A propósito da crise económica dita Covid 19: a reforma do Mecanismo Europeu de Estabilidade, uma arma apontada à Itália, ou o regresso às falidas políticas austeritárias – um tema de que não se fala em Portugal – 16. A minha explicação dos objetivos e dos riscos do MEE reformado. Por Giuseppe Liturri

 

A reforma do MEE que vinha a ser preparada desde 2019 (decisão do Conselho Europeu de 14/12/2018), e sofreu um abrandamento com a crise do Covid e também pela oposição da Itália, acabou por ser aprovada no Conselho de 30/11/2020. Segue-se em 2021 o processo de ratificação pelos respetivos Estados-membros.

Estranhamente, instalou-se um silêncio ensurdecedor em torno deste assunto: apenas a Itália vinha a opor resistência ao avanço do processo e, salvo uma ou outra exceção (v.g. Wolfgang Münchau), são principalmente autores italianos os que têm levantado justificadas críticas à continuação da existência do MEE e ao prenúncio de regresso às políticas de austeridade que representa este MEE reformado.

Finalmente, o governo italiano, e à revelia das promessas feitas por um dos parceiros da coligação (o Movimento 5 Estrelas) ao seu eleitorado, cedeu. Mas, como diz Giuseppe Liturri (in “Porque é que o acordo maioritário sobre o MEE é um suicídio negocial”) “a noção enganadora de que um empréstimo MEE pode ser uma escolha discricionária é uma piedosa ilusão”, e “quem se ilude e ilude os italianos [n.ed., e outros que não apenas os italianos] acerca de um compromisso razoável entre a reforma do MEE aceite hoje e outras reformas favoráveis a nós que virão amanhã, está a mentir, sabendo que está a mentir”.

Mas, afinal, o acordo estabelecido pelo Conselho Europeu de 17/21 de julho passados sinalizava já com clareza o caminho de regresso à aplicação do modelo neoliberal de políticas austeritárias, de domínio de umas nações sobre outras. A reforma do MEE é, tão somente, um dos passos desse caminho.

FT

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Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

 

16. A minha explicação dos objetivos e dos riscos do MEE reformado   

 Por Giuseppe Liturri

Publicado por em 03/12/2020 (original aqui)

Tudo sobre a reforma do MEE, com os potenciais efeitos sobre a dívida pública. A análise aprofundada do analista Giuseppe Liturri

 

O MEE é como a hidra, cobra mitológica com muitas cabeças. Cortar uma e sobram sempre muitas, demasiadas. Portanto, compreendemos a perplexidade dos leitores perante o reacender do debate político sobre o MEE. Quando parecia que o debate sobre a linha de crédito especial para despesas de saúde se considerava acalmado e tinha mesmo sido esmagado segundo o presidente do Parlamento Europeu David Sassoli, eis que agora estamos de novo a lidar com o MEE “completamente opcional“, cuja proposta de reforma, há apenas alguns dias, foi considerada “politicamente impraticável” num documento do think tank berlinense Jacques Delors Centre.

Estamos portanto a falar da reforma do MEE, que foi já objeto de um acordo político “de princípio” que amadureceu entre Junho e Dezembro de 2019, cuja formalização, prevista para os primeiros meses de 2020, tinha no entanto sido deixada em suspenso devido ao início da crise da Covid (aqui está a história detalhada dos acontecimentos).

Há duas mudanças fundamentais nesta reforma:

1) Caso o nosso país perdesse o acesso aos mercados e fosse assim obrigado a recorrer ao empréstimo MEE, este seria dirigido, ex ante automaticamente de acordo com parâmetros quantitativos, para a linha de crédito com condições reforçadas e, nesse momento, o machado da avaliação da sustentabilidade da dívida poderia facilmente decretar a necessidade de uma reestruturação, facilitada também por um voto único dos credores para toda a massa de títulos.

2) Ao lado desta bomba relógio, hoje astutamente colocada em segundo plano, o MEE reformado conteria, dois anos antes do previsto, o famoso “pára-quedas” (backstop), ou seja, um empréstimo de cerca de 68 mil milhões ao Fundo Único de Resolução Bancária (FURB), em caso de incapacidade deste último.

O Presidente Giuseppe Conte desde 21 de Junho de 2019 está entrincheirado por detrás da “lógica do pacote”. Reiterado na resolução parlamentar de 11 de Dezembro de 2019, que obrigava o governo a “manter a lógica do pacote“; “excluir intervenções de tipo restritivo sobre a detenção de obrigações soberanas pelos bancos“; “assegurar o pleno envolvimento do Parlamento em todas as etapas das negociações sobre o futuro da UE e a conclusão da reforma do MEE“. Mas, citando Abraham Lincoln, “pode enganar toda a gente durante algum tempo e alguns para sempre, mas não pode enganar toda a gente para sempre“. Esta promessa já não se mantém e pode ter sido o Ministro das Finanças francês Bruno Le Maire a recordá-lo ao seu homólogo italiano Roberto Gualtieri na quinta-feira 26 [Novembro], mesmo a tempo da reunião do Eurogrupo na segunda-feira seguinte, que foi seguida (e isso é dizer alguma coisa!) pelos agradecimentos do francês.

Evidentemente, o que a agência de informações Ansa relatou, citando “fontes europeias que preparam a reunião do Eurogrupo de segunda-feira” (“não tenho razões para esperar que o empenhamento político assumido pela Itália há um ano sobre a reforma do MEE não seja fiável“: “o texto está encerrado e agora esperamos que todos respeitem o compromisso político assumido, e que isto se reflita também nos procedimentos nacionais“), teve o seu efeito.

Os factos mostram que, apesar de todas as proclamações de Conte e Gualtieri, respeitando formalmente a vontade do Parlamento e a Lei Moavero (n.º 234 de 2012), escolheram a quem enganar ao relegarem para o papel de letra morta as resoluções do Parlamento.

A traição do mandato parlamentar reside precisamente no desaparecimento do “pacote”, que, em vez disso, Gualtieri afirmou, com um descaramento invulgar durante a audição parlamentar de segunda-feira 30 de Novembro de 2020, respeitar totalmente. Com duas omissões graves em relação aos outros dois elementos do pacote (para além da reforma do MEE):

  1. União Bancária significa completar a terceira etapa que consiste no esquema comum de seguro de depósitos, que tem estado “bloqueado durante meses”, como disse ontem a Ministra espanhola da Economia, Nadia Calvino, ao diário catalão La Vanguardia. Gualtieri não pode esconder-se atrás de uma parra de figo da simples proposta desses tópicos ou da constituição do empréstimo-pára-quedas para os resgates bancários: pacote significa que ou há acordo sobre tudo ou não há acordo.
  2. O Bicc (instrumento orçamental para a convergência e competitividade) foi cancelado em Julho pela Next Generation EU, pelo que Gualtieri afirma ter feito melhor. Correto. É uma pena que – como se pode deduzir dos artigos publicados na Bloomberg e no Financial Times – até mesmo Merkel espera agora quebrar a resistência da Polónia e da Hungria e é elevada a probabilidade de que a sessão plenária do Parlamento Europeu prevista para 14 de Dezembro não consiga aprovar a NGEu e tudo será adiado para Janeiro.

O Bicc não está lá e o NGEu também não. Um negociador astuto nunca deveria ter aceite a reforma do MEE, sem ter a certeza do NGEu.

O próprio ex-Ministro da Economia, Giovanni Tria, recordou em Il Sole 24 Ore de 1 de Dezembro de 2019: “A “declaração” da Cimeira (do mês de Junho anterior; ndr) especificava, além disso, que, tal como solicitado pela Itália, nos meses seguintes as negociações deveriam ter prosseguido seguindo uma abordagem global numa lógica de “pacote” com referência às três áreas delineadas no mês de Dezembro anterior – revisão do Tratado MEE, introdução do instrumento orçamental para a competitividade e convergência (o chamado Orçamento da Zona Euro) e a União Bancária, incluindo o Seguro Europeu de Depósitos (EDIS). Por outras palavras, o acordo final deveria cobrir o “pacote” como um todo. Tenho a impressão de que as negociações não avançaram muito nestas outras áreas“.

Até agora, temos discutido o método. Passemos agora à substância.

O apoio do MEE seria baseado numa distinção entre dois grupos, os bons e os maus, com a Itália relegada para o grupo mau precisamente com base nos parâmetros (Pacto de Estabilidade e Pacto Orçamental) que felizmente foram suspensos devido à pandemia e que agora parecem pertencer a outra era geológica. O MEE apenas interviria a favor de Estados cuja dívida fosse julgada sustentável, impondo porém fortes condicionalidades, que podem mesmo ir até uma verdadeira reestruturação preventiva da dívida que, se não for julgada sustentável pelo MEE, se torna de facto uma condição prévia para se poder ter acesso ao empréstimo. Já alguma vez se viu um médico condicionar a administração de um medicamento à ausência de sintomas de doença? É assim que o MEE funcionaria, com a agravante de que a sua mera presença causaria a própria doença. De facto, a análise da sustentabilidade da dívida, realizada de forma preventiva e sistemática, significa aceitar a transmissão aos mercados de critérios pontuais com base nos quais se verifica a probabilidade de um Estado estar entre os bons ou os maus, arriscando-se a desencadear a especulação à descida do valor das nossas obrigações do Estado. “Um instrumento de apoio que parece concebido para penalizar mais precisamente aqueles que possam precisar mais desse apoio“, assim o definiu o presidente do CER (Centro Europa Ricerche) Vladimiro Giacché numa audiência parlamentar no final de 2019 e, após um ano, é difícil encontrar uma síntese melhor.

Estes instrumentos de assistência financeira são perfeitos para desencadear uma nova crise de dívida, continuando assim os graves erros de 2011-12“, acrescentou Giacché.

Exactamente nessa mesma altura, o governador de Bankitalia, Ignazio Visco, identificou perfeitamente o risco de reestruturação da dívida, especificando que “tal reforma faz parte das iniciativas destinadas a reduzir a incerteza sobre as modalidades e o calendário de uma possível reestruturação da dívida pública […] Os benefícios limitados e incertos de um mecanismo de reestruturação da dívida devem ser ponderados face ao enorme risco que a sua introdução acarretaria: o simples anúncio de tal medida poderia desencadear uma espiral perversa de expectativas de insolvência, susceptíveis de se auto-realizarem“.

Assim, deve ser explicado que a reforma do “Resgate a Estados” marca um ponto de viragem de excecional importância para o futuro da economia do nosso país, pois existe um enorme risco de institucionalização da presença da Troika no Palazzo Chigi.

Estes riscos são descritos com precisão num interessante estudo sobre este tema publicado em Maio passado e co-assinado pelo director de assuntos jurídicos do MEE, Jasper Aerts, portanto uma fonte acima de qualquer suspeita.

O MEE é um instrumento para tornar uma reestruturação ordenada da dívida pública controlável. Pura e simplesmente. E produz danos pelo simples facto de existir, porque facilita uma profecia auto-realizada, bem resumida pela lei de Murphy: se algo pode correr mal, correrá. E na pior altura possível, podemos acrescentar.

As cláusulas de ação coletiva (CACs) de critério único, [n.t. single limb em inglês, traduzido também de método de votação única sobre toda a dívida pendente] para todos os títulos em circulação (por oposição a um voto duplo separado para cada série e para todos os títulos, double limb), impedem que um credor detentor de mais de 33% dos títulos de uma única série bloqueie a reestruturação de toda a dívida. E é, portanto, um incentivo extraordinário para fazer fugir os investidores receosos de reestruturação. Uma tal fuga leva, por sua vez, o Estado emissor a perder o acesso aos mercados com a consequente entrada em cena de empréstimos do MEE condicionada a um programa de ajustamento macro (no melhor dos casos) ou a uma reestruturação da dívida. De facto, o MEE, como entidade credora, não pode emprestar a um Estado em risco de incumprimento e o Estado seria forçado, para aceder ao empréstimo, a pedir aos credores uma redução da dívida que a tornasse sustentável. Ou um mega património sobre os ativos financeiros e reais dos italianos. Uma sequência causal mortal, que tem o seu gatilho na avaliação da sustentabilidade da dívida realizada ex ante pelo MEE. Este exercício concluiu-se positivamente para o nosso país em Maio passado, apenas porque contém o objetivo de reduzir o rácio dívida/PIB para o nível pré-Covid até 2031. 25 pontos a menos em 10 anos: 2,5% por ano. A clássica sangria que ameaça matar o doente. Esta sequência causal tornar-se-ia ainda mais provável e rápida se um novo governo decidisse não respeitar este caminho de recuperação, fazendo diferentes escolhas de política orçamental. Nesse momento, os homens da Troika podem já ter preparado as suas malas.

Estas cláusulas oferecem, sem mesmo muito esforço, uma arma para o Estado Membro puxar o gatilho. Mas pior ainda: os investidores, tendo conhecimento deste cenário provável, tentarão desinvestir rapidamente, criando instabilidade financeira e contribuindo assim para a ocorrência do temido acontecimento. Mesmo para o departamento jurídico do MEE, este é um cenário possível (“não é uma situação a preto e branco, só o tempo o dirá“), mas não para Gualtieri, que nos oferece um outro cenário: a ausência de uma prévia reestruturação automática da dívida. E isso é tudo o que precisamos! Gualtieri fala de discricionariedade concedida aos Estados nas suas decisões, o que é, no entanto, irrelevante, uma vez que o MEE irá impor a sua presença sem necessidade de ser chamado, pelo mecanismo causal acima descrito. É o principal instrumento para impor a disciplina dos mercados (velho projeto do alemão Wolfgang Schauble exposto no seu não-papel de finais de 2017), que obriga um Estado-membro, com implacável eficácia, a votar por unanimidade até mesmo a decisão de puxar o gatilho sobre si próprio (o nosso voto a favor do Pacto Orçamental e do resgate no passado recente deve ensinar‑nos alguma coisa). Esclarecedor a este respeito, o que foi escrito pelo prestigioso colunista, que está no Financial Times há 17 anos, Wolfgang Munchau.

Mas não falta perplexidade quanto aos méritos, mesmo quanto ao aspeto da reforma mais exaltado por Gualtieri. O ministro ampliou as virtudes do novo empréstimo pára-quedas (backstop) que o MEE deveria poder fornecer em favor do Fundo Único de Resolução a partir de 2024. Segundo ele, a antecipação para 2022 desta linha de crédito de 68 mil milhões com um vencimento de 3 anos renováveis, é algo de que se pode orgulhar, pois deriva de uma avaliação de risco positiva dos nossos bancos, que reduziram consideravelmente as dívidas de cobrança duvidosa nos últimos anos. O que o Ministro não nos disse é que este Fundo era apenas de 33 mil milhões em Julho de 2019 e espera-se que atinja cerca de 1% dos depósitos da Zona Euro até ao final do período de transição (2023). Ele teve também o cuidado de acrescentar que a intervenção do FUR em caso de falência de um banco pressupõe uma fiança de até 8% do passivo do banco envolvido, o que, como vimos em Itália há apenas alguns anos, não é exatamente um fator de estabilidade e paz de espírito para os aforradores.

Então o que acontecerá até 27 de Janeiro de 2021, quando os ministros plenipotenciários dos 19 países da zona euro assinarem o acto de adoção da reforma do Tratado MEE, dando início ao processo de ratificação pelos seus parlamentos nacionais, o que poderá demorar cerca de um ano? Será a espera tão cheia de reviravoltas como a espera do comboio das 3h10 no filme americano Que Comboio para Yuma?

Evidentemente, o acordo político alcançado na segunda-feira no Eurogrupo é um passo decisivo, mas não final, para a conclusão de todo o caso. Há pelo menos dois outros passos significativos: a 9 de Dezembro, o Presidente Giuseppe Conte irá às Câmaras do Parlamento para as habituais comunicações que precedem cada Conselho Europeu e Cimeira Euro e, nessa ocasião, haverá uma votação sobre uma ou mais resoluções políticas (normalmente uma da maioria e outra da minoria). No dia 11 de Dezembro seguinte, Conte participará na Cimeira do Euro, onde a vontade política expressa pelo Eurogrupo será apoiada pelos Chefes de Governo.

É provável que na próxima quarta-feira no Parlamento Italiano todas as tensões que surgiram dentro do M5S explodam após a audição do Ministro Roberto Gualtieri e o seu posterior apoio à reforma pela parte do M5S. E hoje já tivemos um aperitivo substancial com uma carta de oposição à reforma de 52 deputados e 17 senadores do Movimento. Na terça-feira, a oposição já tinha estado unida.

A espera do comboio para Yuma não será pois monótona.

 

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O autor: Giuseppe Liturri, jornalista e comentador económico italiano.

 

 

 

 

 

 

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