Um mês de março intenso em reuniões, em tragédias, em desacordos afirmados, em acordos adiados, em ameaças feitas e desfeitas ou adiadas, tudo isto se passou na União Europeia que se mostra claramente impotente face à tragédia Covid 19 e à crise financeira que nos bate à porta com uma enorme violência.
Um relato destes dias que mais parecem dias de loucura é o que aqui vos queremos deixar nesta série de textos intitulada A Europa impotente face à perspetiva de uma tragédia global ?
31/03/2020
JM
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Seleção e tradução de Júlio Marques Mota
Texto 29. A moeda de helicóptero, uma boa ideia?
Por Pierre Khalfa
Publicado por (La monnaie hélicoptère, une bonne idée?) em 10/04/2020 (ver aqui)
O dinheiro de helicóptero consiste em o Banco Central pagar dinheiro diretamente às famílias para combater a deflação. Há argumentos para duvidar dos seus méritos, mas o de Henri Sterdyniak não é o mais correto.
Num ponto de vista publicado no Médiapart [1], Henri Sterdyniak denuncia o engodo do dinheiro de helicóptero. Recordemos que esta metáfora, evocada pelo monetarista Milton Friedman há décadas, consiste em o Banco Central pagar dinheiro diretamente às famílias para combater a deflação.
Esta ideia está a ter agora uma certa atração devido ao fracasso das políticas de flexibilização quantitativa (QE) conduzidas pelos principais bancos centrais para sair realmente da estagnação económica. Se na Europa a recompra da dívida soberana do BCE impediu que a zona euro se desfizesse , as medidas tomadas resumem-se à distribuição de dinheiro aos bancos, na esperança de que estes tenham um refinanciamento mais fácil quando emprestam às empresas e às famílias, a fim de relançar a atividade económica. Mas porque razão as empresas investiriam quando a procura pública ou privada está a ser dizimada por políticas de austeridade e a atividade económica está a estagnar? A forte injeção de liquidez conduziu a uma situação a que os economistas chamam “armadilha da liquidez”, em que a política monetária se torna pouco ou nada operante. Devido à falta de procura, o dinheiro do BCE teve muito pouco efeito na política de crédito dos bancos e a liquidez foi em parte mantida nas contas dos bancos no BCE – apesar de uma taxa de depósito negativa – para fazer face a tempos difíceis. A inflação do preço dos ativos financeiros e o forte crescimento da dívida das empresas mostraram que o dinheiro disponibilizado pelo BCE também alimentou uma nova bolha financeira, uma vez que os bancos começaram a conceder empréstimos para utilizações financeiras de instituições financeiras ou de grandes empresas: em particular, recompra de ações, fusões e aquisições.
O fracasso destas políticas alimentou a ideia de um QE para as pessoas, exemplificado pela moeda de helicóptero. Em vez de dar dinheiro aos bancos, porque não dá-lo diretamente às famílias? Uma ideia que parece senso comum contra a qual Henri Sterdyniak se opõe com um curioso argumento para um economista heterodoxo. Um dos argumentos para defender a ideia da moeda de helicóptero remete para a ideia de que ela evitaria o aumento da dívida pública, contrariamente a uma política orçamental ativa destinada a aumentar os benefícios sociais. Henri Sterdyniak opõe-se a esta ideia porque para ele “temos de considerar o todo, o Estado mais o Banco Central, cuja dívida líquida total evolui da mesma forma, quer seja o Estado ou o Banco Central a pagar dinheiro às famílias”.
Para ele, portanto, o Banco Central é um banco como qualquer outro que não pode senão endividar-se ao pagar dinheiro às famílias. Isto é não ver que um Banco Central tem uma característica particular que o diferencia de todos os outros bancos: tem um poder ilimitado para criar dinheiro. Por conseguinte, não se endivida, cria dinheiro ex nihilo e pode fazê-lo enquanto os cidadãos continuarem a ter confiança na moeda em questão e enquanto um sistema produtivo for capaz de produzir os bens e serviços necessários, no caso da zona euro, desde que esta não esteja ameaçada de um colapso iminente ou enquanto a hiperinflação for uma coisa do passado. A recusa de Henri Sterdyniak em ver o fenómeno da criação monetária leva-o a denunciar a “lacuna nas regras orçamentais europeias” que apenas tratam do défice e da dívida pública e a defender o facto de que estas regras devem “dizer respeito ao Estado total + Banco Central”. Será que isto significa que as regras orçamentais europeias devem ser mais rigorosas? Além disso, com tal conceção, como se pode entender que o Banco de Inglaterra possa decidir financiar diretamente as despesas relacionadas com a crise sanitária [2]?
Há, no entanto, uma boa razão para estar céptico em relação à ideia do dinheiro de helicóptero. Para além do facto de dar dinheiro às famílias que não precisam dele constituir um problema, baseia-se no facto de que bastaria dar poder de compra às famílias para impulsionar a economia e, assim, resolver os problemas que enfrentamos, sem questionar o tipo de produção e de consumo a promover ou a reduzir. Não há dúvida de que para uma grande parte da população, para quem o final do mês está a tornar-se cada vez mais difícil, a questão do poder de compra é central e a crise atual irá amplificar ainda mais este problema. Mas será o tipo de estímulo económico que precisamos? A resposta é não, porque é esta economia, sob o regime do capitalismo financeiro globalizado, que é responsável pela situação atual, tanto pelo produtivismo que lhe é consubstancial como pela deslocalização e internacionalização das cadeias de valor, bem como pelas políticas de austeridade que têm minado, em particular, os sistemas de saúde. A atual crise sanitária é, portanto, um momento de verdade e não será suficiente dar às famílias um pouco de dinheiro para a resolver. Trata-se de uma bifurcação radical na sociedade que deve ser abordada.
Notas
[1] Henri Sterdyniak https://blogs.mediapart.fr/henri-sterdyniak/blog/090420/pour-en-finir-avec-la-monnaie-helicoptere
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O autor: Pierre Khalfa, Antigo co-presidente da Fundação Copernicus, membro do Conselho Científico de Attac.