Meus caros amigos e amigas
Tenho vergonha pelo que se passa pelo nosso país, tenho vergonha pelo que se disse sobre a formação dos juízes deste nosso país, sobre o que não se diz sobre a formação dos nossos estudantes- e os juízes de se falou foram até muito recentemente estudantes- que o governo quer formar à pressa para dizer que temos a geração mais diplomada de sempre, e talvez nos grandes números, seja a geração menos formada de sempre, tenho vergonha pelo que se passou agora em Olhão com os assaltos e espancamentos a imigrantes, tenho vergonha pelo que se passou em Odemira, onde toda a gente sabia que ninguém sabia (!), tenho vergonha pelo que mais tarde se descobriu em Odemira, que pouco ou nada tinha mudado, Tenho muita vergonha pelo que agora se verificou na Mouraria, em que os imigrantes viviam exatamente como na casa da rotunda, em Faro.
Sobre este último incidente diz-nos o Expresso:
“O incêndio que atingiu na noite deste sábado um T0 no edifício no bairro da Mouraria no número 55 da Rua do Terreirinho, causou duas mortes, entre as quais um jovem de 14 anos, tendo ainda ferido 14 pessoas, das quais quatro crianças.
A tragédia pôs a nu as condições de habitação de uma população fragilizada, maioritariamente composta por estrangeiros, muitos dos quais oriundos do sul da Ásia e que não dominam com fluência a língua portuguesa. Na tarde de domingo, as portas foram entaipadas pelos Sapadores Bombeiros de Lisboa para impedir que os moradores entrassem, correndo riscos e alterando o cenário que será analisado a partir de segunda-feira pela Polícia Judiciária.
(…)
Em declarações à comunicação social, na noite de sábado, o presidente da junta de freguesia de Santa Maria Maior, Miguel Coelho, admitiu que no edifício poderia estar a funcionar um alojamento local ilegal. “Há aqui muito alojamento local clandestino, isso posso dizer que há”, completou.” Fim de citação.
Ao ler e ouvir falar sobre as condições em que estes cidadãos viviam amontados, quase que uns em cima dos outros, lembrei-me de um texto que escrevi em 2012 e publicado em A Viagem dos Argonautas.
Dez anos passaram e nada terá mudado. Veja-se nestes dez anos quantos anos foram de governação socialista e veja-se então se o socialismo, ao contrário do que dizia Mário Soares, que estava metido na gaveta, não é antes uma palavra eliminada do vocabulário político.
Esta última situação representa a situação de miséria ou de grande miséria em que vive uma quantidade significativa dos migrantes que produzem parte do PIB de que os portugueses usufruem e vivem como gente sem direitos, apenas com deveres e muitos destes últimos não inscritos nas leis portuguesas. Inacreditável. Pelos vistos temos de pensar sobretudo nos direitos, ou na falta deles, de quem ganha e deve receber milhões.
Aqui vos deixo a dita crónica sobre as Marias escrita em 2012.
Júlio Marques Mota
Em 6 de Fevereiro de 2022
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Comentário de um amigo
Caro Júlio,
É um texto muito bom que só tem dois enormes problemas:
-
- Não é ficção e, sendo realidade, perde muito da sua beleza;
- É intemporal.
Apetece perguntar, por quanto tempo?
Resposta de JM
Meu caro
O curioso desta história é que foi a expressão “cama quente” ouvida na televisão que imediatamente me fez lembrar o raio desse texto. Não o reli sequer, mas dormi mal esta noite por causa das histórias de agora [ocorridas na Mouraria e em Olhão]. A mesma lógica de Faro, a mesma lógica de Odemira, toda a gente sabe e ninguém sabe!
10 min de leitura
A Crise na vida das “Marias” do Mundo (*)
Uma pequena crónica sobre Faro
Faro, em 25 de Agosto de 2012
(*) Este texto foi publicado em A Viagem dos Argonautas em 25 e 26 de Agosto de 2012 (ver aqui e aqui)
Na noite passada fui a um espectáculo do FolkFaro onde iria actuar um grupo vindo da Sibéria. Junto ao Hotel Eva e enquanto esperava ouviu-se primeiro um artista português que poderia até ser bom se o seu humor não fosse profundamente reaccionário. Desliguei-me do que este fazia e lembrei-me de um encontro que tive com uma mulher russa, há um ano atrás e de quem me despedi exactamente junto ao Hotel Eva. É a história desse encontro que passo a relatar.
Em férias, numa tarde de sábado. Saio de casa. Vou comprar o meu jornal estrangeiro habitual um pouco longe. A mais de um quilómetro, junto ao Hotel Eva. Um certo nãosentido porque há um vendedor de jornais bem mais perto onde o posso encontrar mas onde me recuso a ir.
Penso, vou, não vou. Decido ir então tão longe, pois a palavra de um homem vale pelo que ele sente. Dias antes nesse vendedor mais perto solicitei a reserva diária desse jornal pedindo-lhe que mesmo que não aparecesse um qualquer dia não o devolvesse, pois queria-o sempre. Num mundo básico como me diz o meu amigo João cansado de emprego procurar, cansado de emprego não ter, propôs deixar alguns euros de garantia para essa reserva. Não era necessário, dizem-me.
Um dia o jornal não veio. Não foi distribuído. No dia seguinte, a mesma coisa. Avisei que mos guardassem. No terceiro dia, dirijo-me ao vendedor. Os jornais vieram? A resposta siderou-me: vieram, mas já os vendi.
Que ninguém imagine os impropérios que não me saíram da garganta. Nenhum. Olhei, talvez com desprezo e disse: a sua palavra pode não valer nada, é consigo. A minha palavra, essa vale o que eu sou e eu não sou isto. Nem mais, virei as costas.
Em tempo de crise a palavra de um homem não vale nada absolutamente nada é assim a moral do pequeno comerciante, do pequeno trader afinal, é esta a lição que aprendi deste vendedor de jornais, em Faro e em férias.
Fui então perto do Eva, o único aberto para além de um outro vendedor, naquele sábado á tarde, na estação da CP, ainda mais longe, portanto.
Vou então longe comprar o jornal. Saio de casa, viro à direita. Junto de uma clínica deparo-me com uma senhora a ouvir com atenção as indicações que lhe estavam a dar. Pela cara de espanto percebia-se deque pouco ou nada percebia do que se lhe estava a ser explicado. Despreocupadamente dirijo-me à senhora.
Pergunto: quer ir para onde? Para Albufeira.
Venha comigo, eu levo-a lá, à paragem das camionetas da carreira para Albufeira pois é exactamente para onde vou.
Acompanhou-me. Era uma senhora elegante, forte, vestida de modo muito simples, de saia escura e blusa branca. Roupa simples, nada cara, mas elegantemente utilizada. Meto conversa e pergunto de que país é.
Nota-se?
Não, mas se não fosse estrangeira tinha percebido a indicação que lhe foi dada.
Criou-se então uma espécie de solidariedade, uma abertura a perguntas que imediatamente não deixei de fazer.
De onde vem, como veio?
Da Rússia, vim como turista, paguei, fiquei. Foi assim que me respondeu, com um português claro, sem erros, com as palavras bem marteladas, bem incisivas.
Olho, com algum espanto, sinto o aspecto frontal da resposta, a frase curta, olho o busto direito, o andar bem seguro, a franqueza espelhada na cara. Uma “generala” pensei. Uma “generala” de outras paradas militares, claramente era o que o seu andar anunciava.
Como turista terá vindo, pagou, Quer dizer que por detrás havia organização, havia gente a ser cobrada à comissão dos rendimentos auferidos por estes emigrantes, os Al Capones da fragmentada da ex-União Soviética, com os 10 a 15 por cento mensalmente assim pagos. Sobre isto nada pergunto, como é natural. O espaço de Schengen, a ideia de um mercado livre de trabalho à escala da Europa, ao ser protegido pelos países limítrofes desse espaço com uma peneira que não tinha rede permitiu uma massa brutal de migração clandestina, barata a servir de base de reprodução do capitalismo já neoliberal. Mas passemos ao lado deste problema.
Viro-me e pergunto de modo bem delicado: diga-me, profissionalmente como é que tem sido a sua vida?
A forma como a pergunta foi formulada, o termo profissionalmente, bem enquadrado da na pergunta, deu-lhe confiança. É ela que agora me olha com ternura, digamos com confiança e com a sua resposta deixou-me pregado ao chão. Profissionalmente, fiz de tudo. Estamos num país estrangeiro. Ninguém nos conhece, ninguém nos vê, ninguém que seja das nossas gentes para me ver, para me criticar. Sublinha com mudança de tom a palavra, ninguém!
Fiz de tudo. Muitas escadas terão sido lavadas por esta emigrante, muitas escadas terão sido subidas e descidas, com todo o respeito pelas mulheres de limpeza, muitos horários de trabalho terão sido sistematicamente violados.
Fiz de tudo. Muitas estufas de morangos foram apanhadas, muitas caixas foram carregadas.
Fiz de tudo. Muitos campos de feijão-verde foram apanhados, muitas caixas de tomates por ela apanhados foram encaixotados. Muitas noites de sono de má qualidade, muitas dormidas pelos campos abertos certamente, muitas dormidas, na melhor das hipóteses, em quartos de 8 a 10 pessoas, por quarto com a cama sempre quente já como na China, perto da rotunda do Hospital de Faro passadas ou algures e caladas pelo silêncio de toda a gente, inclusive pela ignorância sistematicamente assumida pelas autoridades oficiais responsáveis pelas condições de trabalho de toda a gente.
Fiz de tudo. Algumas noites também por esses mesmos campos ao luar e enrolada poderá ter andado com quem não sabe quem, no quadro de uma torre de Babel de ucranianos, russos, moldavos, e pasme-se, de chineses e chinesas também, com horários de 12 horas a 16 horas talvez. Sobre esta gente, não quer o governo nada saber, sobre esta gente não se pronuncia o Serviço de Fronteiras, sobre esta gente quer o Ministério do Trabalho tudo ignorar, até porque do ponto de vista neoliberal é gente completamente descartável. Como assinalava o antigo ministro Oliveira Baptista, como é que dormem as romenas, por exemplo, da apanha do morango, ninguém sabe, ninguém quer saber. Gente descartável, a lembrar os textos de Kevin Bales, gente a que a Troika, a Comissão Europeia, o BCE, o FMI, os Passos Coelho andam ainda ao assalto, como verdadeiros ladrões, mas não na calada da noite, a lembrar Zé Afonso, mas sim à luz do dia, munidos de um poder que lhe dás o voto que lhes confiámos, a lembrar Marx também, ele que está cada vez mais actual.
Fiz de tudo, é a sua expressão, e nas condições em que fez de tudo, meu Deus, muita gente não fez nada, porque simplesmente neste tipo de trabalho os trabalhadores nacionais com direitos são excluídos pelos patrões e acusados depois pelo CDS e outros de que os portugueses não querem é trabalhar, porque o subsídio de desemprego é elevado. Deslocalização no local, diriam os economistas: já que os terrenos não podem ir ter com os trabalhadores onde eles estão, então que venham os trabalhadores para onde estão os terrenos mas com os níveis salariais dos seus países de origem ou muito pouco mais. Adicionalmente, estes podem aceitar outras condições de trabalho bem mais gravosas, menos custosas para os patrões, até porque ninguém conhecido os vê.
Fiz de tudo. E com isso foi assim a sua luta pela vida para mais além e mais alguém, a luta pelos seus a tudo exigia. Pela sobrevivência, foi isso, é isso.
Aqui, e de imediato, lembro-me de Sartre, lembro-me de jovens estudantes do meu tempo, muitos deles mais tarde deram líderes políticos, que no café Nova Iorque ou no Tatoo e nos anos sessenta discutiam existencialismo versus marxismo, lembro-me de uma frase que andava na boca de todos nós: o inferno são os outros.
Lembro-me igualmente do 25 de Abril, lembro-me da exigência das multinacionais numa desvalorização do escudo em 15% para tornar o custo da mão-de-obra portuguesa equivalente ao de outras paragens com a ameaça de que se iriam embora, ameaça feita por volta de Março de 1973 ou mesmo 1974 . Lembro-me da fuga das multinacionais de Portugal, o país que representava então a maquilhadora embrionária a ser testada para o mundo inteiro, dizia-se a produzir em regime de drawback, lembro-me das centenas de raparigas que de um dia para o outro ficaram na rua sem nada, sem emprego, sem dinheiro, sem futuro, com um presente a ser vivido no passeio como fonte provisória de rendimentos imediatos. Voltar para a terra, de mãos a abanar, assumidas como falhadas isso não. Também aqui, ninguém as havia, e o inferno eram os outros, e provisoriamente assim ficaram.
Mas como é evidente, as falhadas não eram elas. O seu desemprego era a resultante do modo de produção capitalista em Portugal, por razões do fascismo, estar completamente desajustado dos mecanismos da concorrência globalizada que já se faziam sentir. Veio a seguir a maquilhadora no México, veio depois a zona especial de exportação que foi a China, vieram outras zonas especiais e depois veio a crise brutal que nos assola agora. Mas isto são outras histórias. Fica aqui apenas o paralelo, dois sistemas, a queda da Rússia, a queda do Muro de Berlim, e a vinda do 25 de Abril, a queda do fascismo em Portugal, e o inferno são os outros é a verdade que se instala nas vítimas imediatas resultantes de cada uma das quedas.
Face a esta resposta da nossa emigrante russa disparo a pergunta seguinte, pergunto-lhe então o que é que fazia na Rússia?
Muita coisa, fui empresária, tive lojas, trabalhei com a polícia, fiz muita coisa. O meu marido morreu, passei a ser a base da família, veio a queda de Gorbatchov, tudo se tornou difícil. Emigrei para Espanha. Não gostei. Éramos vistos como escravos, nunca como pessoas. Vim para Portugal, gostei, fiquei.
Hoje trabalho numa clínica em Albufeira. Vim a Faro trazer análises a uma clínica. Não percebo. Vir de Albufeira aqui. Economicamente não percebe o nosso sistema de saúde.
Fica-me no ar o sentido apurado que ela tem quanto ao sistema de saúde, fica-me também presente o termo polícia, fica-me no ar o seu aspecto e o seu andar fisicamente desenvolto. Claramente andar de militar, postura toda ela de militar.
Fala de família. Veio então com a família?
Não. Já viveram comigo. Tenho dois netos. Com o primeiro na escola primária em Portugal vi que não aprenderia nada de jeito. O segundo neto, mais novo, iria depois pelo mesmo caminho. Ficaria com dois ignorantes. Disse à minha filha que pagava tudo mas queria-os na Rússia, não queria dois ignorantes em casa. Lembro-me do filme os Os Lisboetas de Sérgio Tréfaut, lembro-me de uma cena em que na praia uma emigrante comentava e afirmava que o pior que havia em Portugal era o nosso sistema de ensino.
Olha-me com serenidade. Estamos a chegar ao Hotel Eva, para as camionetas e para a sua viagem, estamos a chegar ao meu quiosque também para poder comprar os jornais. Tem uma cara que é só ternura e firmeza ao mesmo tempo, corpo direito como se estivesse a olhar para uma parada militar, o peito atirado para a frente, uns olhos que brilham como o sol a acompanhar a resposta que se segue: Quero que os meus netos quando chegarem à idade adulta tenham as ferramentas que lhes possibilitem serem capazes de enfrentar o mundo e de nele se situarem condignamente. Imagino-lhe os seus seios como duas fontes capazes de dar de beber ao mundo, a todos os nossos filhos e netos em situação de precariedade, vejo-lhe os braços fortes, com a força de quem pode carregar com os meninos deste mundo, sejam Jesus ou outros, vejo-lhes as mãos com a garra de quem o futuro dos nossos netos é capaz de embalar, vejo-lho o dedo indicador apontado para a frente, num ângulo de 45 graus como que a apontar entre o Céu e a Terra, como que a situar-se entre o ter e o não ter, entre o ser e o não ser, a dizer-me que hoje é essa sua missão, em frente pois.
Pergunto, por fim: e se não há camioneta?
De novo a segurança de quem se sente no seu caminho, a percorrer o seu presente e a caminho do seu futuro, de novo uma resposta para mim inesperada.
Se não houver camioneta, faço o redondo, faço a estrada.
Fixei-me na segurança daquela mulher, a Marechala. Fico-me com a certeza de que ninguém lhe fará mal, na boleia que pode ser pedida ou que lhe pode ser oferecida, ficome com a certeza que ninguém, será mesmo capaz de lhe fazer mal, mesmo que queira, tal é a vida, tal é a força que se respira nos seus movimentos, nas suas palavras.
Quando acaba de falar, paro eu cheio de espanto, para ela, olho e veja-a então como uma Maria, a da Rússia, como uma Maria a de Jerusalém, como uma Maria a de West Side Story e sobretudo, mas sobretudo, vejo-a como a Maria de Fritz Lang em Metropólis, na cidade dos escravos, onde só há agora escravos ou senhores porque os outros, os poucos intermediários que existem, estes, só conhecem o caminho socialmente descendente.
Na Rússia ela quer os seus netos como senhores talvez de outro sistema certamente o que era bem explícito na crítica velada ao nosso sistema de saúde, disposta ela a todos os trabalhos que para isso forem necessários, porque cultiva a cultura e di-lo a um professor universitário que ser sente num país onde as Universidades cultivam a ignorância e que por isso abandona o ensino antes do final do seu contrato face ao descalabro cultural a que estava a assistir e de que não queria ser cúmplice.
Mas a Maria, a da Rússia, ignora a crise ocidental, os mecanismos que a produzem e que tudo arrasam e hoje não sei se terá emprego, em Albufeira ou algures, se não lhe terão cortado nas remunerações, se o dinheiro a enviar passou a não ser suficiente para formar os seus netos, jovens do futuro, se tudo se lhe tornou ou não ainda mais precário. Ela ignora a crise que é traçada e desenvolvida a partir das cidades onde se dinamiza a crise que as Marias algures combatem, nas Metropolis do mundo moderno e talvez não haja melhor descrição dessas cidades do que a dada pelo Financial Times a propósito de um dos centros mais importante onde se desenvolve a crise actual, o principado do Mónaco:
“ O principado do Mónaco pré-configura o mundo moderno onde há apenas duas classes: os proprietários de jactos e os que andam de autocarro. Quem não pertença a estas duas classes é suspeito e é susceptível de ser preso pela polícia. Há um polícia por cada 62 habitantes, e câmaras de vigilância por todo o lado a fim de que o Príncipe Albert – que tudo supervisiona à maneira de um senhor feudal- não seja incomodado. O barulho é o inimigo público nº 1 do Principado ainda mais que o socialismo”.
Mas a Maria, a da Rússia, ignora tudo isto, eu não, nós todos também não.
Este foi o texto que pensei enquanto se aguardava a entrada do rancho russo no espectáculo FolkFaro de ontem. O espectáculo acabou, regressei com a minha neta a casa. Passei pelo café onde me habituei a beber uma garrafa de água servida pelo empregado que é um promissor responsável de um restaurante de luxo mas que nunca há-de vir a sêlo, o empregado a que me referi na Crónica nº 1 sobre Faro.. Peço duas águas e ouço: “a minha patroa está aqui, não posso falar consigo, estou proibido. É o meu emprego, não há direito. Ordens da minha patroa”. Este é um exemplo da precariedade de quem ganha 20 euros por cada dia e em que trabalha das 20 horas até às duas da manhã, num emprego assente num contrato de duração bem curta.
A Maria, a da Rússia, não sabe nada disto, da precariedade mais absoluta que se possa imaginar e num país que ela considerava como muito humano. Nós sabemo-lo.
A Troika, a crise, os Passos Coelhos, que são os verdadeiros servidores, os verdadeiros intermediários do poder das Metrolopolis modernas, bem se encarregam de conduzir esta precariedade ao nível do nunca pensável por ninguém, nem por nenhuma Maria isoladamente. São precisas, muitas Marias mais, a da Rússia, claramente só por si não chega, são precisas todas ou quase todas as Marias do mundo para acabar com o desprezo por quem trabalha e por quem têm direito ao trabalho condignamente.
E é tudo.