Dos conhecimentos básicos em finança à opacidade e complexidade do mundo financeirizado – Uma exposição e uma análise crítica. Parte II – Compreender a alta finança. Compreender a finança nº4 – Capital bancário – a ressurreição de um mito? (1ª parte). Por Finance Watch

Jan Brueghel the Younger Satire on Tulip Mania c 1640

Seleção de Júlio Marques Mota, tradução de Francisco Tavares

Parte II – Compreender a alta finança

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Compreender a finança nº4 – Capital bancário – a ressurreição de um mito? (1ª parte)

Por Finance Watch, 2014/2015

(1ª parte)

O capital bancário está de novo na ordem do dia. Neste texto – o quarto da série «Compreender a Finança» – definiremos o que é o capital bancário e em que medida pode ser um tema controvertido. Inicialmente, porque razão os bancos necessitam capital, de que modo esse capital é gerado e porque motivo os banqueiros preferem operar com um nível de capital inferior àquele de que necessitam. Depois, numa segunda parte, responderemos às controvérsias que envolvem as seguintes questões: a quanto deve ascender o capital dos bancos, de que modo ele afeta a economia real, e através de que meios o lóbi bancário luta a favor de baixo nível de capital.

Em 2008, a falta de fundos próprios teve um papel fundamental no momento da crise financeira. Com efeito, os bancos sub-capitalizados não puderam fazer face a importantes perdas e tiveram de ser socorridos pelos Estados. É por isso que a partir daí essa exigência mínima de capital, então extremamente baixa, foi revista ligeiramente em alta pelos reguladores financeiros. Contudo, hoje, o lóbi financeiro volta de novo à carga para afrouxar essa regulamentação. O mais surpreendente é que a ideia parece ter um acolhimento positivo da parte dos reguladores que estão dispostos a rever vários elementos cruciais da legislação.

Em 2011, os decisores políticos declaravam:

«Parece claro que foi cometido um erro monumental ao ser permitido que os bancos bem menos fundos próprios do que no passado.» Documento de reflexão do Banco de Inglaterra (nosso sublinhado).

Em 2015, eles declaravam:

«A diretiva europeia «requisitos de fundos próprios regulamentares» conseguiu restabelecer a resistência, a estabilidade e a confiança no setor bancário europeu… Todavia, é justo perguntarmo-nos se essa regulamentação não terá tido consequências inesperadas..» Comunicado de imprensa da Comissão Europeia

Estaremos a assistir ao efeito de retorno «ao extremo oposto da regulação» ?

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PARTE 1: AS BASES

Porque é este um assunto que diz respeito também aos cidadãos?

O que é o capital bancário?

Como está regulamentado o capital bancário?

Se os bancos criam moeda, porque motivo não criam o seu próprio capital?

Porque motivo a maioria dos bancos prefere deter o menos possível de capitais próprios?

Uma perspetiva histórica

PARTE 2: O DEBATE

Não têm os bancos muito mais capital depois da crise?

A magia do risco ponderado

A que montante devem ascender os capitais próprios de um banco?

A magia dos veículos de titularização fora do balanço

Da importância das palavras: os fundos próprios não estão à margem da economia, eles fazem-na funcionar

Lóbi bancário e mitos: Ação!

Qual o impacto sobre a economia real?

A afirmação escandalosamente excessiva do lóbi

Que alterações traria uma regulamentação mais restritiva sobre o capital?

Conclusão

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Parte 1: As bases

Porque é este um assunto que diz respeito também aos cidadãos?

Para o cidadão, o capital próprio detido pelos bancos é garantia de proteção contra crises bancárias. A crise financeira global deixou claro que bancos de importância sistémica subcapitalizados são uma ameaça enorme para a estabilidade financeira e para a economia em geral. No coração da crise financeira de 2008, a paralisia do sistema financeiro foi causada pelos temores dos investidores sobre a capacidade dos bancos para fazerem face às suas perdas, tornando-os assim potencialmente insolventes. Seguiu-se uma reação em cadeia, em primeiro lugar através de um congelamento de liquidez e refinanciamento, provocando a venda maciça de ativos a preços baixos ou irrisórios, o que teve como efeito a propagação das perdas dos bancos, propagando portanto, um vento de pânico em todo o sistema financeiro internacional. O resultado foi a Grande Recessão, com a perda de milhões de empregos.

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© Clif Droke / Une du tabloïd américain « Weekly World News » 20 agosto 2002

Mesmo em tempos de prosperidade, a instabilidade financeira está sempre à espreita. Esta notícia alarmante do tablóide americano, “Weekly World News”, data de 20 de agosto de 2002. Ao longo das diversas crises bancárias – e houve trinta desde 1985 – os fundos próprios operaram sempre como muro de proteção entre os cidadãos e as perdas financeiras.

A seguir estão as explicações fornecidas pelo Comité de Basileia sobre a supervisão do setor bancário, um fórum que lida regularmente com as questões de regulamentação bancária, respeitantes à origem da violenta crise financeira mundial (NB: o termo “efeito de alavancagem excessiva “equivale a uma falta de fundos próprios, isto é, demasiadas dívidas):

Uma das principais razões para o aumento da violência das crises é o uso excessivo do efeito de alavancagem no setor bancário global. Isso foi acompanhado por um declínio progressivo da qualidade e da quantidade da base de fundos próprios [capitais próprios].” (BCBS 2010, página 1).

O resgate subsequente dos bancos, bem como a recessão, custou até agora aos cidadãos europeus 2.400 mil milhões de euros (auxílios estatais e perda do PIB; Fonte: Tableau de Bord Citoyen de la finance), um custo médio por agregado familiar de 11 mil euros. Pior ainda, milhões de empregos foram perdidos em todos os setores da economia europeia.

 

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Diagrama 1 : Taxa de desemprego © Liberty Street Economics Blog)

 

Do ponto de vista do cidadão, obrigar os bancos a financiarem-se mais com fundos próprios e menos através de dívidas é lógico. A outra principal vantagem deste simples bom senso: os fundos próprios permitem conceder mais empréstimos. Segundo o Banco Central Europeu, a melhoria da regulamentação ligada aos fundos próprios dos bancos ajudará a economia:

“O aumento substancial da base de capitais próprios para níveis superiores aos anteriores à crise … deveria contribuir para tornar o sistema bancário mais estável e robusto. Haveria uma recuperação económica global ao longo de todo o ciclo, ajudada pelo setor financeiro. (Financial Stability Review, novembro de 2015).

O que é o capital bancário?

Os fundos próprios, ou capitais próprios, são uma das muitas maneiras de que os bancos dispõem para se financiarem, juntamente com depósitos e outras fontes de financiamento, como a venda de títulos nos mercados financeiros. No jargão, este “capital próprio” equivale principalmente ao capital social e aos lucros não distribuídos do banco. Ao contrário do financiamento através de dívida, o capital permite absorver facilmente os défices e, portanto, ajuda os bancos a protegerem-se da insolvência. Além disso, quanto menor for o capital de um banco, maior será a probabilidade de falência se houver perdas significativas.

Não deve ser confundido: capital, que é uma forma de financiamento e as “reservas bancárias”; para mais informações, veja a Parte 2, “A importância das palavras …”.

A secção que se segue baseia-se em balanços simplificados de um banco para demonstrar a importância do capital.

Como se financiam os bancos?

Para o comum dos mortais, um empréstimo é muitas vezes considerado uma dívida, um passivo, porque um empréstimo por definição deve ser reembolsado. No entanto, do ponto de vista do banco, um empréstimo é um ativo. O banco tem direito a reclamar do mutuário uma certa quantia de dinheiro, consistindo nos juros e no capital inicialmente emprestado. Conclui-se que quanto mais os bancos emprestam, mais os seus ativos aumentam e mais lucros podem obter. Os bancos têm também outros tipos de ativos financeiros, todos constituindo ativos nos seus balanços (à esquerda no diagrama 2 abaixo).

A forma como esses ativos são financiados encontra-se no lado direito do balanço patrimonial. De facto, o dinheiro dos bancos vem de várias fontes, depósitos de clientes, a venda de títulos a investidores, ou o empréstimo de dinheiro de outras instituições bancárias (denominado mercado interbancário ou via o mercado de pensões fornecidas diariamente) para financiar os seus ativos. Os investidores e os aforradores detêm, portanto, um crédito sobre o banco, que deve reembolsá-los, geralmente com juros. Nesse caso, essas fontes de financiamento são consideradas como dívidas.

O capital também é uma dessas fontes de financiamento. Consiste principalmente em capital social e lucros não distribuídos. O capital do banco, ou fundos próprios, representa o dinheiro inicial investido pelos acionistas, bem como as posteriores entregas de fundos. Esta prestação dos acionistas confere-lhes um direito de propriedade e, portanto, é reconhecida como um passivo no lado direito do balanço patrimonial. O balanço simplificado de um banco, portanto, parece mais ou menos assim:

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Diagrama 2 – Finance Watch

Para entender por que o capital é crucial, vamos dar uma olhada no que acontece quando um banco sofre grandes perdas. Os ativos de um banco devem sempre cobrir suas responsabilidades, caso contrário, seria insolvente e não poderia continuar as suas atividades. No caso de um banco solvente, as colunas ativas e passivas devem ter a mesma altura, como no diagrama acima. No entanto, se alguns dos empréstimos não puderem ser reembolsados, os ativos do banco reduzir-se-ão. Para manter o balanço equilibrado, os passivos terão de ser baixados pelo mesmo montante por sua vez. Os acionistas são os primeiros a pagar as perdas do banco. Assim, se o banco tiver capital próprio suficiente para absorver as perdas incorridas, essa perda afetará apenas o valor de seu capital social e lucros acumulados até que a perda seja totalmente absorvida e ambos os lados do seu balanço retornem ao equilíbrio.

No diagrama 3 abaixo, o banco começa com uma quantidade suficiente de capital próprio (1). Em seguida, há uma grande perda no valor dos seus ativos (2), por exemplo, a insolvência de várias hipotecas após o colapso do mercado imobiliário ou o aumento das taxas de juros. Como resultado, a perda sofrida terá que ser deduzida dos ativos (à esquerda), e então uma redução equivalente no passivo terá que se seguir. Para fazer isso, o banco terá que usar uma grande parte de seus fundos próprios para absorver a perda, permanecendo pouco mais que solvente (3). Nesse caso, o banco poderá continuar as suas atividades e reconstituir portanto os próprios fundos próprios em antecipação de perdas futuras.

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Diagrama 3 : Banco com fundos próprios suficientes (© Finance Watch)

Vamos ver agora o que aconteceria se o banco tivesse muito poucos fundos próprios. No Diagrama 4, o banco experimenta uma perda maior. Como resultado, todo o capital é usado, sem conseguir, todavia, absorver todas as perdas. Como pode ser visto no esquema 3 do diagrama, a coluna de passivos é agora maior do que a coluna de ativos, tornando o banco insolvente. Uma vez que não pode continuar as suas atividades, deve compensar as suas perdas impactando negativamente os demais passivos. No final, pode suceder que os seus credores, tanto os aforradores como os outros bancos, possam não recuperar a integralidade do seu dinheiro.

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Diagrama 4 : Banco sem fundos próprios suficientes (© Finance Watch)

 

Neste ponto, a situação pode degenerar e transformar-se numa corrida aos bancos, ou até uma crise sistémica (N.B., os depósitos dos particulares são assegurados na União Europeia até 100.000 euros para reduzir o risco de ver aparecer este tipo de situação de pânico). Para os bancos de importância sistémica (ou seja, bancos que são tão interligados, complexos ou grandes que a sua queda implicaria todo o sistema), os governos favorecerão o uso do dinheiro dos contribuintes para resgatar esses bancos. e evitar a propagação do pânico, como aconteceu durante a crise de 2008.

A sobrevivência ou a queda de um banco após perdas significativas depende principalmente do seu nível de capital. Em outras palavras, para bancos com forte alavancagem por endividamento, ou seja, aqueles com muito pouco capital, uma fraca almofada de fundos próprios é insuficiente para fazer face a uma ligeira diminuição no valor de seus ativos. Tal diminuição pode ter o efeito de criar um choque e provocar a falência do banco. Antes da crise, os fundos próprios de alguns bancos não representavam mais de 1,5% de seus passivos. É por isso que agora é mais do que importante forçar os bancos a financiarem-se com mais capitais próprios.

 

(continua)

Texto original em http://www.finance-watch.org/informer/comprendre-la-finance/1231-capital-bancaire

 

 

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