
Seleção e tradução de Júlio Marques Mota
Parte III – A finança ao serviço da sociedade e não a sociedade ao serviço da finança.

1. O trilema bancário da Europa (4ª parte)
Porque é que a reforma do sistema bancário é essencial para uma União Bancária bem sucedida
Um texto editado por Finance Watch com o apoio da Fundação Hans-Böckler, setembro de 2013
Autores: Duncan Lindo e Katarzyna Hanula-Bobbitt
Editores: Thierry Philipponnat e Greg Ford
(4ª parte)
1. As atividades bancárias e como elas mudaram com a financeirização (continuação) |
(…)
Financeirização e “monstros de fluxos”
Em teoria …
Os mercados de valores mobiliários facilitam a especulação
Como foi visto acima, há um risco quando se detêm títulos que, no momento em que um investidor precisa de aceder ao dinheiro líquido, o preço a que eles os podem vender pode ter-se movido contra eles (ou melhor ainda a seu favor). Os investidores estão simultaneamente tentados pela “cenoura do lucro especulativo” e assustados com “a vara de risco financeiro” (Eatwell e Taylor, 2000, p. 3). Por conseguinte, os mercados de valores mobiliários contêm a possibilidade de que os investidores comecem a manter títulos principalmente por estarem tentados a ganhar com as mudanças nos seus preços, comprando e vendendo repetidamente. Este potencial para estar a apostar nos mercados, que não é estar a investir (ver o relatório “Investir não é andar a apostar“[6]) foi massivamente desencadeado, particularmente nos últimos 20-30 anos, por uma variedade de regulamentações e de outras mudanças. Os bancos como criadores de mercado ficam a ganhar diretamente com o crescimento da atividade nos mercados financeiros porque ganham a diferença entre compra e venda (bid-ask) dos títulos em cada transação.
Os gestores de ativos têm incentivos para ‘jogarem no mercado’
A inflação do mercado financeiro também ocorreu em parte devido a mudanças nos padrões de poupança e de empréstimos concedidos à economia real. De modo crescente os investidores institucionais, como fundos de pensões, fundos de seguros, fundos de cobertura (hedge funds) e outros têm investido nestes mercados em nome de grandes grupos de indivíduos. Estes investidores institucionais são confrontados com menor procura de liquidez do que os investidores individuais porque como aquilo que um individuo paga um outro retira, desinveste, os fundos podem em circunstâncias normais obter estas entradas e saídas sem ter que comprar e vender valores mobiliários para corresponder aos requisitos de liquidez. Como resultado, os gestores de ativos destes fundos estão livres para se concentrarem na negociação das suas carteiras de títulos exclusivamente para capturarem os movimentos de preços. Os incentivos para que eles se comportem desta forma são fortes e isso leva os fundos a captar cada vez mais dinheiro com que trabalham para esses mercados, por exemplo, poupanças através de pensões, prémios de seguros e assim por diante. Ao mesmo tempo, o crescimento da titularização foi acompanhado por mais e mais empréstimos contraídos por indivíduos: hipotecas, cartões de débito e de crédito, empréstimos a estudantes, etc. Em vez de manter esses empréstimos nos seus balanços, os bancos empacotaram esses créditos, transformaram-nos em títulos e venderam-nos depois nos mercados financeiros. Desta forma, tanto a poupança como os empréstimos contraídos pelos indivíduos alimentaram os mercados financeiros, onde os bancos e outras instituições financeiras negoceiam ativos financeiros repetidamente à procura de obter lucros com as mudanças de preços. Este processo tem constituído uma parte substancial do aumento geral das atividades financeiras nos últimos 25-30 anos e que que foi rotulado como a financeirização [7].
Na Europa, hoje …
A finança pela finança
O resultado destas novas atividades na Europa de hoje tem sido o crescimento extraordinário dos mercados financeiros que vimos nos últimos 30 anos e o surgimento de um punhado de mega bancos que dominam os mercados financeiros; Estes bancos foram rotulados “Monstros de fluxos ‘ (Alloway, 2012).
Vejam-se os mercados de valores discutidos acima. Os títulos emitidos para se obterem fundos para as “empresas não financeiras” são uma pequena parte destes mercados. Por exemplo, os dados do BCE, apresentados no gráfico abaixo, mostram que as emissões feitas por empresas não financeiras representam menos de 10% dos valores mobiliários, com exclusão das ações, que foram emitidos.
A história é similar nos mercados de derivados, como se ilustra pelos montantes pendentes nocionais publicados pelo Banco de Pagamentos Internacionais. As transações com contrapartes financeiras representam mais de 90% dos pendentes nocionais – como se vê no gráfico abaixo.
Estes mercados financeiros não são “mercados livres” com muitos compradores e vendedores em interação. Tais mercados existem somente nos livros didáticos e nos modelos matemáticos altamente abstratos. Nos mercados financeiros reais os bancos fornecem o lugar do mercado, a infra-estrutura dos mercados tais como os sistemas de pagamento e os contratos de custódia, os próprios instrumentos financeiros, e a liquidez (como se está disponível para comprar e vender). Em mercados de balcão [OTC-over the counter, também designados fora da bolsa], por exemplo, um banco de negócios está de um lado face a cada derivado isoladamente, fornecendo liquidez em termos dos instrumentos bancários sobre produtos derivados nos mercados de balcão.
Os mercados de balcão de derivados são oligopólios
Estes mercados estão também extremamente concentrados. Quinze a vinte bancos muito grandes dominam. Nos mercados de balcão sobre derivados, um estudo recente calculou que o “G14” (14 dos maiores bancos globais) representava 82% do valor nocional dos derivados (ISDA, 2010). Os altos custos da criação de salas de negociação levam os bancos a terem o incentivo ao lucro para aumentar o “fluxo” de instrumentos financeiros que comercializam. O resultado é duplo. Primeiramente, o negócio é dominado pelos maiores bancos com enormes barreiras à entrada de outros neste mercado. Segundo, os incentivos dos bancos são para fazer mais e mais negociação financeira enquanto procuram maximizar os retornos nos seus investimentos feitos nas salas de mercado.
Cerca de metade dos balanços dos grandes bancos estão dedicados às atividades de especulação financeira
O resultado é uma mudança dramática quanto à dimensão e à forma dos maiores bancos ao longo destes últimos 25 anos com base no modelo de negócio de criadores de mercado. Os maiores bancos tipicamente têm 25% dos seus ativos como ativos negociáveis em comparação com menos de 5% nos outros bancos. Além disso, os maiores bancos europeus tipicamente têm na ordem de 25% ou mais do seu balanço utilizado por ativos sobre produtos derivados negociáveis [8]. Em geral, podemos então tipificar estes bancos como tendo cerca de metade do seu balanço dedicado às atividades de negociação ou especulação. Os empréstimos formam menos de metade do resto dos seus ativos constituído por valores de imobilizado, por derivados utilizados para a cobertura e assim sucessivamente. O gráfico abaixo ilustra como os maiores bancos se transformaram durante estes últimos 25 anos.
Em resumo, as implicações sistémicas.
Em suma, os pequenos e médios bancos da Europa continuam a ser principalmente bancos comerciais. Os ativos de negociação financeira (especulação) representam menos de 5% dos seus balanços. Mas os mercados financeiros cresceram enormemente nos últimos 25 anos. Eles são dominados pelos maiores bancos que têm todos os incentivos para transacionarem cada vez mais títulos, mais e mais, e de forma cada vez mais rápida. A estrutura desses bancos mudou com a mudança nas suas atividades. O diagrama abaixo captura uma parte desta história. Estas mudanças têm implicações críticas para a gestão das crises. Os governos devem sempre tomar medidas para proteger os depositantes e os sistemas de pagamento porque, sem o dinheiro do crédito bancário, as nossas economias e sociedades deixam de funcionar – é uma fonte de risco sistémico. Contudo, os maiores bancos hoje também representam um risco sistémico devido à sua dimensão, conexões com o resto da economia e devido à sua complexidade. Estas características resultam das novas atividades que foram desenvolvidas no decorrer dos últimos 25 anos e são tipicamente referidas sob o título polivalente de bancos demasiado grandes para falirem. Por outras palavras, a falência desses bancos espalharia uma tal destruição nas economias que os governos não poderiam tolerar a sua falência. A questão para a gestão das crises é que medidas podem ser tomadas para proteger o resto da economia destas duas fontes de perigo. É disso que iremos falar a seguir. |
(continua)
Finance Watch, Europe’s banking trilemma. Why banking reform is essential for a successful Banking Union. Texto disponível em: http://www.finance-watch.org/our-work/publications/687-europe-banking-trilemma
Notas
[6] Texto que será editado mais adiante nesta série.
[7] Uma definição frequentemente citada de financeirização é a de Epstein: «a financeirização significa o papel crescente dos motivos financeiros, dos mercados financeiros, dos intervenientes financeiros e das instituições financeiras no funcionamento das economias nacionais e internacionais.» (Epstein, 2005) Este processo também tem sido chamado de inflação do mercado financeiro (Toporowski, 2000)
[8] Os produtos derivados com a finalidade de servirem de cobertura para o próprio banco são mantidos fora do balanço.