de 2016. Até chegar à situação atual, com a redução da taxa de depósito em 10 pontos base para -0,50%, e manutenção das taxas, principal e marginal, em 0, 0% e 0,25%, respetivamente, o que seria decidido na penúltima reunião do Conselho do BCE sob a presidência de Draghi, em 18 de setembro de 2019.
Esta mudança de atitude do BCE, protagonizada pela liderança de Mario Draghi, deve ser enfatizada e talvez se deva a ela, não apenas a criação de condições para a recuperação, ainda que tímida, da economia europeia da recessão em que mergulhou a partir de 2011, como também a própria sobrevivência da zona euro no seu conjunto.
De facto, o agravamento da situação económica na zona euro em 2011, 2012 e 2013 abriu espaço para o BCE pôr em marcha um vasto plano de intervenção direta na economia, em oposição aberta às posições dominantes até então, sobretudo da Alemanha, substituindo-se inclusive aos próprios responsáveis pela condução da política económica sediados no Ecofin. Uma intervenção que se prolongou até hoje, sob a forma das chamadas medidas nãoconvencionais de política monetária que, na prática, se traduziu na injeção direta de liquidez na economia, contrariando a autoalimentação das dinâmicas contracionistas e assegurando ao mesmo tempo o funcionamento dos canais de financiamento às empresas e ao próprio Estado através de mecanismos complexos de compra de dívida pública e privada.
É de salientar ainda que esta nova postura do BCE representou, na prática, uma total descrença na capacidade do sector financeiro para exercer as suas funções tradicionais, optando pela criação de canais diretos de transmissão monetária à economia, convergindo para uma orientação do tipo quantitative easing, seguida pelo Fed e outros bancos centrais, em linha com o papel de credor de última instância dos bancos centrais. Uma orientação antes rejeitada ou, pelo menos, não assumida até então e que ainda hoje, apesar de tudo o que aconteceu e está a acontecer, ainda encontra séria oposição, por parte dos setores mais ortodoxos. As mais recentes dificuldades em chegar a um consenso no Ecofin e no Conselho Europeu, relativamente ao pacote de medidas para enfrentar a crise (ver reuniões da semana que se iniciou em 23 de março), onde uma vez mais se fez sentir o peso da oposição da Alemanha e de outros países do norte da Europa, face às propostas dos países do Sul, é disso uma expressão.
As limitações da política monetária não convencional
Importa ter presente que, apesar das boas intenções de base das medidas não-convencionais e dos resultados positivos obtidos, se revelaram, também, os limites reconhecidos da própria política monetária, para lidar sozinha com a persistência de uma situação recessiva. Foi-se assistindo ao longo do período que a política monetária não convencional se desenvolveu a um processo de exaustão progressiva da eficácia de todo o conjunto de medidas, bem patente na decisão de fixar a taxa de juro das operações principais de refinanciamento em zero por cento e, mais do que isso, na possibilidade de financiamento da economia a taxas negativas, o que foi reforçado no primeiro pacote de medidas anti-crise adotado na presidência de Christine Lagarde. Vista nesta perspetiva, a política monetária não convencional parece ter desempenhado na economia da zona euro o mesmo papel que certos medicamentos desempenham nos doentes dependentes que necessitam de doses cada vez maiores desses medicamentos para controlar os sintomas da doença de que padecem, à medida que o organismo se vai habituando à substância e a doença permanece.
Mas, voltando a insistir na questão, o que terá levado a recessão económica na zona euro a durar para além do que seria de esperar, não obstante toda a intervenção do BCE e num contexto em que, à partida, se esperaria que estivessem disponíveis todos instrumentos necessários para lidar de forma eficaz com os problemas?
Olhando retrospetivamente não será difícil compreender que uma das razões fundamentais esteve na ausência de políticas económicas efetivas e integradas da zona euro no seu conjunto de relançamento económico. E a política monetária do BCE, apesar de ter tentado transcender-se nos seus objetivos e formas de intervenção, com a utilização sistematicamente alargada dos instrumentos não-convencionais, não foi suficiente para compensar a ausência dessas políticas. Nem podia ter sido.
Mais do que esta constatação, que hoje corre o risco de ser consensual, é importante reconhecer igualmente que os responsáveis políticos e económicos, estiveram mal na resposta à crise. Estiveram mal, em primeiro lugar, no plano europeu, a nível da Comissão e do Ecofin, de onde se esperaria a intervenção mais forte e decidida e o reconhecimento da crise como uma crise europeia e da zona euro. Mas, estiveram mal também no plano nacional, seja por razões de subordinação forçada às regras europeias, no caso das economias mais débeis, seja por arrogância e exercício do poder, no caso das economias mais fortes, que deveriam ter utilizado a sua maior margem de manobra para melhor “puxar” pelo conjunto, aceitando um processo de ajustamento simétrico, considerado necessário nas próprias discussões teóricas fundadoras da integração europeia, inclusive no âmbito da teoria das zonas monetárias ótimas, a pedra angular da criação do euro. Estiveram mal, desde o momento em que a crise se anunciou, ao ser completamente subestimada nos seus desenvolvimentos. Estiveram mal, nas respostas às suas primeiras manifestações, que foram hesitantes, contraditórias e insuficientes. E estiveram muito mal, no acompanhamento do desenvolvimento da crise, acabando por vir a adotar políticas pró-cíclicas quando se esperaria o recurso a políticas anti-cíclicas, particularmente no âmbito da intervenção das políticas orçamentais que, de expansionistas nas primeiras fases do processo, passaram rapidamente a contracionistas, sob o pretexto dos perigos de aceleração da inflação, ou de aumento da dívida pública, num momento em que mais se justificaria a continuação e o aprofundamento das medidas de sustentação da procura e de apoio ao emprego. Ao fazerem isto, contribuíram decisivamente para o agravamento da recessão e o seu prolongamento no tempo.
Este enquadramento das políticas orçamentais restritivas permite compreender melhor os limites da inflexão da política monetária introduzida por Draghi a partir do final de 2011, quando a situação se deteriorava continuamente. Efetivamente, o que o novo Presidente do BCE se propôs fazer, foi não só fazer uma política monetária expansionista, como substituir por intermédio desta ação a própria política orçamental na sua missão anti-cíclica. O que acabou por se revelar uma tarefa com dupla exigência, pois não só teve de substituir a política orçamental como combater os efeitos pró-cíclicos que ela estava a produzir por todo o lado, em resultado das restrições orçamentais e da aplicação irracional das regras do Pacto de Estabilidade e Crescimento. Ficará para a História da política económica, o discurso de Draghi, proferido na Global Investment Conference, realizada em Londres a 26 de julho de 2012, quando as taxas de juro das dívidas dos países periféricos estavam a bater recordes, onde afirmou que “Dentro do nosso mandato, o BCE está pronto para fazer o que for preciso para preservar o euro. E, acreditem em mim isso será o suficiente”. A partir daí, a porta ficou escancarada para a intervenção do BCE que se prolonga até aos nossos dias, não obstante a substituição de Mario Draghi pela ex-Diretora do FMI, Christine Lagarde.
Compreende-se, deste modo, que a própria política monetária, mesmo nesta versão alargada de política monetária não convencional, tenha acabado por revelar as suas próprias fragilidades e limitações, entrando num processo de progressiva exaustão, empurrando a economia para uma situação muito próxima da chamada armadilha da liquidez, e inclusive para além dela com as taxas de juro negativas. Uma situação em que a política monetária corre o risco sério de deixar de funcionar.
Apesar da adoção da política monetária como substituto da política orçamental, a evolução da situação levou os próprios responsáveis do BCE, em sucessivas intervenções, a pugnar pela necessidade de políticas orçamentais e outras, menos condicionadas pelos objetivos de austeridade e mais orientadas para o relançamento do investimento e, em particular, do investimento público. Uma ideia que foi estendida, para o caso da economia global, pelos responsáveis ao mais alto nível do FMI, como Crhistine Lagarde e Oliver Blanchard, entre outros, e pela OCDE, quando enfatizava no seu Interim Economic Outlook, de 16 de fevereiro de 2016, na sequência do reconhecimento do fraco crescimento económico global, que se verificava então, que “Uma forte resposta coletiva de política é urgente. A política macroeconómica global, compreendendo ações monetárias, fiscais e estruturais, deve tornar-se mais favorável à procura e à afetação de recursos. A experiência até ao momento sugere que a dependência apenas da política monetária foi insuficiente para proporcionar um crescimento satisfatório, de modo que é necessário um maior uso de alavancas fiscais e estruturais”.
E mesmo um ano depois, num contexto em que se divisavam alguns sinais de recuperação da economia global, Mario Draghi, no Fórum do BCE sobre Banca Central, realizado em Sintra, em 27 de junho de 2017, não se coíbe de voltar à carga sobre os limites da política monetária ao afirmar que: “Durante muitos anos após a crise financeira, o desempenho económico foi fraco nas economias avançadas. Agora, a recuperação global está se firmando e ampliando. Uma questão-chave que os decisores de políticas enfrentam é garantir que esse crescimento nascente se torne sustentável.
Os Investimentos dinâmicos que impulsionam um crescimento mais forte da produtividade são cruciais para isso – e, por sua vez, para a eventual normalização da política monetária. O crescimento conjunto do investimento e da produtividade pode desencadear um círculo virtuoso, de modo que um forte crescimento se torne durável e autossustentável e, em última análise, não seja mais dependente de um estímulo considerável de política monetária”.
Como já disse, a recuperação económica continuou a afirmar-se em 2018. Mas na passagem de 208 para 2019 e ao longo de 2019 a situação voltou a deteriorar-se obrigando, inclusive o BCE, na sua reunião de 12 de setembro desse ano, a baixar de novo as taxas de juro, com a redução da taxa da facilidade de depósito em 10 pontos base, de -0,4% para -0,5%, e a retomar a política de quantitative easing, que havia sido suspensa em dezembro de 2018, num montante de 20 mil milhões de euros mensais de compra de ativos, com efeitos a partir de 1 de novembro e levando, inclusive o presidente dos Estados Unidos, numa atitude inédita, a criticar no Twitter o presidente do Fed, Jerome Powell, “por continuar a cobrar juros enquanto os europeus são pagos para pedirem emprestado”. Por ironia, o dia do começo de funções da nova Presidente Christine Lagarde.
E eis que, entretanto, chegou o novo Corona vírus, complicando tudo.
(continua)
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(*) António Mendonça: Doutorado em Economia pelo ISEG (1987) é Professor Catedrático do ISEG – Universidade de Lisboa e coordenador científico do mestrado e do curso de Pós-graduação em Estudos Europeus. Tem vasta experiência universitária no exterior, tendo sido professor convidado da Faculdade de Direito, Economia e Gestão da Universidade de Orléans em França, da Universidade Federal Fluminense e da Universidade Federal da Paraíba, no Brasil, University of National and World Economy (Sofia-Bulgária), Universidade Agostinho Neto (Angola-Luanda, Benguela e Lubango), Universidade Mandume Ya Ndemufayo (Angola-Lubango). Enquanto consultor dirigiu e participou em vários projectos nacionais e internacionais sendo de destacar, entre outros, Projeto “Desenho de um Observatório dos mercados da mobilidade, preços e estratégias empresariais, Projeto de Privatizações e Parcerias Público-Privadas. Realização de um Estudo sobre a percepção da sociedade sobre o Programa de Privatizações e Parcerias Público-Privadas em Cabo Verde. Ministério das Finanças e do Planeamento. Unidade de Privatizações e Parcerias Público-Privadas, Projecto “Estudo Geoestratégico e de viabilidade económica de uma proposta de expansão da armazenagem subterrânea de gás natural em Portugal”. Transgás Armazenagem, S.A, Projecto “A competitividade sectorial em Portugal numa perspectiva comparada. Estudo realizado para o GEPE – Ministério da Economia.
Entre as mais recentes publicações citam-se: “The unconventional monetary policy of the ECB and the international economic and financial crisis: effectiveness versus exhaustion”, in The Euro and the Crisis: Future Perspectives for the Euro zone as a Monetary and Budgetary Union/Costa Cabral, N., Gonçalves, J. R. and Rodrigues, N. C. (Editors), Springer International Publishing Switzerland (2017); “Outward FDI and Sustainable Trade Balance Path: Evidence from Portuguese Economy, 1996-2011”, in Ensaios de Homenagem a José Silva Lopes, (Collective Book), Lisbon (2017); “The Global Crisis and Unconventional Monetary Policy. ECB versus Fed” (with Tuckwell, C.). Working Paper CEsA/CSG 141/2016, Lisbon: CEsA/CSG – ISEG-ULisboa (2016); “The Paradigm of the Investment Development Path: Does it holds for Portugal? Evidence for the period 1990-2011”, Working Paper CEsA/CSG 139/2016, Lisbon: CEsA/CSG – ISEG-ULisboa (2016); e, “Outward FDI and Sustainable Trade Balance Path: Evidence from Portuguese Economy, 1996 – 2011. Working Paper CEsA – CSG 138/2016, Lisboa: ISEG-ULisboa
Foi Ministro das Obras Públicas, Transportes e Comunicações do XVIII governo constitucional de Portugal (2009-2011).
Presidente do CEsA – Centro de Estudos sobre África e Desenvolvimento
Presidente da Delegação do Centro e Alentejo da Ordem dos Economistas.