Seleção e tradução de Júlio Marques Mota
Parte I – O básico na finança de hoje

17. Alemanha – Projeto de lei para separar riscos e planear a recuperação e a resolução das instituições de crédito e grupos financeiros. Parecer ao Comité Financeiro do Parlamento Alemão. (4ª parte)
Por Finance Watch, 18 de abril de 2013.
(4ª parte)
III. Separando atividades de risco
1. O critério de limite
1.1 A atual proposta proporciona uma proteção insuficiente para os contribuintes e para a sociedade
O artigo 3, parágrafo 2, secção 3 do Projeto de lei bancária alemã (BA-D) proíbe os bancos de praticarem atividades de investimento de alto risco por conta própria (proprietary trading), se estes bancos sobre passam os limites definidos no artigo 3, parágrafo 2, seções 1 e 2 BA-D. A proibição não se aplica, porém, se as atividades de trading altamente arriscadas são realizadas por uma entidade autonomizada, conforme definido no artigo 25.º-A BA-D. Em pormenor, o artigo 3, parágrafo 2, secções 1 e 2 BA-D prevê que os requisitos de separação se aplicam aos bancos que elaboram os seus balanços de acordo com as NIC e as IFRS ou os princípios contabilísticos alemães, se os ativos classificados como estando na sua posse para investimento e disponíveis para venda ultrapassam o valor de 100 mil milhões de euros ou ultrapassam 20 por cento ou mais do total do balanço patrimonial, desde que o total do balanço dos três anos anteriores atinja 90 mil milhões.
Finance Watch congratula-se com a introdução dos princípios da Separação Bancária na Lei Bancária Alemã (BA) em termos gerais. Todavia, consideramos que os critérios em termos de limiares são demasiado elevados para poderem cumprir os objetivos gerais que estão por detrás das razões que levam à introdução do Artigo 2 do projeto lei. Estes objetivos têm por meta “garantir a estabilidade dos mercados financeiros de forma sustentável”, bem como o objetivo de impedir que os contribuintes paguem pelos comportamentos especulativos das instituições financeiras [6].
A tabela 1 abaixo esclarece o nosso raciocínio. Ela tem a catalogação dos bancos que receberam fundos do Fundo Alemão de Estabilização do Mercado Financeiro (SOFFIN) sob forma de capital e garantias entre 2008 e 2012 em volumes de mais de 200 mil milhões de euros [7]. Quatro dos 9 bancos listados na tabela 1 (excluindo SdB) tinham um balanço com volumes totais que estavam abaixo do volume limite de 90 mil milhões de euros, conforme definido pelo artigo 3 parágrafo 2 secções 1 e 2 BA-D. Isto implica que – se a regra já estivesse em vigor em 2008 –isso não teria impedido que estes bancos continuassem a realizar as suas transações especulativas altamente arriscadas sob o mesmo teto. Dado este tipo de evidência histórica contra-factual, concluímos que o limite definido no artigo 3 parágrafo 2 secções 1 e 2 BA-D é um instrumento insuficiente para minimizar os encargos públicos que podem resultar do comportamento especulativo dos bancos. Uma vez que esta medida não impede os bancos de tomarem posições especulativas à custa dos contribuintes, parece-nos necessário criar novas medidas alternativas e mais eficientes para resolver os desincentivos existentes no sector financeiro.
1.2 Medidas alternativas para colmatar as lacunas do Artigo 3 Par. 2 Sect. 1 e 2 BA-D
Como medidas alternativas às regras definidas no artigo 3º. 2 seita. 1 e 2 BA-D gostaríamos de propor as seguintes:
O montante das atividades especulativas, sejam por conta própria seja por conta de clientes, no seio dos bancos de depósitos deve ser limitado a uma percentagem do total do balanço independentemente da dimensão do respetivo banco. Com base nos dados fornecidos no relatório do grupo de peritos de alto nível sobre a reforma da estrutura do sector bancário da UE, [8] nós sugerimos um limite de 5%. Este limite minimiza as consequências legislativas para os bancos de médio e pequeno porte, dado o facto de as atividades especulativas médias dos bancos de médio porte da UE estarem abaixo desse nível e os pequenos bancos estarem ainda mais abaixo deste limite (menos de 1% em média; cf. acima). Ao mesmo tempo, colmata as lacunas do artigo 3, parágrafo 2 secções 1 e 2 BA-D, prevenindo o risco de atividades dos bancos, que no passado entraram em contratos de alto risco à custa da sociedade e que estão atualmente excluídos dos requisitos de separação previstos no atual projeto-lei.
Se um determinado banco quiser aumentar a quota das suas atividades de alto risco acima do valor limite, então qualquer aumento deve ser garantido por capital adicional. Por exemplo, se as atividades de alto risco aumentarem para 6% do balanço total, então será exigido um montante suplementar de garantia em fundos próprios equivalente a 1% do balanço total.
Esta abordagem deste princípio “de minimis” tem uma série de vantagens que podem ser resumidas da seguinte forma:
- o limite de 5% permitiria que os bancos comerciais de médio e pequeno porte fornecessem serviços de hedge/especulação aos seus clientes não financeiros. Estes bancos não seriam, portanto, questionados no seu atual modelo de atividade;
- o capital de garantia adicional “cobriria” as atividades de risco adicionais e os riscos relacionados que vão além do limite imposto. Qualquer perda incorrida acima do limite não seria, por conseguinte, susceptível de ameaçar a solvência do banco; além disso, a gestão do banco permaneceria plenamente responsável perante os seus acionistas pelos riscos assumidos no contexto das suas atividades de risco.
- Grandes grupos bancários com significativas atividades de risco poderiam prosseguir essas atividades numa entidade separada, o que não iria representar mais do que um custo relativamente baixo de reorganização.
- As atividades de risco seriam realizadas exclusivamente numa entidade separada se forem economicamente sustentadas em si-mesmas, isto é, sem beneficiar da garantia implícita do estado; apenas ganhariam em dimensão se o modelo de negócios fosse considerado sustentável pelos acionistas e investidores.
2. Atividades de alto risco
2.1 A separação das atividades bancárias deve afetar as atividades de risco financiadas por fundos próprios mas não apenas estas
O artigo 3, parágrafo 2 secção 3 BA-D define as atividades que terão de ser realizadas separadamente segundo o projeto de lei. Essas atividades incluem: (i) Atividades de alto risco por conta própria (“Eigengeschäft”, ou seja, negociação de instrumentos financeiros por conta própria), que não representam serviços para terceiras partes; (ii) Concessão de empréstimos e garantia em negócios com fundos de cobertura (hedge funds) e com fundos de fundos de cobertura e com os seus gestores; (iii) Negociação de Alta Frequência com a excepção de serem criadores de mercado.
Finance Watch congratula-se com a abordagem geral à separação de diferentes atividades dos bancos na Alemanha, a fim de proteger as funções essenciais de recolha de depósitos e concessão de crédito dos bancos. Em particular, Finance Watch apoia a proposta de separar os empréstimos para hedge funds e bem como as transações de alta frequência. Separar as atividades especulativas de elevado risco da atividade dos bancos de depósitos é necessário para se aumentar a transparência relativamente à questão de se e até que ponto os bancos subsidiam estas atividades pela alavancagem de depósitos [9]. Como a proposta atual prevê que os bancos refinanciem de forma independente atividades comerciais acantonadas em entidades separadas (artigo 25f BA-D), os custos de refinanciamento das atividades comerciais arriscadas irão refletir os verdadeiros riscos económicos associados a esse tipo de atividades e, vão assim, estabilizar os mercados.
Os bancos que enfrentam custos artificialmente baixos para refinanciarem as suas atividades comerciais arriscadas expandirão essas atividades para além do seu verdadeiro valor económico [10]. A Tabela 2 mostra como é que a vulnerabilidade do mercado dos principais bancos alemães foi ampliada nos anos anteriores à crise devido ao aumento das atividades de elevado risco. Em particular, este é o caso no que diz respeito ao comércio de produtos derivados. Os modelos económicos padronizados estimam que “os derivados são usados para reduzir os riscos de crédito e os desajustamentos entre as taxas de juros”. No entanto, na maioria dos bancos listados abaixo o “volume de derivados negociados massivamente excederam [o] que lhes era exigido para fins de cobertura.”[11] Os aumentos acentuados das atividades especulativas sobre derivadas antes da crise não estavam relacionados com a gestão dos riscos dos bancos por conta própria ou dos clientes. Em vez disso, os bancos aumentaram as suas exposições no mercado no contexto de posições assumidas por conta própria [12].
As atividades de mercado referidas -e em particular os derivados que são trocados tanto entre os bancos alemães assim como com bancos não-alemães estavam em larga medida não relacionadas com a economia real. Isto é evidenciado pelos números globais que mostram que menos de 10% dos derivados OTC são negociados com uma contrapartida não-financeira, deixando o resto -mais de 90%- como instrumento de negociação para e pelo setor financeiro (cf Figura 1 abaixo) [13].

2.2. O critério atual de separar as atividades de risco por conta própria mas não outras atividades de trading não reflete a realidade das atividades de risco e, portanto, este critério não é exequível como tal.
O artigo 3 parágrafo 2 secção 3 BA-D prevê a separação das operações por conta própria (não criadoras de mercado), uma vez que esta atividade de alto risco não faz parte da função central dos bancos. No entanto, Finance Watch questiona a diferenciação de operações especulativas por conta própria e as operações especulativas feitas como serviço prestado aos clientes/criação de mercado, como proposto no artigo 2 do projeto de lei, uma vez que existem amplos motivos para acreditar que esta forma de diferenciar as atividades não é viável na prática. Isto deve-se ao facto de que na verdade a “criação de mercado é uma negociação por conta própria que é concebida para fornecer “imediatismo” aos investidores. Por exemplo, um investidor ansioso por vender um ativo depende da capacidade permanente do criador de mercado para comprar o ativo para si próprio, imediatamente. Da mesma forma, um investidor que deseja comprar um ativo contacta frequentemente um criador de mercado que, em seguida, lhe vende o ativo, imediatamente, colocando-o fora do seu inventário “[14]. Os supervisores de mercado não podem, por conseguinte, diferenciar se uma instituição financeira está na posse de ações e de outros instumentos financeiros no seu inventário para fins de mercado, ou como resultado de negociação por conta própria [15]. Finance Watch gostaria de salientar que a isenção das atividades de criação de mercado na proposta de lei alemã representa uma diferença essencial relativamente ao relatório Liikanen que não isenta as atividades de criação de mercado. Assim, de forma a ser coerente com o relatório Liikanen, Finance Watch recomenda a separação das atividades de criação de mercado das atividades de crédito e de depósito realizadas pelos bancos.
As páginas 59 – 60 do projeto de lei contém uma lista concreta de atividades de criação de mercado, de trading e de atividades relacionadas com os dois anteriores tipos de atividade que as instituições financeiras poderão ser autorizadas a realizar. Essas atividades incluem, entre outras coisas, transações de serviços prestados aos clientes no processo de compensação e de liquidação, entrada em contratos a prazo para fins de cobertura de riscos de clientes e de outras transações de serviços prestados aos clientes com o objetivo de seguro contra o risco.
As atividades de criação de mercado e as atividades de trading (especulação) listadas partilham características fundamentais com as atividades de trading por conta própria que o projeto prevê separar (“Eigengeschäft”). Pela sua natureza, a criação de mercado implica necessariamente formar uma opinião sobre como vão evoluir os preços e envolve manter um inventário de ativos (cf. acima). Estes são também dois elementos essenciais da negociação por conta própria (“Eigengeschäft”). Todas as operações de criação de mercado (ao contrário da intermediação) envolvem assim um elemento da negociação por conta própria. A criação de mercado envolve estar pronto para comprar e vender, e comunicar aos participantes do mercado os preços aos quais o criador de mercado está disposto a fazê-lo. Decidir sobre esses preços exige para os criadores de mercado decidirem quanto desejam ou não manter os instrumentos em questão na sua posse e ajustar os seus preços de oferta e procura em conformidade com o que pretendem reter nos seus livros. A criação de mercado não envolve simplesmente adicionar uma margem a um (hipotético) preço intermédio, envolve ajustamentos sobre o preço a comprar e sobre o preço que queremos vender para “ganhar” ou “perder” operações com clientes e de modo a ajustar-se o inventário em conformidade, tendo sempre presente a necessidade de manter a sua reputação.
Da mesma forma, a cobertura envolve necessariamente a transformação de riscos mais do que a eliminação de riscos. Pondo o problema de forma simples, a única maneira de eliminar um risco é vender a fonte desse risco. Uma cobertura, por definição, é algo mais do que vender a fonte subjacente de risco. Portanto, a cobertura envolve sempre a formar uma opinião por conta própria quanto, por exemplo, ao risco da contraparte, ou sobre os movimentos num índice versus os movimentos de preços de uma componente, ou sobre os movimentos de preços de instrumentos similares com maturações diferentes e assim por diante.
A gestão de posições em produtos derivadas implica, por definição, posições de risco de abertura em múltiplos parâmetros (nível de mercado, taxas de juro, volatilidade, correlação, etc…) e na realidade de uma operação de tomada de risco há muito pouca, se alguma, diferença económica entre ” tomada de risco por pura conta própria ” e a gestão de risco de clientes que se posicionam e enfrentam posições de risco em derivados, o que exige que os operadores bancários tenham uma perspetiva sobre a evolução desses parâmetros de mercado.
Tendo em conta o vasto âmbito das atividades a serem permitidas ao abrigo das novas regras e das suas semelhanças estruturais face às atividades que devem ser separadas, o projeto de lei não atingirá o seu objetivo de proteger as atividades bancárias que são vitais para a sociedade (depósitos, crédito e serviços de pagamento) das atividades comerciais de alto risco realizadas pelos bancos. Em vez disso, a maioria das instituições financeiras será de facto capaz de continuar não só a sua atividade geral de risco (por natureza) por conta dos clientes na sua diversidade de operações mas também de continuar as suas atividades de risco feitas por conta própria, como o fazia antes, graças aos elevados limites estabelecidos para que seja desencadeada a separação das atividades de risco por conta própria.
(continua)
Texto original em http://www.finance-watch.org/our-work/publications/597-position-paper-german-bank-reform
Notas
[6] Bundesregierung 2013, Gesetzentwurf, p.2 and p.30.
[7] Este número inclui somente provisões de capital e garantias fornecidas a instituições com um balanço no total inferior a 90 mil milhões de euros.
[8] Liikanen, e all. 2013,pag.35,quadro 3.3.4.
[9] Hackethal, Andreas, Krahnen, Jan Pieter: 2013. Kommentierung des “Entwurfs eines Gesetzes zur Abschirmung von Risiken und zur Planung der Sanierung und Abwicklung von Kreditinstituten und Finanzgruppen” vom 06. Februar 2013. Center of Excellence Safe Sustain- able Architecture for Finance in Europe, Policy Letter Series No. 3.
[10] Friedman, Benjamin: 2010. Is our financial system serving us well? In: Daedalus Journal of the American Academy of Arts & Sciences, On the financial crisis and economic policy, Fall, pp. 9-21.
[11] Hardie & Howarth 2009, p.1022.
[12] Hardie & Howarth 2009, p.1023.
[13] cf. Bank for International Settlements (BIS): 2010. Triennial Central Bank Survey, Foreign exchange and derivatives market activity in 2010, http://www.bis.org/publ/otc_hy1011.htm (own calculations).
[14] Duffee, Darrel: 2012. Market Making Under the Proposed Volcker Rule, http://www.federalreserve.gov/SECRS/2012/January/20120118/R-1432/R-1432_011712_88664_334954090642_1.pdf
[15] Hackethal & Krahnen 2013.